Oficina de cinema na escola - dia 4 (parte 2)



A Oficina de cinema na escola ocorreu entre os dias 25 e 28 de setembro de 2017 no Centro de Desenvolvimento Profissional Professora Maria Olga Mattar, no bairro do Sítio Cercado em Curitiba. 

Ministrante: Miguel Haoni 
Registro: Bruna Silva Costa 
Edição: Matheus Moura Silva 
Produção: Beija Flor Filmes

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Oficina de cinema na escola - dia 4 (parte 1)



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Oficina de cinema na escola - dia 3 (parte 2)



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Oficina de cinema na escola - dia 3 (parte 1)



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Oficina de cinema na escola - dia 2 (parte 2)



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Oficina de cinema na escola - dia 2 (parte 1)



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Tesouros fervilhantes e escondidos de Ruiz: Doze pontos globais selecionados


por Jonathan Rosenbaum

Neste ensaio de 1997, Jonathan Rosenbaum nos introduz num desconcertante "lado B" da obra de um "cineasta B", Raúl Ruiz, hopping and buried treasures. O texto original em inglês pode ser lido em seu site, aqui.

Que notícia desanimadora, saber da morte de Raúl Ruiz aos 70 anos ao acordar hoje [em Agosto de 2011], logo depois de receber a caixa de DVDs portuguesa de seu extraordinário Mistérios de Lisboa ontem e de assistir a primeira metade à noite. Eu sabia, é claro, que sua saúde não ia bem, então não foi de todo um choque. Mas é claramente uma grande perda. (Uma coincidência curiosa: Raúl viveu o mesmo número de anos que o cineasta que mais admirava, Orson Welles.) 

Fomos amigos por um tempo, depois nos separamos - em grande parte, fico triste em dizê-lo, pois ficou um pouquinho cansado de minha inabilidade em falar e entender francês fluentemente. Mas sou muito grato pelas muitas horas que pudemos passar juntos, incluindo uma oportunidade que tive de apreciar que excelente cozinheiro ele era (para uma excelente memória dele, assim como uma das melhores apreciações de Ruiz que conheço - mesmo que eu discorde da premissa que Klimt qualifica-se como biopic [ao menos em sua versão original, longa e melhor], e o próprio Raúl discordasse da premissa de que Três Vidas e Uma Só Morte era um de seus melhores filmes - vejam "A Ghost in the Noon" de Adrian Martin, no indispensável blog de Girish Shambu). 

Uma filmografia crítica e anotada de Raúl Ruiz até meados de 2005 pode ser encontrada aqui. Logo abaixo, repostada, está o segundo de meus ensaios longos sobre ele (sem contar minhas longas resenhas para o Chicago Reader para alguns de seus filmes em específico), que está bem uma década obsoleta mas ajuda explicar algumas das razões pelas quais o valorizo tão alto. Ela apareceu originalmente na edição de Janeiro -Fevereiro de 1997 da Film Coment. Minha anterior peça de fôlego sobre Ruiz está disponível aqui, e minha longa entrevista de 2002 com ele, novamente ilustrada, pode ser encontrada neste link - J.R. 

1. O Segredo de Ruiz (Iowa City) 

Numa aposta, e com a ajuda de uma bolsa Rockefeller, Raúl Ruiz - nascido em Puerto Montt, Chile, 1941 - escreveu uma centena de peças de teatro entre os 17 e os 20 anos de idade. ("Era muito fácil", contou certa vez numa entrevista; "não eram peças de fato. Algumas tinham o comprimento de cinco páginas, outras tinham cem páginas, mas na maior parte eram peças muito curtas.") 

Muitos anos mais tarde, depois de se tornar cineasta, decidiu realizar 100 filmes, na altura em que estes já estavam na casa dos 50. O quão perto ele está de alcançar tal meta é discutível, dependendo de como se conta: um seriado ou uma minissérie contam como um filme ou como vários? E quanto aos vídeos? Mas o último cômputo de obras inclui aproximadamente 90 títulos, todos eles escritos ou co-escritos, assim como dirigidos, por Ruiz. De todo modo, Ruiz declara mais recentemente que adaptou sua ambição; agora é a de fazer mais filmes que todos os outros chilenos juntos. Mais como um cupim que como um elefante branco (para usar os termos sugestivos de Manny Farber), ele ainda quer forjar uma lenda - e já o fez. 

