Que pé!





Sobre As good as it gets de James L. Brooks

Por Hélène Frappat

A arte da comédia americana se destaca na estilização dos personagens e nos contracampos com os cachorros. Uma lembrança entre outras: Meia-noite de Mitchell Leisen. Na hora do café da manhã, a discórdia reina entre Don Ameche e Claudette Colbert. As réplicas jorram, o pânico atinge o ápice... até que um close de um cachorro bastante afável, pacificamente sentado com seus donos, põe fim – provisoriamente – ao seu pugilismo fantasioso. Chantal Akerman não se enganou quando, em Um divã em Nova York, fez de um cachorro o desafio de uma love story, logo de uma cura.

O personagem de comédia é geralmente um agitado que não sabe o que fazer; a estilização, maneira sempre elegante de estar adiantado sobre a psicologia, se apodera de sua agitação para a pôr em cena. Então, duas soluções (pelo menos): ou o cineasta traduz a agitação em rapidez, e se interessa pela aceleração dos corpos, toda trajetória e toda direção postas de lado – objetivo: saltar o mais rápido possível, mesmo contra uma parede, a maluquice sendo um excelente acelerador da velocidade –, ou ele é atento à direção, isto é, ao trajeto da agilidade. De um lado o Hawks de Bringing Up Baby (onde um leopardo amante de música desempenha as funções de cachorro), do outro As good as it gets de James L. Brooks.

As good as it gets dá uma forma burlesca aos transtornos psíquicos de seu herói de comédia (Jack Nicholson), lhe inventando um andar: saberemos que ele é tantã (TOC = transtorno obsessivo compulsivo) quando descobrirmos a maneira pela qual, literalmente, ele coloca um pé na frente do outro. Dois pés que ziguezagueiam, se contorcem e avançam em esquadro, história de respeitar uma misteriosa lógica, da qual só importam os efeitos. Dois pés filmados de perto e acompanhados, em breve, pelas patas de um cachorro mimético (amante de música ainda por cima).

Não haverá redenção, mas, mais modestamente, uma ligeira torção no andar do personagem: não há cura para a maldade, mas, da mesma maneira que se pode acreditar que uma troca econômica se torna uma relação amorosa, nós poderemos observar como a luta feroz do pé esquerdo de Jack Nicholson contra o seu pé direito cede o lugar, no fim das contas, para um andar “em conjunto”, que lhe autoriza mesmo o passeio a dois! Desenlace invertido do El de Buñuel, no qual o balé errático dos pés do personagem desmentiam ironicamente seu discurso de cura.

Quel pied ! foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°5, verão de 1998, p. 43. Tradução: Miguel Haoni.

Casamento experimental






Sobre As good as it gets de James L. Brooks

Por Axelle Ropert

No cartaz, Jack Nicholson se enternece por um terrível cachorrinho. No trailer, um velho misantropo retorna, graças à descoberta do amor, ao seio de seus semelhantes. Raramente se viu uma promoção tão “distante da realidade”, chegando a traduzir o agridoce As good as it gets pelo otimista Para o bem ou para o mal[1].

Como conseguir jantar com uma mulher quando só se suporta talheres de plástico? Como conseguir jantar com um homem quando só se tem uma preocupação na cabeça, a asma de um garotinho? Através dessas situações de impedimento, James L. Brooks explora, sob todas as suas facetas, um mecanismo que não para de relaxar e de se contrair: a forçação. O voluntarismo é, assim, essa decisão engraçada, complicada e tão pouco exemplar quanto possível de não mais se deixar levar e de se controlar, em resposta (e aí se encontra a lei do encorajamento mútuo) ao abandono simétrico do seu parceiro. Lutar contra suas obsessões (comer com verdadeiros talheres), se obrigar a se examinar meticulosamente (compreender que um garotinho não pede para ser o centro de uma vida), mas também brutalizar os outros (humor misantrópico à vontade) poderia ser o programa dessa mecânica íntima, um programa perfurado pelas “pequenas ausências”... Aos momentos em que se enredam brutalmente o desejo de contornar e o medo do que pode vir em seguida se sucedem, na verdade, pausas surpreendentes de repouso (uma mulher medita num bonde, uma paisagem desfila no campo). Uma inspiração, e a confrontação se prepara, uma expiração, e o conflito desaparece.

Todos temiam Jack Nicholson. James L. Brooks compreendeu que era preciso utilizar um histriônico como um disco arranhado: seja lhe fazendo interpretar indefinidamente o mesmo refrão, seja lhe interrompendo. Graças a uma Helen Hunt que opõe às caretas de seu parceiro seu cansaço de mulher inquieta, Jack Nicholson só pode representar no vácuo – obrigado a manter a compostura, ou ser censurado –, desarmado por essa valentia feminina. Jack Nicholson não suporta ninguém exceto Helen Hunt, Helen Hunt suporta todo mundo exceto Jack Nicholson: a exasperação é, assim, essa curiosa relação humana que obriga a sair dos seus (maus) hábitos para se encontrar em território verdadeiramente estrangeiro – esse é o charme incomparável de As good as it gets, de dar constantemente a impressão de uma terra incognita por onde avança o casal.

