Nesta disposição, os espaços se tencionam e é sempre interessante quando o entrevistado atravessa o campo e lança uma pergunta para os de trás da câmera. Coutinho, o perguntador oficial do filme, mostra-se curiosamente o mais desarmado quando interrogado. E registra seu próprio despreparo: quando Roberto interpela-o perguntando “Senhor quer me dar um emprego?” Coutinho não sabe o que responder. Apesar de toda pesquisa e preparação ele também está muito nu.
Edifício Master (2002) impôs a este método uma porção de problemas. Trata-se, no filme, de um grupo novo para o cineasta - apesar de fazer parte dele: pessoas da classe média carioca, residentes em apartamentos. Mesmo sendo a realidade do homem, o artista nunca havia se debruçado sobre ela. Ao realizar o filme, o diretor traça uma forma de reencontro, explorando o seu nicho, o seu quintal. O segundo problema é que se trata de um grupo essencialmente amedrontado por uma porção de valores e construções sociais que obstruem sua abertura ao diálogo. Quando conversa, por exemplo, com um morador do sertão nordestino ou de uma favela num morro carioca, o entrevistado tende a contar suas histórias com prazer, em jogos sempre muito ricos no trato com a língua e com a lógica argumentativa. Na classe média Coutinho encontrou um bloqueio, uma vontade de falar pouco. E até mesmo problemas na própria qualidade do relato: em determinado momento, para ele, aquele parecia um grupo sem graça.
O desafio que Coutinho se impõe é o de sempre entregar um filme ao espectador. Ele nunca se contenta a apenas abrir o dispositivo e aceitar passivamente o que a realidade lhe oferece. Sua intenção é que os espectadores cheguem a algum lugar no ato da fruição. Não lhe interessa o exercício no vazio. Em Edifício Master ele equilibra as dificuldades, reduzindo cada encontro a um segmento essencial e extrapolando o número de entrevistas: foram 37 apartamentos, dos quais 27 aparecem na montagem final. O filme apresenta um painel gigantesco: esforço balzaquiano da construção de uma Comédia Brasileira de tipos, rostos e gestos.
Esta busca assume o pressuposto de que existe sempre uma espécie de camada subjacente nas aparências, onde atingimos estratos mais profundos e complexos do real. No jogo que esta forma de arte opera com a realidade, há sempre uma verdade escondida, que a observação atenta acaba por revelar. Um dos momentos mais interessantes em relação a este caráter intempestivo do real aparece durante o depoimento de Rita e Lúcia quando a mãe de Lúcia atravessa o quadro fílmico: sua presença irruptiva amplia a complexidade da relação entre as personagens, oferecendo nuances imprevistas àquela apresentação.
O casal homossexual divide o apartamento com uma mãe policial: uma pequena narrativa, cheia de meandros, possibilidades, promessas de conflitos e, ao mesmo tempo, absolutamente simples. E completa – na experiência total do filme - a recorrência, flagrante nos outros relatos, de uma presença subtrativa dos pais na vida das filhas.
Nos filmes de conversa de Coutinho, não sabemos se o que os personagens dizem é verdade ou mentira. Neste campo apenas podemos intuir. O que interessa, porém, é que se existe mentira deliberada – e certamente há – ela é sempre um aporte a uma verdade mais profunda. A mentira sempre revela, pelo menos, o esforço de encobrir algo.
Em Edifício Master, muitos depoentes nos apresentam uma espécie de “mito fundacional” íntimo: narrativas auto-mitológicas que quase sempre se iniciam num passado de glórias e avançam rumo às dificuldades até o presente das filmagens. O que o filme deixa nítido, neste jogo, é como a chegada da câmera convida a uma performance. Não acessamos a pessoa, mas uma espécie de soma dela com sua imagem. O efeito câmera provoca no personagem um deslocamento, que põe a nu as forças e as fragilidades da auto-imagem. O síndico Sérgio, por exemplo, em seu depoimento, parece excessivamente orgulhoso de sua própria sabedoria e talento – o que imprime na tela um personagem provavelmente mais vaidoso do que sábio.
No depoimento de Renata ou dos integrantes da banda (João, Fábio e Bacon) flagramos uma leve hesitação, uma dessincronia entre a fala e a expressão, como se a verbalização de suas pretensões pessoais revelasse o pequeno absurdo em que repousam. Os personagens vão aos poucos, enquanto falam, perdendo, muito sutilmente, a fé em suas próprias palavras. A câmera observa este mal-estar, manifestado na frágil encenação de um excesso de segurança.