Como conseguiu realizar tanto? Uma quantia de fatores interligados entram em jogo. Primeiro, as cem peças que escreveu na juventude forneceram bastante material para reciclar. Além disso, em algum momento após se mudar do Chile para Paris, em 1974, cinco meses depois do golpe militar, começou a aceitar todo tipo de comissão da TV estatal (sobretudo francesa, mas também alemã, inglesa, holandesa, portuguesa, enfim italiana); a ideia foi não recusar nada, continuar trabalhando - encarando a realização como um processo artesanal, cotidiano. De um ponto de vista autoral, isto cria muitas ambiguidades - especialmente pois muitas das comissões de Ruiz para a TV, não importa quão reconhecíveis sejam para seus fãs, são essencialmente trabalhos anônimos para a maioria dos espectadores. 

Nos limites de minha experiência, Ruiz é o menos neurótico dos cineastas; ele nem mesmo parece se importar se o que está fazendo é bom ou não (e, como justamente notou, bom e mau trabalho envolvem a mesma quantidade de esforço). Nenhum filme funciona como o fim último de uma carreira em progresso, mas meramente como parte de um processo geral. Exemplo: Régime sans pain, de 1985 - um de seus filmes mais influenciados por seu amigo Jean Baudrillard, e talvez o que mais lembre uma nota Z SF (nota zero por falta) - veio de uma comissão para dirigir um vídeo musical. Ruiz apresentou a contraproposta de dirigir vários vídeos em vez de um; uma vez feito o acordo, filmou material o bastante para interconectar os vários vídeos, até chegar num longa. 

Pouco tempo depois, trabalhando como codiretor da Maison de la Culture de Le Havre, Ruiz acabou produzindo seus próprios filmes e os de muitos outros - ao mesmo tempo em que produzia, dirigia e/ou escrevia peças e outros eventos teatrais, escrevia romances, ensinava e criava instalações para museus. Durante o ano passado, rodou um filme em Taiwan, dirigiu Marcello Mastroianni em seu longa mais acessível por ora (Três Vidas e uma Só Morte, 1996), considerou virar cidadão francês, dirigiu Catherine Deneuve em um outro filme (Genealogias de um Crime, 1997), e ensinou cinema pela segunda vez na Duke. 

Se você ainda está se perguntando como Ruiz consegue realizar tanto - e permanecer relaxado, em vez de nervoso ou agitado, em relação a tudo isso - uma anedota que ele me contou faz alguns anos talvez seja indicativa de seu segredo como nenhuma outra. Durante parte do período em que estava escrevendo suas cem peças, Ruiz frequentou o famoso writer's workshop da Universidade de Iowa. Num seminário de escrita para teatro, depois de discutir com um professor que asseverava que todo drama é necessariamente baseado no conflito, Ruiz foi ver Kurt Vonnegut Jr., outro professor do programa, para pedir conselho; Vonnegut sugeriu que ele deixasse Iowa, e foi o que ele fez. (Logo depois, passou uma temporada escrevendo melodramas no México. Ruiz para Ethan Spigland em Persistence of Vision, nº 8: "Melodramas mexicanos usam a estrutura do melodrama europeu do século XIX, no qual o protagonista nunca conduz a ação mas, pelo contrário, é conduzido por ela. É uma lógica governada por milagres. Em soap operas americanas e histórias americanas em geral, é sempre uma questão de vontade.") 

Uma vez decidido que o drama não está baseado no conflito, muitas coisas imprevistas se tornam possíveis, e o cinema de Raúl Ruiz é uma delas. Veja-se o primeiro capítulo de seu livro Poética do Cinema (Paris: Dis Voir, 1995), que deixa claro este argumento de forma detalhada, inclusive dando-lhe algumas inflexões nacionais, culturais e políticas. 

A América é o único lugar do mundo onde, muito cedo, o cinema desenvolveu uma teoria narrativa e dramática geral conhecida como teoria do conflito central. Há trinta ou quarenta anos, essa teoria foi usada pela indústria americana dominante como uma regra geral. Agora, ela é a lei nos mais importantes centros da indústria de cinema do mundo. 

Quais são as implicações dessa lei? Avancemos 13 páginas para um dos argumentos finais do capítulo: 