Não se pode aprender a amar um cachorrinho, um negro musculoso, um vizinho homossexual ou uma terna jovem mulher (sic). Esta é a bizarra convicção anti-humanista do filme, não sem lembrar a já célebre sentença mccareyana: “Eu amo o meu filho como se ele fosse humano”. A grande reconciliação humana não existe, e o misantropo permanecerá misantropo, apesar de tudo. Mas ele terá aprendido à reconsiderar esse vizinho homossexual, esse cachorrinho, esse negro musculoso, essa terna jovem mulher, quer dizer à lhes reservar, literalmente, um lugar na sua vida. Não se sabe se Jack Nicholson um dia saberá abraçar corretamente (e duvidamos disso!), mas, guiados pela prudência daqueles que perderam muito e tem tudo a ganhar, esse homem e essa mulher se experimentarão no amor. As good as it gets...

[1] No Brasil, o filme ganhou o titulo de Melhor é Impossível. (NdT)

Mariage à l'essai foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°6, verão de 1998, p. 42. Tradução: Miguel Haoni.

O pai do ano

Por Luiz Fernando Coutinho

O desvio pelas vanguardas na primeira metade do séc. XX e, posteriormente, pela política dos autores exercida na França dos anos 1950, pelas quais o cinema buscava ou rivalizar com as artes nobres ou se afirmar por comparação a elas, tende a ofuscar um dado importante de sua origem: mais do que um irmão da literatura ou do teatro, o cinema nasce nos bas-fonds parisienses, nos espetáculos de feira, nas casas de vaudeville, nos puteiros e nos circos, sob os olhos e reações de sujeitos anônimos da classe trabalhadora, desempregados, esfarrapados, alcoólatras, prostitutas, malandros, artistas autônomos, desajustados, famílias em busca de lazer passageiro. A essa ficção histórica, Armadilha adiciona alguns elementos do nosso presente: o cinema nasce também em um show de diva pop, sob o fascínio de adolescentes fervorosas, de celulares em punho e lanternas (mágicas?) acesas no escuro.

Neoclássico, Shyamalan não entra no jogo da lamúria saudosista. Diferente de alguns de seus contemporâneos, carpideiros de Homero e Sófocles, seu olhar para as novas tecnologias ou para o fenômeno do fandom não escorre nem para a exaltação inocente nem para a crítica reacionária. O cineasta não dispensa o potencial de fascinação desses elementos, articulando-os em uma intriga de gato-e-rato que renova, em alguma medida, o laço do cinema com formas populares de produção e exibição. Lembramos de Griffith e de seus malfeitores, dos suspenses policiais que solidificaram a montagem paralela (ausente aqui, no entanto), dos palcos filmados que ocasionalmente acolhiam pessoas da plateia em seus espetáculos.

Desde seus primeiros filmes, o método de Shyamalan consiste em unir o extraordinário e o banal, o fantástico e o cotidiano, o excepcional e a cultura de massa. Corpo Fechado (2000), exemplar, costurava Tarkovsky e história em quadrinhos: fantasmas, alienígenas, monstros, fadas subaquáticas e super-heróis constituem a espessura ficcional necessária para trabalhos formais de um rigor atípico, sustentados, além disso, por uma cosmovisão sempre manifesta. Em Armadilha, a cultura pop é literalmente o fundo no qual Shyamalan inscreve sua narrativa, e sua abordagem do fenômeno de massa, nesse caso, é corajosa e irreverente.

A ancoragem em um universo concreto, distante do fantástico (a super-heroína, aqui, é a diva pop), parece trazer duas consequências. Em primeiro lugar, algo da religiosidade do cineasta se perde no caminho, e Armadilha constitui, talvez, seu trabalho menos espiritual. Depois, e como resultado, o tom se torna menos monumental ou épico. Dos filmes de Shyamalan, este é provavelmente aquele que atinge escalas menores em termos de desenvolvimento e clímax. À semelhança do rosto de Josh Hartnett, filmado em primeiríssimo plano como uma superfície ampla que permite inúmeras micro variações, trata-se de um filme de pequenos prazeres e delícias discretas, processadas no conjunto de restrições e códigos estabelecido pelo cineasta. Shyamalan, nesse sentido, permanece herdeiro da série B.