Quando o volume massivo de material filmado chega enfim à montagem, surgem novos problemas: não existe ali sugestão de onde cortar e colar. Até então Coutinho localizava eixos temáticos que lhe permitiam organizar os filmes em seqüências. Em Santa Marta – Duas semanas no morro (1987), Santo forte ou Babilônia 2000 (2000), os depoimentos mais ou menos tratavam de temas em comum como trabalho, espiritualidade, arte, vida e morte. Em Edifício Master, na ausência dessa possibilidade, optaram pela saída mais simples: elencar as conversas pela ordem da filmagem. O que se vê no filme finalizado é basicamente o percurso de entrevistas na semana de filmagem, com algumas “trapaças estratégicas”. Por exemplo: encontravam-se colados dois relatos de mulheres que diziam querer se atirar da janela; a montagem as afastou.
A intervenção mais grave e mais interessante, porém, foi em relação ao último depoimento, que na filmagem era o de Henrique, cujo “My Way” oferecia ao filme um gran finale, e que de diversas formas incomodava a equipe de montagem. Cabra marcado para morrer (1984), por exemplo, que poderia ter terminado com a tomada da palavra por Elizabeth Teixeira, encerra-se numa cena de importância cronológica, a morte de João Virgínio, que garante um anti-clímax ao final. A decisão enfim é tomada, segundo a montadora Jordana Berg, quando o amigo Eduardo Escorel diz que “se prevalecesse essa sequência, já imaginava o público do Festival de Brasília em pé, aos prantos, ovacionando a obra” (OHATA, 2013, p. 335). Foi suficiente. A equipe considera que Edifício Master não se presta a estes efeitos. Ser aplaudido num festival de cinema era para Coutinho um atestado de mediocridade. A explosão de Henrique é então deslocada para o meio e o filme conclui com a serenidade do depoimento de Fabiana. O filme adquiria desta forma a respiração que lhe era fundamental. Este gesto de generosidade aos seus personagens – esta recusa a golpes baixos - é absolutamente incomum.
O filme se estrutura sobre dois regimes de imagem: o “plano cheio” com a figura humana e o “plano vazio” de quartos, corredores e janelas, cujo silêncio carrega pequenas narrativas sobre os moradores. Aproximamo-nos, por outras nuances, do universo dos personagens nessa solitária devassagem de suas intimidades. Estas micro-narrativas espaciais carregam às vezes uma autonomia e espontaneidade fascinantes, como no episódio do gato e do menino no corredor, que compreende todo um arco dramático (a saída do elevador, a queda da chave, a batida na porta errada, a devolução do gato a um dono encoberto pelo ponto cego da câmera), cheio de tensões e alívios.
Edifício Master é pontuado também pela presença do canto, algo já esboçado nos filmes anteriores e que assumirá a função central, alguns filmes depois, em
As canções (2011). Muitas são as passagens em que os entrevistados cantam - ou apresentam um talento artístico - e o filme registra isto como uma das mais potentes formas de expressão intima. Coutinho sustenta que uma forma de religação se estabelece quando, dentro de uma comunidade lingüística, uma pessoa canta e outra ouve.
A escolha do edifício, localizado a duas quadras da praia de Copacabana, se deu, antes de tudo, por ser um prédio comum, igual a muitos outros da vizinhança. Cheio de histórias simples, mas vazio de grandes feitos, datas e nomes célebres. Interessava desde o princípio o relato de pessoas comuns e seu cotidiano. E mesmo estando tão perto da praia, não existe no filme o menor vislumbre da natureza. Edifício Master oferece uma experiência claustrofóbica. Este sufocamento formal é quase a manifestação imagética do emparedamento de alguns personagens. Quando a perspectiva sai do prédio, atravessando as janelas, ela esbarra no prédio em frente: uma massa arquitetônica opaca.
Alguns depoentes relatam suas dificuldades no convívio com as vozes que, da vizinhança, invadem o espaço doméstico através dos vãos das janelas. A sociofobia e a invasão da privacidade são conseqüências psíquicas da precarização da vida nos amontoados urbanos, do qual o Master é um exemplar.