Os critérios de acordo com os quais a maioria das personagens dos filmes de hoje se comportam vêm de uma cultura particular (a dos EUA). Nessa cultura, não só é indispensável tomar decisões como também agir segundo as mesmas, imediatamente (diferente na China ou no Iraque). As consequências imediatas da maior parte das decisões em tal cultura são uma espécie de conflito (falso em outras culturas). Diferentes formas de pensar negam a conexão causal direta entre uma decisão e o conflito que venha a resultar desta; negam também que a colisão física ou verbal é a única forma de conflito possível. Infelizmente, essas outras sociedades, que mantém secretamente suas crenças tradicionais nessas questões, adotaram aparentemente o comportamento retórico de Hollywood. Assim, outra consequência da globalização da teoria do conflito central - consequência política - é a de que, paradoxalmente, o "American way of life" tornou-se um engodo, uma máscara: irreal e exótica, é a ilustração perfeita da falácia que Whitehead chamou de "concretude deslocada" [ou reificação]. Tal sincronicidade entre a teoria artística e o sistema político de uma nação dominante é rara na história; ainda mais rara é sua aceitação pela maior parte dos países do mundo. As razões para essa sincronicidade foram largamente discutidas: políticos e atores tornaram-se intercambiáveis pois ambos se utilizam da mesma mídia, tentando dominar a mesma lógica de representação e praticando a mesma lógica narrativa - para a qual, lembremo-nos, a regra de ouro é a de que os eventos não precisam ser reais, mas realistas. (Borges notou certa vez que Madame Bovary é realista, mas Hitler não o é, de modo algum.) Ouvi um comentarista político elogiando a Guerra do Golfo por ser realista, ou seja, plausível, enquanto criticava a guerra na antiga Iugoslávia como irrealista, pois irracional. 

O universo metaficcional de Ruiz não é real, nem realista - só é possível, ou melhor, concebível, porque Ruiz o pensa e filma. Quer isto o faça bom ou ruim, comercial ou não-comercial, é outra história, existindo em algum lugar num universo paralelo - e felizmente não num universo em que Ruiz precise se preocupar muito pois, diferentemente dos praticantes da teoria do conflito central, ele não tem necessidade de atrair grandes multidões de modo a continuar trabalhando. 

Isto faz dele um louco, ou nós? 

2. Para o proveito de uma completa revelação (Boston) 

Em 1990, quando ensinava em Harvard, apresentando sua primeira instalação ("A Expulsão dos Mouros") no Instituto de Arte Contemporânea de Boston, e rodando seu primeiro filme americano (The Golden Boat), Ruiz foi entrevistado na TV de Boston pelo crítico David Sterritt, que lhe perguntou, "Você tem um público particular em mente enquanto realiza seus filmes?" "Creio que sou bastante amigável", Ruiz respondeu. "Tenho muitos amigos, e estes amigos são de diferentes países e de diferentes esferas econômicas e culturais. Minha ideia é colocar todos os meus amigos juntos". E acrescentou assumir que todos os seus amigos fossem duplicados por pessoas de gostos e temperamentos similares, "então talvez o modelo de meu público sejam esses amigos".

Um pouco e durante uma década, fui um desses amigos - tendo encontrado Ruiz diversas vezes em Rotterdam, San Sebastian, Manhattan, Cambridge, Chicago, Washington e, mais frequentemente, em Paris, sua principal base de operações. Vi metade de seus filmes e vídeos em muitos dos mesmos lugares, assim como em Cannes, Locarno, Londres, Los Angeles e Santa Barbara - em alguns casos sem legendas, em muitos apenas com uma compreensão parcial. Também fui privilegiado em experimentar sua estupenda comida (especificamente, uma bouillabaisse preparada e servida em discretas camadas ou "capítulos" - forma narrativa de cozinha evocada em termos mais grotescos no último episódio de A TV Dante: Cantos 9-14, uma série de 1992), e uma vez tentei, sem sucesso, enganchá-lo numa comissão que consistia em "completar" The Dreamers de Orson Welles (um precioso projeto tardio derivado de duas histórias de Isak Dinesen que resultaram em aproximadamente meia hora de copião rodado por Welles).  


Em outras palavras, qualifico-me como ruiziano, mesmo que eu goste de alguns de seus filmes bem mais que de outros. A última vez que nos encontramos, em Paris junho passado, foi logo depois de ter visto Três Vidas e uma Só Morte em Cannes, que me atingiu como sendo o melhor de seus filmes que vi em muito tempo, e no entanto descobri rapidamente não ser um de seus favoritos (malgrado o fato de que ele o reconhecia, completamente, como trabalho seu). Quando lhe disse que o filme me lembrava o Buñuel tardio, respondeu-me que não via isso como um elogio - preferindo muito mais os filmes mexicanos de Buñuel que seus últimos trabalhos franceses, e seu próprio Fado majeur et mineur, de 1995 (que não gostei muito - ou, de resto, não entendi muito) em relação a Três Vidas e uma só Morte. Um esforço prévio meu em me ver com Ruiz (Mapeando o Território de Raúl Ruiz, 1990) pode ser encontrado em minha coleção Placing Movies: The Practice of Film Criticism (University of California Press, 1995). O que se segue retoma alguns dos mesmos argumentos; mas, de modo geral, a intenção aqui é a de corrigir, acrescentar, atualizar muitas de minhas observações, no lugar de replicá-las. Dado que somente quatro dos longas de Ruiz estão atualmente disponíveis nos EUA em vídeo - A Hipótese do Quadro Roubado (1978), O Telhado da Baleia (1982), A Vida é Sonho (1986), e The Golden Boat (1990) - talvez seja mais proveitoso começar por eles. 