Quando a personagem de Josh Hartnett passeia pelos corredores da arena, pensamos nos momentos em que David Dunn, de Corpo Fechado, esbarrava com os corpos no estádio ou na estação de trem para ter uma visão de seus crimes. Naquele filme, pessoas comuns, anônimas e transeuntes, eram capazes dos crimes mais hediondos – atos de violência que eram iluminados pelo contato com o corpo de Dunn. Em Armadilha, a imagem que falta, a visão por se produzir, não é dos assassinatos ou decepamentos: o extracampo que o filme prolonga ao máximo mostrar é o do núcleo familiar. Curiosa inversão em relação a Corpo Fechado, onde, além disso, o pai era a Lei.

Shyamalan aborda a psicose não tanto como o faria um criminalista (Fincher) ou um psicólogo (Hitchcock), mas como um fenômeno social, nascido no interior de lares exemplares. O tênue fio psicanalítico, que mais parece servir de pretexto para certas rimas ou situações dramáticas, é integrado a uma mecânica arquetípica do thriller. Mais importante do que o trauma, nesse caso, é o sintoma: a divisão do sujeito ou sua bifurcação. A sequência assombrosa das fotografias de família, entretanto, lança a questão: trata-se mesmo de uma separação? Georges Didi-Huberman falava do sintoma como algo que rasga a imagem, o que nos faz pensar se a dupla vida do Pai é o que efetivamente desfigura a imagem da família ou, pelo contrário, lhe permite uma sobrevida – em outras palavras, se a derruba ou a mantém em pé. É possível que a resposta se encontre em um gesto específico do final do filme, envolvendo uma bicicleta de criança.

“Laços de Ternura”, prazer louvável




Por Camille Nevers

O filme de James L. Brooks retorna ao cinema: ocasião de reler e revisar a crítica de Serge Daney publicada no “Libé” quando do seu lançamento em 1984, e poder finalmente rever sem vergonha esse longa-metragem magnífico.

A reprise desse filme maravilhoso, célebre, multi oscarizado e, contudo, controverso, drama sentimental contrafazendo uma comédia clássica, história de uma relação mãe-filha que uma vida percorrida em uma ficção de duas horas não conseguiria cercar, é a ocasião de resolver um velho problema. Pois o que há de maravilhoso em Laços de Ternura é proporcional à sua perfeita simplicidade. Esse ponto culminante mas invisível da inteligência, portanto de possível confusão entre a fineza de expressão e o banal, o “medíocre”, a dianteira do tempus fugit e a horrível desonra de um “a vida é assim” que só concederia (vida) aos ricos – contudo, o crítico teria esquecido? é a frase condutora de Tarde Demais para Esquecer de Leo McCarey: “A vida é assim, etc”.

Nas páginas do Libération do 7 e 8 de abril de 1984, quando Laços de Ternura era lançado na França, recém coroado com esse “repugnante amontado de Oscars para o qual ele foi programado”, Serge Daney se enganou – o que acontece com todo mundo. Seu engano se intitulava “Botas para um vale de lágrimas”. Ele atacava o filme violentamente. Não há problema em se enganar; o que aconteceu foi que ele nos fez sentir vergonha. Vergonha de ter gostado e ter chorado diante dessa água com açúcar viva e trágica. É preciso resolver isso, quarenta anos depois, opor-se à crítica de Daney, que não é o pai nem essa mãe a quem a ultima frase do artigo bate ainda com seu grito paradoxal: “E contra a mãe, não nos revoltamos”.

Pequeno palhaço

Nos revoltemos contra a autoridade, mas somente quando ela abusa de si mesma. Por que, na época, Serge Daney, que tinha discernimento, se enganou? Primeiro confundindo o inimigo, a televisão, tomando o filme como exemplo do argumento menos interessante da história do cinema – que se trata de um “telefilme” (como pudemos dizer “é teatro filmado”, etc). “Mas (diriam, surpresos por tanto ódio) esse filme não é uma novela! Com certeza, é ainda pior”. O que é que o crítico deixou escapar, cego por um esquema de leitura ideológico que o fez considerar o filme como o contemporâneo odiável de Dallas e de Reagan mais do que o descendente direto, em termos de estratégia narrativa, de Leo McCarey, não obstante citado ao lado de Vincente Minnelli e Douglas Sirk, apenas a contragosto de uma nostalgia que sentimos forçada – “eles nem sempre foram nulos (aliás nós os lamentamos)”?