Nos anos seguintes ao lançamento de Edifício Master, a classe média ocupará pouco a pouco o protagonismo no cinema brasileiro. Por outro lado, em ficções recentes como O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), Casa grande (Felipe Barbosa, 2014) e Que horas ela volta? percebemos que alguma coisa alcançada no Master vai deixando de ser buscada. Trata-se aqui, em primeiro lugar, de um deslocamento da classe média baixa para a alta - deslocamento também justificado pela história econômica recente do país e sua forma particular de desenvolvimento. Edifício Master apresenta a classe média antes da era Lula. Com a ascensão do PT ao poder executivo federal, esta classe muda muito. Mudou com Lula e mudou de novo com Dilma. E àquela classe média de 2001, Coutinho oferece no seu filme um retrato preciso e fascinante. O registro de um tempo, por mais que esta época não esteja diretamente implicada no texto do filme: em momento algum se fala, no Master, daquela conjuntura, mas ela se faz presente nas vozes e discursos.
Numa mesa-redonda da Revista Contracampo, em 2010 - Cinema falado sobre o cinema brasileiro - os debatedores apontavam justamente que uma das virtudes do cinema nacional – ou de qualquer cinematografia pobre - era sempre oferecer um registro de seu tempo. Em determinado momento dizem:
Tatiana Monassa: E eu acho que se, daqui a 50 anos, as pessoas quiserem ver, numa ficção, como eram as cidades hoje no Brasil, elas não vão poder. O aspecto “documental” inerente ao cinema está sendo sistematicamente sabotado.
Luiz Carlos Oliveira Jr: As pessoas vão ver o retrato dos artistas e cineastas: eles estavam trancados no quarto. Logo, não há as ruas, há imagens projetadas, uma abstração. (CINEMA FALADO, Parte 1: O consenso / “cinema de qualidade” / filmes de conceito. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/96/artcinemafalado1.htm. Acesso em: 16/11/2016)
O Brasil, nestes filmes, é filtrado por uma espécie de poesia de gaveta que oferece uma obstrução entre o olhar e o real. O estilo concebido como obstáculo. Coutinho procura dissolver isso: sua presença, sua fala e a possibilidade sedutora de travar um direcionamento mais localizado aparecem sempre em segundo plano. Quando aparecem.
Os discursos de denúncia ao monstro da classe média - da maneira como é desenhada pelas ficções brasileiras citadas acima - esbarram na espessura do real. Coutinho nos mostrou que este monstro também é belo. Existem beleza e graça nesses personagens e na maneira como eles narram. Em Edifício Master, também, acessamos um objeto extremamente complexo que escapa a todo instante à categorização sociológica de “classe média” (por mais que, num exercício de abstração, como o deste artigo, possamos capturar e reconhecer suas características). Quando Coutinho apresenta o filme, na ocasião de seu lançamento dizendo “este não é um filme sobre a classe média” não se trata apenas da blague de um artista. O contato que o filme estabelece é, acima de tudo, pessoa a pessoa, e com o que cada uma nos oferece. E isto põe tudo em crise.
Um dos relatos mais reveladores e mais problemáticos, neste sentido, é o do porteiro-chefe Luiz. Sua originalidade individual e a tamanha adesão à sua função social são de uma absurda simultaneidade, quando, nos seus apelos espirituais, chama Deus de patrão.
Reconhecemos, por outro lado, nas ficções contemporâneas a influência de algumas escolas de desdramatização do cinema europeu e asiático, neste esforço de fazer o brasileiro murmurar nos filmes. Em longas ou em curtas metragens premiados em festivais – como, por exemplo, os curitibanos Para minha amada morta (Aly Muritiba, 2015) e A casa sem separação (Nathália Tereza, 2015) - os personagens parecem artificialmente introspectivos. Temos uma grande dificuldade em reconhecer o Brasil e os brasileiros no que estes filmes levam às telas. Suas virtudes secretas - vulgaridade, inteligência, humor, tempero - são estímulos encontrados por Coutinho. Nosso cinema de ficção, de alguma forma, parou de buscar tais valores: vemos agora personagens frios, inseridos em uma narrativa fria, falando muito baixo, sempre muito sérios e compenetrados. Trata-se de uma traição em primeiro grau do pacto ontológico que o cinema estabelece com a realidade. Em Edifício Master, novamente, só interessa o real. São outros os valores e outras as energias convocadas. Muito mais provocantes.
O que pesa no exercício de alteridade a que somos convocados pelo filme, é o encontro com alguém que talvez sustente o oposto de nossas convicções, e que, a princípio, nos incomode profundamente. Por exemplo, pode incomodar, de um ponto de vista ideológico, a americanofilia de alguns personagens - marca reconhecível na classe média brasileira. Trata-se de um verdadeiro fascínio pelo american dream. Isto é muito sério na narrativa de Henrique, por exemplo, ou na de Daniela que compõe seus versos em inglês. Em Opian dreams escreve:
Opian dreams / Fields so green / Bright mind / Bright future / If they’ve ever reach her / Let her become a sculpture / Or free her / From third world culture (Sonhos de ópio / Campos tão verdes / Mente brilhante / Futuro brilhante / Se a alcançarem / A tornem uma escultura / Ou a libertem / Da cultura de terceiro mundo).