3. A Hipótese do Quadro Roubado (Paris)
Uma de suas primeiras comissões para a TV francesa, e possivelmente o melhor de seus filmes em preto-e-branco. Sua tarefa: fazer um documentário de arte sobre o pintor e escritor francês Pierre Klossowski - um romancista (cujo um dos romances, La Vocation Suspendue, Ruiz já tinha adaptado no ano anterior), comentarista do Marquês de Sade, irmão do pintor Balthus, e pintor de alguma distinção por si mesmo. O que resultou daí não é exatamente um documentário de arte, mas começa oferecendo uma letal paródia de um. Ruiz começou considerando como eram os documentários para a TV em geral: "Vi programas de televisão a respeito de personalidades famosas e observei que o formato usual consiste numa voz-over que apresenta questões. Então, aderi a esse formato e o desenvolvi numa espécie de diálogo filosófico. Esse é o formato básico, que é exatamente o mesmo de qualquer programa de televisão banal sobre quase qualquer tipo de coisa." Como notou o crítico Ian Christie - provavelmente o indivíduo mais responsável pela introdução de Ruiz no mundo anglófono - as duas estratégias principais de Ruiz foram "a paródia e o literalismo, ambas 'racionalistas' na linhagem, e calculadas para subverter o discurso normal da televisão". Sabendo da importância de valores esmerados de produção na França, Ruiz contratou o soberbo Sacha Vierny, que rodou todos os primeiros longas de Alain Resnais, e mais recentemente trabalhou com Peter Greenaway.


O subversivo na execução de Ruiz de sua tarefa é que ele essencialmente inventou uma série de pinturas fictícias de um pintor fictício - inventado, por sua vez, por Klossowski, que colaborou com Ruiz no roteiro - e conseguiu um ator para fazer o papel de um colecionador de arte fictício, que se empenha num diálogo com o narrador no extracampo a respeito das pinturas. O que resulta disso não é apenas uma paródia, mas também um conto de mistério, um ensaio sobre a representação e, como coloca o crítico Thomas Elsaesser, "uma meditação muito literária a respeito do tema dos mundos paralelos, das mensagens secretas que se disfarçam de acaso e coincidência".

4 & 5. Het dak van de Walvis/O telhado da baleia (Holanda e Patagônia)

Em algum ponto do futuro, um "milionário comunista" (Fernando Bordeu) da Patagônia convida um antropológico casal da Holanda (Jean Badin e Willeke van Ammelrooy) para virem visitá-lo acompanhados do filho e estudarem seus vizinhos índios, Éden e Adão (Ernie Navarro e Herbert Curiel), os últimos sobreviventes de uma tribo perdida. Vestidos de ternos negros, essa estranha dupla confunde os esforços do casal em penetrar sua linguagem ("A chuva de hoje não tem o mesmo nome da chuva de ontem", por exemplo), mas enquanto isso os antropólogos e o filho passam por uma série de alterações profundas; o menino até mesmo se submete a uma transformação sexual espontânea depois de olhar para dentro de um espelho e engravida-se. 

Rodado pelo inigualável Henri Alekan (que Ruiz, praticamente sozinho, tirou da aposentadoria) no interior da Holanda durante doze dias, O Telhado da Baleia tem mais de um ponto satírico a colocar sobre a cultura, a linguagem e a representação. O filme se desdobra em meia dúzia de idiomas - um deles inventado por Éden e Adão - e as permutações formais são ainda mais numerosas que as linguísticas. Cada tomada nesta lúdica e impassível comédia se torna um evento em si, menos em termos de trama que em termos do que Ruiz está fazendo com a composição, a cor, a perspectiva, o posicionamento da câmera e a textura visual. Esta é uma das melhores colaborações de Ruiz com o compositor chileno Jorge Arriagada - um sustentáculo de seu trabalho tanto quanto o foi Bernard Herrmann, num dado período, na de Hitchcock - cujas trilhas se especializam em fornecer exuberantes e atmosféricos clímaces hollywoodianos, amiúde sem quaisquer motivações dramáticas aparentes. 