Uma pista: o pequeno palhaço. Daney não soube ver o pequeno palhaço, a luz persistente da lamparina do primeiro plano do filme. Esse pequeno palhaço que é também a primeira frase do “roteiro” de James L. Brooks: “Uma tela escura, no canto inferior esquerdo, brilha o rosto de um pequeno palhaço. Ele é quase imperceptível, enquanto os créditos começam”. O crítico viu somente a imagem da mãe que ele não podia tolerar. Não a luz persistente do rosto do palhaço, nem a arte da comédia. No filme, a mãe, Aurora, e sua filha, Emma, são magnificamente retratadas, com fisionomias variáveis, por duas épocas do cinema americano: Shirley MacLaine e Debra Winger, tão diferentes quanto possível nessa dinâmica de caracterização contrastada cara a Brooks. Daney viu a pulsão (de morte, de mãe), não o pequeno palhaço que afasta o filme de toda causalidade edipiana e do trilho da fatalidade – nada mais “ilógico” que a arte da psicologia levada aos seus limites esgotados, cristalizada em mise en scène que “se repensa” e se retoma, repete infinitamente sua entrada e sua saída, de Brooks. Essa ausência de determinismo social e de fixação familiar, que ele deixa em plano de fundo, o separa, aliás, de Sirk, de quem Daney aceita os melodramas de filiações trágicas – o que ele recusa a James L. Brooks. Como você sabe.

Combustão lenta

Uma outra maneira mais doce de perguntar, então: o que torna Laços de Ternura tão belo? Uma inteligência do humano conduzida a um ponto de precisão mais que humana e sem pressão. A transparência de suas intenções e sua ausência de efeitos. O emaranhado frouxo das existências, distantes mas ligadas. Essas poucas vidas paralelas que avançam de forma regular, o filme aborda suas intimidades esculpindo os raccords, os ecos e as distâncias implicadas, o que as numerosas cenas de telefone atestam (com esse efeito de “presença in” da voz do interlocutor no fim da linha, efeito que encontramos em Defesa Secreta de Jacques Rivette, outra história “de menina”). James L. Brooks filma tudo com uma benevolência afeiçoada, inclusive a malevolência, o que lhe permite exprimir com tato indizível, sob a comédia sentimental, a emoção sinuosa e a tragédia sem aviso prévio. Como Leo McCarey.

Assim Daney nos fez sentir vergonha de gostar dos filmes de Brooks, por muito tempo. Nisso ele não se enganou, enfim. Pois Laços de Ternura é o estudo bastante exaustivo de um sentimento nunca filmado como tal, de uma combustão lenta (os filmes de combustão lenta são os mais bonitos): a vergonha. A vergonha é o motivo de cada plano entre MacLaine e Winger, Nicholson, Daniels, Lithgow, as crianças, todos pegos de surpresa, para desconforto geral e seu constrangimento. É a vergonha que os pais fazem aos filhos, mais ainda que a vergonha que os filhos fazem aos pais. O filme mostra como essa vergonha, aplicada primeiro a si mesmo, é uma forma lastimosa e desajeitada, mas de um pudor sublime, o do filme, de estar no mundo. É assim que Brooks consegue filmar coisas indizíveis, sentimentais e cruéis, até o último suspiro. Choramos. Eis aí porque nós tínhamos razão.

“Tendres Passions”, plaisir louable foi originalmente publicado no jornal Libération de 1 e 2 de outubro de 2022, p.24. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

O grande jogo




Por Raymond Bellour

Imediata e violentamente sensível, a sedução que o faroeste exerce se deve à riqueza sem precedentes de seu tema e à infinita diversidade que ele oferece no mundo fechado da repetição, conferindo a cada espectador a fascinante e perpétua sensação de reprise e espanto. Exemplo único em que o campo de uma história é coberto em sua totalidade por uma multiplicidade de pontos de vista. O western funciona como espelho e como prova. Cada filme, cada obra singular, apresenta-se como uma interpretação de uma origem e de uma história. O fato de quase todos os cineastas de Hollywood, sejam eles americanos ou adotados, terem escolhido, aceitado fazer faroestes, de o gênero ser o mais antigo e o mais novo dentre todos os gêneros cinematográficos americanos, apesar de tantos sinais de alerta, sempre até aqui desmentidos, de sua morte iminente, prova simplesmente isto: o western é a série de interpretações que uma forma de arte, o cinema americano, dá à sua história local e nacional e, a cada dia mais, à sua própria natureza e às suas exigências em relação à tradição que o sustenta; é por isso que, quando vemos um faroeste, signo vivo de uma dupla interpretação mais ou menos manifesta, sentimos um tipo particular de júbilo, um júbilo como o que sentimos quando estamos diante de qualquer objeto ao qual nos rendemos, pois podemos deduzir imediatamente seus contornos, suas formas, sua essência e até mesmo a natureza do prazer que ele nos proporciona; e ainda assim, por meio de uma reviravolta sutil e dolorosa, muitas vezes nos surpreendemos, às vezes ficamos impressionados, como se de repente nunca tivéssemos sabido nada sobre isso.