Causa mal-estar e, ao mesmo tempo, desperta o interesse por saber como a pessoa sustenta suas ideias.
Com os preconceitos emergem também algumas verdades importantes sobre os indivíduos. Por exemplo, quando Esther diz chorando: “(o assaltante) um rapaz bonito. Branco, bem vestido” interessa a contradição exposta neste segmento, ela é reveladora do ser humano num estado bruto de sinceridade. Uma das personagens que mais fascinam é também a que mais incomoda do ponto de vista político-ideológico: Maria Pia, a espanhola empregada doméstica que sustenta um posicionamento agressivo em relação à pobreza. O espectador é provocado a querer saber quem é essa pessoa e qual é a sua história. Quando coloca, muito maliciosamente, suas idéias a respeito dos pobres, ouvimos algo raro: a voz de um outro que a priori não nos interessa, mas que o cinema de alguma forma, no ato de escancarar as janelas, nos obriga a ouvir. Para Coutinho trata-se de algo essencial: o outro falando de si, daquilo que acredita e pensa, contando a sua história. E o outro é sempre uma oposição ao mesmo.
O tipo de interesse que estes episódios despertam nasce de um dispositivo absolutamente simples que guarda, na visão de Coutinho, algo de essencialmente estético e cinematográfico: o compromisso da arte é com o horror e a beleza do mundo. Por mais que, na superfície, possamos pensar na lógica do reality show, em profundidade o cinema de Coutinho entrega o exato oposto. O que vale aqui é a presença bruta, incorporando as máscaras, a mentira, a auto-ficção, fábulas e delírios de cada um dos depoentes na apresentação que fazem de si. Acessamos um personagem cuja beleza única, deriva de sua total complexidade.
Vendo, por exemplo, Que horas ela volta? notamos diversos a priori discursivos, reciclados da tradição teledramatúrgica, que nos fazem pensar o quanto hoje seria impossível, num filme em que figuram patroa e empregada, que a patroa seja apresentada como um ser humano. Ela precisa, para a eficácia da mensagem, ser reduzida a uma caricatura metafísica, uma encarnação do mal, e todos os seus gestos precisam ser ridículos para que o espectador seja convidado a rir. Um posicionamento muito cômodo em relação àquilo que o personagem representa. Quando se extrai a complexidade do personagem, tornando-o completamente equivocado aos olhos da platéia, eliminam-se as potências políticas do reconhecimento. Um personagem complexo, que mesmo quando perverso apresenta alguns traços de bondade, beleza ou graça, rompe um distanciamento confortável. Não se trataria mais de show de horrores: todos, inclusive cineasta e espectador, são implicados. Em Que horas ela volta? temos um esquema (a empregada, a patroa) em que cada uma precisa ocupar o seu nicho na mais absoluta clareza. A realidade, mesmo nos filmes, nunca se reduz a uma categorização sumária. Ela é um organismo que permite, no exemplo de Edifício Master, que uma empregada doméstica – contra toda conceitualização - sustente um posicionamento absolutamente reacionário.
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Dona Bárbara em Que horas ela volta? (2015) |
A opção pelo show de horrores visa um mal estar esvaziado. Farsa assumida como verdade em Que horas ela volta?. A realidade mesmo permanece em outros lugares: nas pessoas e em suas vozes, nas ruas e em seus ruídos. Coisas que o cinema sempre soube nos mostrar. Neste sentido, é sempre mais inquietante e perigoso desenvolver estratégias para diminuir os abismos e os muros que o espectador tende a estabelecer com a realidade representada. Quando a dramaturgia nasce de uma observação delicada ela, invariavelmente, se enriquece. O real é essencialmente contraditório e o cinema pode nos revelar suas nuances.
Seguindo esta lógica, Edifício Master apresenta um episódio quase didático: a terceira depoente, Maria do Céu, fala de um passado permissivo do edifício. Com contagiante alegria levanta e gesticula. Quando fala das melhorias recentes no edifício, de seu asseio moral, a atitude se torna subitamente grave. Testemunhamos a morte do prazer: toda aquela energia é subitamente castrada e com a chegada da civilização no relato vem também esta máscara triste da seriedade.
Trata-se aqui de uma pedagogia da moral hipócrita brasileira. Em todo o seu horror e graça.