6. Mémoire des apparences/A Vida é Sonho (Le Havre)

Este veio de uma produção teatral de Ruiz para a peça espanhola de Calderón de la Barca, A Vida é Sonho, que utilizou uma nova tradução francesa de dois textos de Calderón por Jean-Louis Schefer, outro amigo de Ruiz e colaborador ocasional. Ambos os textos têm o mesmo título, La Vida Es Sueño, mas foram escritos com quarenta anos de diferença, tratando-se respectivamente de uma versão "profana" e uma "sacra" da mesma história. A produção para o palco de Ruiz usou a versão "profana", assim como o filme, embora este último também consiga incorporar alguns elementos da versão "sacra". 

Na peça original de Calderón, escrita em meados da década de 1630, Segismundo, o filho do rei da Polônia, é aprisionado numa remota torre pelo pai após o horóscopo deste último predizer que seu filho iria destituí-lo. Depois, o rei ordena que Segismundo, ainda adormecido, seja trazido ao palácio por um dia, ocasião em que Segismundo de fato tenta assumir o poder. Quando acorda em sua prisão na torre, supõe que sonhou o episódio do palácio. O monólogo de Segismundo no final do segundo ato, que foi comparado ao solilóquio "Ser ou não ser" de Hamlet, conclui, na tradução de William E. Colford [traduzimos aqui diretamente do original em espanhol], 

Que é a vida? Um frenesi. 

Que é a vida? Uma ilusão. 

Uma sombra, uma ficção, 

e o maior bem é pequeno; 

pois que toda a vida é sonho, 

como os sonhos, sonhos são. 

No terceiro ato, amparado por sua convicção, Segismundo conduz os rebeldes polacos ao palácio. Na versão "Auto sacramental" da peça, escrita na década de 1670, as personagens tornam-se abstrações alegóricas como Sabedoria, Livre-Arbítrio, Homem, Graça, Amor. De acordo com Colford, "O triunfo de Segismundo sobre si mesmo é comparado à redenção do homem decaído através dos Sacramentos do Batismo e da Comunhão (Corpus Christi)." 

No filme - não tanto uma adaptação das peças, mas uma realocação de certas passagens dentro de uma estrutura mais ampla de barroquismo hispânico - essas passagens funcionam na história como um dispositivo mnemônico através do qual um membro da resistência clandestina chilena memoriza os nomes e endereços dos colegas membros da resistência e, dez anos depois, tenta reuni-los num cinema provinciano que aparentemente está apresentando uma adaptação da peça de Calderón. Mas os pedaços do filme que vemos não vêm de uma única fonte, consistindo antes numa salada de gêneros pop - space opera, filme noir, capa-e-espada, melodrama, até mesmo um pouco de musical surrealista. Isto quer dizer que o famoso monólogo de Segismundo toca sobre uma fantasia das Mil e Uma Noites e uma aventura de Flash Gordon, e o próprio auditório do cinema se torna um segundo mundo de sonho onde pássaros voam por sobre as cabeças, galinhas se pavoneiam embaixo, um trenzinho elétrico segue, um tiroteio hollywoodiano à antiga tem lugar entre as poltronas, e um posto policial encontra-se, espantosamente, diretamente atrás da tela do cinema. 

7. The Golden Boat (Nova York)

Em Novembro de 1987, num simpósio que se deu em Manhattan, um membro da audiência, apontando o interesse de Ruiz por lentes grande-angulares e ângulos baixos e pronunciados - constituindo o que muitos chamaram seu estilo de câmera Wellesiano - indagou-lhe se alguma vez considerou rodar em 3-D. Sua resposta tranquila foi a de que sim, e que inclusive tinha elaborado um método: pintar todos os atores e cenários de vermelho e verde, distribuindo óculos 3-D vermelhos e verdes para a audiência. "É possível fazer o mesmo no teatro", acrescentou amistosamente. 

Essa espécie de descontraída alienação a respeito da ilusão narrativa - refletida também em seu caro projeto de filmar Hamlet com um elenco de vegetais - leva ao que talvez possa ser considerado tanto como a bênção quanto como a maldição do trabalho de Ruiz, essencial no que diz respeito ao que é bom e ruim ao mesmo tempo em The Golden Boat, seu único longa feito na América até agora. Rodado pela engenhosa Maryse Albert (Crumb) e musicado pelo eclético John Zorn (outro parceiro de Ruiz), este filme mina suas premissas tão repetida e incessantemente em termos de cenários, personagens e trama, a ponto de se tornar uma espécie de ilustração perfeita da lei dos rendimentos decrescentes. (mesmo Três Vidas e Uma Só Morte, com todo seu relativo charme e arrojamento, resvala em problemas similares; como um amigo francês notou, "Se tudo pode acontecer num filme, nada do que acontece nele importa muito"). Visitando Ruiz em Harvard entre os dois longos fins de semana que passou rodando The Golden Boat em Nova York e arredores, lembro-me de que estava insatisfeito com o tamanho da equipe, várias vezes maior que o tamanho com o qual estava acostumado; parecia que todos os estudantes da baixa Manhattan queriam trabalhar no filme, e a Ruiz, caracteristicamente, pareceu difícil dizer não. 