Então, o que é essa história, essa vida original que o western revive constantemente, como em um jogo perpétuo, no horizonte misto do cinema americano? É uma vida totalmente arriscada, uma vida de aventura, baseada nas apostas, e que do jogo contém todos os signos. Basta uma palavra para orientar o itinerário do herói, um encontro para selar seu destino; uma bala perdida decide uma vida, e imagino que um dos charmes unânimes do faroeste esteja na decisão rápida, imprevisível e aparentemente leve que o herói toma logo no início do filme, com um ar que pretende ser casual, e à qual ele permanecerá fiel até o desfecho, seja ele feliz ou infeliz – porque não há outro significado para a vida além da arbitrariedade, deste jogo no qual o herói sempre faz valer sua regra no terreno privilegiado onde a morte é o destino do perdedor. Daí a preferência de longa data pela figura emblemática do jogador, ser de duas faces, personagem de uma história, espelho de significado para uma tradição.

O western, arte lúdica, não haveria nada do que reclamar, se o jogo, mestre da aparência, não fosse o fato de que ele se estabelece diante daquilo que o destrói constantemente: a seriedade da lei. Baseia-se na razão social e na moralidade dos valores, uma seriedade cujo reverso é chamado de capital e cujas últimas e mais venenosas flores estão desabrochando, tão distantes e diferentes que não podemos mais reconhecê-las, no entanto, apenas um século, meio século depois, vemos em São Domingos, Hanói ou Caracas, em tantos lugares ao redor do mundo. O faroeste, portanto, situa-se nas duas auroras da história e da civilização americanas. De um lado, a aventura, a aposta e a epopeia do individualismo; do outro, e ao mesmo tempo, a conquista, a ordem e a sociedade. A inefável fragilidade do jogo, a tragédia pessoal que mais ou menos prende o herói no código livre e rígido de um rito, no modo encantador e perverso de uma repetição que desafia toda monotonia, ecoa constantemente uma lógica cujos múltiplos desvios, cuja sinuosidade não deve esconder a verdade absolutamente real do impulso silencioso de uma história que nos permite reconhecer facilmente nos pioneiros do Oeste, filhos dos fugitivos deserdados do capital europeu, o cidadão americano.

O limite do jogo é o sistema de valores que ele sempre confronta e sustenta. Isso é visto claramente, sem a necessidade de uma segunda leitura, em obras que deliberadamente confessam sua natureza anti-lúdica. Primeiro em Os Conquistadores, no qual Lang submete, sem pestanejar e com notável rigor e audácia, o espírito de aventura ao espírito de empreendimento: plantar postes telegráficos nos estados ainda virgens do Oeste significa plantar ações; se o inimigo, índio ou malfeitor, ficar no caminho, ele é fuzilado, sem remorso ou alegria, em nome da ordem, de uma moralidade cuja lógica mais segura é o sistema do dinheiro. Falou-se de anti-western, mas também sabemos que testemunhas antigas, chamadas a dar sua opinião, reconheceram a perfeita autenticidade do filme. A contradição é apenas aparente, e a lição é simples: Lang, fiel à sua alta acuidade, leva o faroeste do reino da mitologia privada para o da mitologia pública. Como um príncipe do sistema, ele redistribui os valores semânticos de acordo com um código social e político. O humor e o conflito individual não precisam nos iludir aqui; Lang se atém à lógica de uma interpretação realista e anti-heróica.




A segunda negação, que é mais natural por isso mesmo mais frequente, é encontrada na seriedade épica de Ford. Pois se o western, por sua natureza histórica, nada mais é do que uma nostalgia do épico tradicional, ele frequentemente opera de maneira semelhante em termos de valores. O indivíduo, para Ford, incorpora valores coletivos e define de uma só vez a origem da moralidade e sua eternidade. Daí este universo profundamente tradicional e messiânico – cujo único evangelho é o homem americano em seu conceito mais elementar –, daí esta obra que, em um sentido magnífico, constitui um dos mais altos monumentos de identificação com que se pode sonhar. A mitologia lúdica do faroeste, que Ford usa com a habilidade suprema de quem sabe fazer quase tudo, desaparece constantemente em uma seriedade épica. Os dois jovens em Caravana de Bravos decidem suas vidas por acaso, mas como não ver aqui o pretexto para um itinerário que não tem nada a invejar (o comboio mórmon nos convida) ao de O Peregrino, de John Bunyan? Quanto a John Wayne em Rastros de Ódio, ele encarna tão fortemente o espírito de conquista, família e raça que seu périplo aventureiro apenas ecoa (pelo menos em princípio) as palavras orgulhosas e proféticas desta mulher pioneira, que permanecendo no limiar de seu rancho, dá como contraponto à provação atual a beleza e a nobreza da América de amanhã. A ideia do jogo na obra de Ford é expelida em dois níveis: o do personagem e o do diretor.

Porque essa ideia, a bem da verdade, demanda que se jogue ao máximo com a carta do indivíduo. É isso que Sturges faz, por exemplo, por meio da sua escolha de tema e atores, embora nunca consiga torná-la absolutamente convincente por falta de talento ou de um certo gênio. É preciso nada menos do que genialidade (grande ou pequena, não é essa a questão) para construir uma obra com um rigor arbitrário e lúdico, como quando você opõe a evidência objetiva da expressão fordiana (muitas vezes admirável) ao desafio de um sistema formal e temático que deve pouco aos álibis do natural. Ray faz isso de forma violentamente bela em seu Johnny Guitar. Lang faz isso de forma magnífica contrastando O Diabo feito Mulher com Os Conquistadores e revelando de uma só vez os dois extremos do western no seu estado mais puro. Nada poderia ser mais decisivo ou mais autônomo do que essa parábola realista na qual a ideia de destino é sempre combinada com a da mais fascinante liberdade. Os personagens de O Diabo vivem talvez a vida mais deliberadamente solitária e amoral (em termos de valores tradicionais e coletivos) da história do faroeste. Marlene e Mel Ferrer, capturados pela câmera irônica e tão grave de Lang, rejeitam qualquer idéia objetificada do Oeste em favor de um código violentamente pessoal, lógico e irrisório, o qual encontra em um rancho lendário sua possibilidade lógica e na imagem de uma roda de loteria sua motivação simbólica. Para quem pensa em Lang apenas como um cineasta do imediato, do natural, aconselho que dê uma olhada mais de perto nessa prova de elegância abstrata e teorização singular. Lembremos, não tanto por conta de Marlene, de O Expresso de Shanghai, de Sternberg, em que o jogo é levado ao seu ponto absoluto, porque em nenhum momento os filmes escapam da série fantástica e ritualística que une os personagens e faz de seu autor um mágico imenso e fascinado.

Este encerramento do sujeito que por si só abre as portas para a tomada de decisões lúdicas é encontrado em Anthony Mann, cineasta do homem individual. Aqui o jogo ganha peso, preso nos fios do romance e da inversão psicológica. Mas ele permanece no nível do ato, do gesto, da vida arbitrária, ao menos nos filmes feitos com Stewart, filmes de apostas furiosas, sem dúvida, mas de apostas, se alguma vez houve uma. Stewart joga por sua vida, ainda que seu jogo esteja mais próximo de uma maratona do que de um jogo de pôquer, de um bildung do que de uma festa. Ele está em uma posição de risco soberano, limitado ao seu próprio corpo, à velocidade de seu tiro, à precisão e à rapidez de suas intuições. Ele nunca morre, porque é muito raro em Hollywood o astro escapar do happy-end e o jogo do homem americano é sempre confrontado com a positividade de uma história e de uma civilização que ele precisa tornar possível; mas no instante em que Stewart enfrenta a morte de forma real, e isso, para nós que somos convidados ao espetáculo, é o essencial enquanto a luta durar. Estamos diante de um homem sem referência externa: preso no jogo de sua própria vida dentro do mundo da aventura, dedicando-se a ele para o bem ou para o mal. Daí a sensação de uma precariedade extraordinária: ganhando ou perdendo, Stewart anda na corda bamba, na vigilância perpétua de alguém que sabe que o jogo nunca termina e sempre pode ser virado de ponta cabeça. Comparemos Wayne em Rastros de Ódio e Stewart em Região do Ódio: na pior tempestade de neve, no combate mais desesperado, frente aos elementos e aos homens, a invencibilidade épica se choca com o jogo trágico. É inegável que ambos compartilham aquele conhecimento técnico sutil e prodigioso, praticamente mágico, que torna o heroísmo plausível e justifica um resultado bem-sucedido. Todavia a técnica, no primeiro caso, refere-se à ordem transcendente do universo moral e o herói assume a validade de uma série de imperativos categóricos aos quais a ação responde fielmente; ao passo que, no segundo, refere-se a uma ordem quase autônoma do sujeito. Tal antinomia pode ser lida nos rostos dos atores, no ritmo e na preocupação das duas mises en scène, na relação que estabelecem, por exemplo, entre o homem e a natureza, o herói e as outras figuras da ação, a ideia e sua encarnação.