O filme de fato traz algumas das opiniões de Ruiz sobre a violência americana, teoria do conflito central inclusa: a figura central do filme é um serial killer sem-teto chamado Austin (Michael Kirby) cujas facadas são tão ineficazes que suas principais consequências são sobretudo formais (no primeiro assassinato que vemos, a estocada da faca coincide com a primeira das muitas trocas temporárias do filme entre a cor e o preto-e-branco). O jovem herói (Federico Muchnik) deixa despreocupadamente de ser um artista e crítico de arte da Village Voice uma cena depois, e sua orientadora de tese, interpretada inicialmente pela escritora Kathy Acker, é transformada mais tarde em Alina (Mary Hestand) - a primeira vítima do assassino, ressuscitada sem explicação (Uma exploração mais sistemática deste princípio encontra-se em La Professor Taranne, uma adaptação de 1987 de uma peça de Arthur Adamov na qual os onze atores revezam entre si os papéis). O espaço físico é igualmente mutável, e sobram gags causais: quando duas personagens vão jantar, uma delas pede um sushi dog e a outra uma enchilada wonton; além disso, boa parte do diálogo gira em torno de réplicas absurdas como a seguinte: 

Tony (Michael Stumm): "Conta-me, Amélia, amas-me ou amas ao mundo?" 

Amélia (Kate Valk): "Isso mesmo!" 

Tudo isso conduz a uma superfície vivaz e imprevisível mas, ao longo dos 83 minutos do filme, encontramo-nos progressivamente nos interessando cada vez menos com o que acontece e com o porquê. O aspecto negativo da metaficção de Ruiz é fazer tudo parecer ao mesmo tempo um conceito metafísico e uma arbitrariedade; mesmo quando os detalhes permanecem prazerosos para o olho e para a mente (o que é frequente), reações emocionais de longo prazo distantes do entretenimento e a sensação de atravessar um sonho confuso ficam bastante limitadas. Sentimentos comparáveis de deriva infundem Treasure Island (1986) e o muito superior Dark at Noon (1992), ambos os quais discutivelmente sofrem mais que se beneficiam de seus relativamente grandes orçamentos, seus atores famosos, sua estudada indiferença à teoria do conflito central. A esse respeito, Três Vidas e Uma Só Morte, com seu repertório de histórias repetidas como no "Wakefield" de Hawthorne e em "The Dreamers" de Dinesen, e com seu emprego flexível de Mastroianni, é muito mais bem-sucedido em levar Ruiz a um público maior. 

Por outro lado, se aceitarmos as limitações de Ruiz como parte de uma estratégia geral, não é meramente o seu próprio cinema que, consequentemente, ilumina-se. Consideremos sua recente defesa de The Black Cat, de Edgar G. Ulmer, em Projections 4 1/2: 

O filme se apresenta como uma série de situações, cada qual tendo uma existência independente por si mesma: um jogo de xadrez, a fobia de Bela Lugosi por gatos, alusões a uma batalha alegórica (Europa como campo de cadáveres), design Bauhaus. Todos esses elementos são histórias das quais o filme poderia se furtar, e que no fim coíbem e obscurecem a história central. Um mau crítico chamaria tais fragmentos externos de "decorativos". Em vez de ajudar a revelar gradualmente a narrativa, como num filme que conta somente uma história, cada uma dessas histórias morre de fora da área de ficção que cerca a narrativa. 

8 & 9. Autocrítica #1 (Chile e Austrália) 

Meu ensaio de 1990 sobre Ruiz está limitado sobretudo por certa relutância em considerar os aspectos chilenos de meu tema - preferindo considerar "Ruiz" menos como "uma entidade biológica" que como "um ponto de convergência particular entre diferentes níveis de cultura" e um estado de exílio perpétuo. Embora eu estivesse limitado à época por ter visto pouco dos primeiros filmes de Ruiz, nenhum dos quais engajando-me tanto quanto seus mais recentes, fui devidamente beliscado por tal evasão por Zuzana M. Pick em seu livro The New Latin American Cinema: A Continental Project (University of Texas Press, 1993); Pick tem algo proveitoso a dizer sobre os aspectos chilenos de filmes franceses como As Três Coroas do Marinheiro (1982). 