O jogo, para Mann, lida com a ordem do presente. Ele está duplamente ameaçado, tanto pela nostalgia incessante de uma vida anterior, pré-histórica, quanto pela seriedade do futuro, quando o sujeito, fatalmente, termina como um signo precursor da história americana. Daí a pluralidade dos tempos, a profundidade romanesca, uma singular tragédia. E a impressão, para mim, de que Mann encarna uma espécie de essência do western, visto que o gênero está no momento de seu maior sofrimento. James Stewart – ele é o verdadeiro herói de Mann, antes dos sinais progressivos de abandono que definiram Henry Fonda, Glenn Ford e Gary Cooper em seus últimos faroestes. Stewart personifica aquele instante no qual o herói, com uma forte obstinação, pretende ter o mundo longe de si. A história e a sociedade o aguardam, ele cede à utopia de uma vida com acordos virgilianos, debate-se entre a integração moral e ideológica e o desejo pelo impossível. Esse divórcio é evidente na arte altamente versátil da encenação, na ocasião deste ou daquele diálogo e no desfecho que sempre marca uma derrota sorrateira e implícita, ainda que de forma feliz; Mann, com grande habilidade, situa as categorias sensíveis e intelectuais que determinam seus heróis. Mas a ação em si, que durante todo o filme detém o privilégio da realidade em um nível primário absolutamente decisivo, a ação impõe a ideia mais trágica da subjetividade do jogo. Stewart se põe como a lei; a aventura é a realização de um projeto inicial que serve como uma aposta. A partir desse instante, esse herói está rigorosamente vinculado aos seus meios de ação, por isso é tão comovente, quando em sua cabana solitária cercada de neve, Stewart, ferido na mão, levanta o rosto desfeito pela dor para contemplar seu cinto pendurado em um prego. Se ele não consegue segurar a arma entre os dedos, não é um princípio moral e intangível que entra em colapso, mas um homem que morre por ter jogado mal a única carta que possui: sua vida. Se gosto tanto de Região do Ódio é porque ele incorporou ao extremo a alternância do individualismo desesperado e triunfante ao qual o cinema americano tanto deve. E, além desses momentos furiosos de ordem do desafio mítico, onde o herói existe apenas em sua feroz autonomia, gosto sobretudo do final, quando Stewart, depois de suas batalhas particulares, aceita o cargo de xerife na comunidade que se forma já sinalizando a marcha em direção à história, embora ainda mantenha algo de um impulso primitivo. É uma dupla contradição, contra a qual, uma vez terminada a aventura, os heróis lutam irremediavelmente: pois são apanhados, seja qual for a direção em que olhem, entre as ondas destrutivas do tempo. Daí a razão e a fascinação de um eterno retorno da aventura, um recurso sempre à ordem do sujeito, que encontra na trovejante possibilidade presente da morte uma resposta à aparentemente grande leveza do que está em jogo.

Mas a condição mesma da razão trágica desaparece com o advento do capital americano. O jogo individual deixou de ser real – ao menos para o herói que se deixa levar por ele até estabelecer as regras, e o diretor que passa a ser mais ou menos cúmplice – o jogo não é mais do que uma sombra nostálgica, quando não uma ilusão, uma caricatura. Os últimos filmes de Mann mostram isso muito bem, O Homem do Oeste e, sobretudo, Cimarron – Jornada da Vida. E três filmes que mostram um espelho impressionante do questionamento de Mann. Primeiro, O Homem que Matou o Fascínora, não tanto por desmistificar o suposto heroísmo de Stewart, quanto por seu clima político e social e seu enredo quase totalmente retrospectivo. Ford passa sem problemas da seriedade da epopéia onírica para a crônica histórica, e a América subitamente assume sua face atual. Quanto a Liberty Valance, ele não passa de uma caricatura do assassino, do homem do jogo, um fantoche no universo da nova América, e Ford, escolhendo Lee Marvin sem mudar em nada sua figura lendária, confere a imagem exatamente oposta à do personagem inesquecível lançado por Boetticher no mundo clássico de Sete Homens Sem Destino. Depois há Sua Última Façanha, de David Miller, no qual o herói anacrônico vive o sonho delirante de um heroísmo pessoal edificado sobre o código aventureiro do Oeste de outrora, montado em seu cavalo, armado com seu rifle, através de uma América de autoestradas e helicópteros. Por fim, estou pensando em Pistoleiros do Entardecer, em que Peckinpah, com um talento admirável e uma sensibilidade muito semelhante à de Anthony Mann, precipita radicalmente a ruína do herói. É o fim do jogo, a morte da aventura, e quando a câmera se eleva acima do campo para o duelo final, vendo esses dois atores idosos avançarem miticamente em direção a seus adversários para o mais clássico dos encontros, alguma coisa nos avisa, em alguma parte, como que em um estremecimento secreto, que esse duelo talvez seja o último do western. Porque uma vez mortos esses homens, que a história em certo sentido já depôs, nunca mais haverá outros como eles e é até difícil imaginar como, sem esses atores ligados à era de ouro do cinema americano, o faroeste pode realmente continuar a sobreviver.