Desde 1990, Ruiz retornou ao Chile diversas vezes, continuando a filmar por lá (em A TV Dante, por exemplo), e desenterrou ao menos um longa antigo "perdido", Palomita Blanca (1973). O desconcertante dos seis cantos (9-14) do Inferno que Ruiz "adaptou" para o A TV Dante do canal 4, cada qual começando com o título "Santiago de Chile", com duração de dez minutos cada, é que eles raramente ilustram o original, ao menos de modo óbvio. (típico modo inusitado: para acompanhar "Contudo medo seu dizer me dava", Ruiz oferece a tomada de um despertador em chamas). Como nos oito cantos precedentes adaptados por Peter Greenaway, a tradução de Tom Phillips pode ser ouvida no extracampo, com Bob Peck recitando as falas de Dante e John Gielgud as de Virgílio. Mas Ruiz nos dá outros Dante e Virgílio filmados, interpretados respectivamente por Francisco Reyes e Fernando Bordeu (o "comunista milionário" de No Telhado da Baleia). 

Numa brilhante conferência dada de modo a acompanhar uma projeção australiana, com posterior discussão, de A TV Dante com a presença de Ruiz em 1993, o crítico Adrian Martin analisou os múltiplos erros de continuidade nas primeiras tomadas de Um Cão Andaluz - a figura de Buñuel com e sem relógio de pulso e gravata, por exemplo - bem como o raccord de olhar de Buñuel olhando a lua com a própria lua, para descrever quatro modos distintos com os quais Ruiz cria "cenas impossíveis" ao combinar imagens: (1) o raccord de olhar de Hollywood usado por Hitchcock para estabelecer a expectativa de continuidade convencional; (2) os cortes gráficos da montagem russa (e dos comerciais de TV), exemplificados perto do começo do 9º canto de A TV Dante por uma estátua utilizada como centro do primeiro plano em consecutivas tomadas de modo a construir um espaço "impossível"; (3) o estilo do cinema impressionista francês, utilizando-se de recursos como sobreposições e dissolves aparentemente desprovidos de sentido; e (4) o estilo de "livre associação" utilizado por Maya Deren em Meshes of the Afternoon, no qual abundam imagens simbólicas (como o já citado relógio em chamas) e raccords fisicamente disjuntivos.




Ruiz, paradoxalmente, notou nessa mesma discussão australiana que o vídeo torna possível tanto fazer quanto utilizar filmes como mapas - espaços para que indivíduos neles explorem e se movam, algo oposto a experiências emocionais coletivas próximas do teatro. E, na medida em que mapas podem cartografar espaços "impossíveis", tanto quanto os possíveis - ideia explorada num curta-chave de Ruiz feito em 1980, Le Jeu de l'oie (Snakes and Ladders), feito para promover uma exposição de mapas - as aventuras filosóficas e metafísicas do trabalho de Ruiz prosperam sobre tais potencialidades.

10. Coisas de criança (Portugal) 

Como picarescos heróis órfãos, certos filmes de Ruiz circulam o globo incógnitos, ou então surgem inesperadamente sob vários disfarces; para todo seu charme, Ruiz não é nenhum agente de vendas, e seus trabalhos permanecem à mercê daqueles que o são. O primeiro de todos que vi, o enlouquecedoramente gratuito Vanishing Point (1984), foi parar na TV alemã. Meu atual favorito - juntamente com Of Great Events and Ordinary People (1979), um documentário (sobre as eleições em Paris) que astutamente desconstroi a forma, e Mammame (1986), uma excitante e muito wellesiana "tradução", tomada-por-tomada, de uma performance de dança de Jean-Claude Gallotta - é a deliciosamente poética minissérie portuguesa em três partes Manuel na Ilha das Maravilhas (1985). Esta foi remontada num longa supostamente malogrado, Os Destinos de Manuel (1986), e resenhado como tal na Variety. Após esperar em vão por rever o original por muitos anos, encontrei enfim uma versão dublada em francês, com legendas em inglês, transmitida uma vez, no decorrer de três semanas, na TV australiana, e que ainda me pareceu tão excelente quanto parecera doze anos atrás. É o único trabalho de Ruiz que conheço cuja forte emoção libera-se periodicamente da ironia. 