Pois o western, que Bazin chamou tão corretamente de cinema por excelência, é autônomo em uma arte em que toda a tradição – a distribuição de filmes por gênero, a prodigiosa expansão da indústria, o aparente apagamento dos autores por trás de uma criação coletiva e de mitologias compartilhadas – dá a impressão de um certo jogo. A liberdade do cinema americano, cuja naturalidade só ele tem o fabuloso segredo, se deve à dimensão lúdica da qual a maioria dos filmes, mesmo os mais sérios, não é desprovida. O faroeste, nesse aspecto, tem um privilégio especial. Ele surgiu no alvorecer do cinema americano, quando a conquista do Oeste estava chegando ao fim; e esse humor lúdico que mais ou menos se anuncia nos filmes, na atitude do herói em relação à sua vida, irrompe na relação que o autor tem com seu próprio filme, objeto de uma aposta em relação a uma realidade que ainda é muito próxima e a uma tradição. O fato de quase nenhum cineasta americano ter se afastado do western é uma clara indicação do desejo (ou da obrigação, mas isso realmente não importa) de jogar o jogo. E não é coincidência que, de todos os grandes autores (exceto Welles, mas não é ele o homem que por excelência vai contra todas as tradições?), os únicos ou quase únicos que quiseram evitá-lo foram justamente Minelli e Donen, autores de comédias americanas e musicais, os únicos gêneros que mantêm uma relação lúdica com a tradição americana de espetáculo cinematográfico da mesma ordem. (Em termos de atores, encontramos isso em Gene Kelly e Cary Grant). É como se todo autor americano tivesse que ceder, de alguma maneira, à necessidade fascinante do jogo. A comédia é, sem dúvida, infinitamente mais lúdica em seus temas e princípios; mas o faroeste, a partir do âmago de sua seriedade histórica e moral, adornado em seus adereços puramente dramáticos, dá a impressão de um universo lúdico de outra forma, já que vive apenas de regras e mitologias, muitas vezes transgredidas, mas nunca evitadas. Fazer um faroeste, para um realizador, mesmo o mais violentamente pessoal, como Lang, Ray ou Brooks, é entrar no jogo da repetição, recomeçar a história e o cinema americanos, é, numa palavra, tentar um exercício de alto vôo no terreno da maior evidência, enfrentando o jogo mais arriscado sob os auspícios combinados da natureza e da tradição.

Em Paris, por volta de 1925, um grupo de escritores, a maioria deles poetas, formou-se sob uma questão e um tormento comuns. Entre eles estavam René Daumal, Roger Gilbert-Lecomte, Roger Vailland e Rolland de Renéville. Eles criaram juntos uma revista chamada Le Grand Jeu. Essas palavras sempre me fizeram sonhar. Esses poetas, é claro, depois de Rimbaud, que eles tanto amavam, estavam brincando com fogo. Mas quando os leio, quando contemplo a tensão dolorosa e subjetiva de sua linguagem, sua seriedade que é tão aterrorizante quanto admirável, e a alta solidão que designa mais ou menos a figura intransigente do criador nos países de nossa velha Europa, quando reconheço tudo isso, acho que as palavras muito alegres “Grand Jeu” têm algo que soa um pouco falso. Entretanto para mim elas cobrem de forma exemplar a essência do western.

Exercício do natural, ainda que mitológico, que retoma a todo momento a odisseia aventureira da história americana por meio de uma arte que é apenas um lado da mesma aventura, o faroeste pertence tanto ao universo da seriedade quanto ao do lúdico, e um sempre permanece como condição do outro. Daí sua popularidade na América que se reflete na abundância de produções televisivas. Daí para o espectador europeu a sua sedução particular. Encontramos no western a possibilidade da aventura, da aposta na qual a história é construída, é claro, mas a qual, no momento do jogo, possui o extraordinário fascínio da ação pessoal. É como funcionários do negativo que cedemos ao poder dessas epopéias por nós consideradas milagrosas, onde um homem, submetido a um código que ele conhece ainda melhor por ter ajudado a estabelecê-lo, assegura a verdade do universo pela pura realidade de sua ação. Esse é o grande jogo, histórico e filmado, um grande jogo porque é um jogo de risco natural que constrói e interpreta a realidade imediata em sua totalidade. Os americanos, penso eu, já sentem isso como um arrependimento, porque em certo sentido, para eles também, a aventura de fato acabou, e nós, do fundo de nossos velhos países, sentimos o sonho completamente ilusório de uma juventude histórica e individual que nos parece imemorial, e que sempre tornará a América um pouco distante em sua ingenuidade tão bela e perigosa.

Le grand jeu foi originalmente publicado em BELLOUR, Raymond (Org.) Le western: Approches - Mythologies - Auteurs – Acteurs – Filmographies. Paris Gallimard, 1993 (pp.7-17). Tradução: Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.