Se tivéssemos qualquer coisa parecida com a cultura cinematográfica racional que boa parte dos críticos rotineiramente fazem de conta que aproveitamos, teríamos todos livre e pronto acesso a esta obra-prima de 150 minutos, cuja versão original está guardada na Cinemateca Portuguesa. Filmada em 16 milímetros na mesma ilha portuguesa onde Ruiz antes rodou Cidade dos Piratas e Vanishing Point, estrelando seu ator-mirim habitual Melvil Poupaud (um axioma Ruiziano) [Rosenbaum engana-se, o protagonista é interpretado por Ruben e Marco Paulo de Freitas] este filme oferece os mais prolongados encantamentos narrativos e imaginativas riquezas que encontrei na obra de Ruiz; e os esplendores visuais de sua ilimitada fantasia rivalizem talvez apenas com os de Cidade dos Piratas

Vindo de uma família de capitães do mar, Ruiz está enfeitiçado por histórias de marinheiro, e os espíritos de Stevenson e Dinesen - sem falar dos filmes de aventura de Richard Thorpe - pairam sobre muitas de suas invenções. Compartilhando com Jorge Luis Borges o gosto pela fantasia vitoriana, Ruiz sonhou por anos filmar The Man who Was Thursday. Manuel é o único trabalho seu que conheço a colocá-lo at a hailling distance de Lewis Carroll, e ainda assim permanece pouco mais que um vago rumor, mesmo dentre grande parte dos fãs de Ruiz. Será porque o público mundial decidiu em masse que veriam em vez disso O Paciente Inglês ou 101 Dálmatas? De algum modo suspeito que a eles - e a nós - não se deu escolha. 

11 & 12. Autocrítica #2 (Irã e Japão)


Em meu ensaio de 1990 sobre Ruiz, afirmei que La Chouette aveugle (A Coruja Cega, 1987) apontava para uma "exaustão temporária" da parte de Ruiz e desenvolvia certas ideias de A Vida é Sonho, "incluindo o uso de um cinema de província semelhante". Ao rever recentemente este alucinante filme, depois de ler sua defesa apaixonada por Luc Moullet na Trafic nº 18 (primavera de 1996), percebo agora que aquela exaustão era, estritamente, minha; fora ter algo a ver com sonhos e filmes, A Coruja Cega tem pouca relação com A Vida é Sonho; e a sala de cinema do filme - um cinema árabe - não é nem similar àquele, nem provinciano. Tais são os perigos de ver a maior parte da obra de Ruiz sem legendas, e com a diferença de vários anos. 

Livremente baseado no famoso e notável romance iraniano homônimo de Sadegh Hedayat (1936) e numa peça espanhola de Tirso de Molina (1625), a estranha história trata de um jovem projecionista que trabalha em Belleville (o bairro do próprio Ruiz em Paris). Em razão de muito do que lhe acontece se desdobrar em sonhos, e em razão de ser frequentemente impossível separar seus sonhos da vigília, ou mesmo dos filmes árabes que projeta, o filme desafia qualquer sinopse comum. Moullet, que lhe chama de "a mais bela joia do cinema francês da última década" - embora perversamente chegue perto de desconsiderar os outros filmes de Ruiz - declara: "Vi A Coruja Cega sete vezes, e sei um pouco menos do filme a cada revisão". Aproximadamente na metade do filme, a língua falada muda do francês (com pedaços de alemão e italiano) para o espanhol antigo e para o árabe - ambos os quais legendados num falso francês antigo e, porém, como aponta Moullet, não de modo a corresponder a algo que remotamente se assemelhe a uma tradução correta. 

Um filme, dir-se-ia, em disparatês - como pode-se talvez falar do disparate visual e conceitual de Cidade dos Piratas - mas não, de fato, um filme que se qualifica como arbitrário, mais do que o são os sonhos aos quais se assemelha. Tampouco os termos comumente usados para este tipo de fantasia - surrealismo ou realismo mágico - parecem de fato adequados. Ruiz guarda uma importante relação com ambos, mas é também cuidadoso em distinguir-se de tais programas bem-estabelecidos. "Meu problema com os surrealistas", disse a Ethan Spigland "é que tenho a suspeita de que queriam manter-te ocupado mesmo durante o sono. É um problema capitalista". E ele pode ser separado dos realistas mágicos, de Gabriel García Márquez a Italo Calvino, em virtude do fato de que mantém uma relação diferente com a ficção. "Meus filmes não são filmes de ficção, mas sobre a ficção", disse para Adrian Martin ou Christopher Tuckfield em Cinema Papers nº 91 (janeiro de 1993). (A "entrevista" em questão mesclou duas conversas que tiveram lugar com três anos de diferença, de maneira apropriadamente ruiziana). "Tenho-me interessado primariamente pelo problema de como mais de uma ficção pode existir ao mesmo tempo." 

Como mais de uma cultura pode coexistir no mesmo espaço não é questão menos importante - fornecendo a base para trabalhos como No Telhado da Baleia, Treasure Island (filmado em Portugal e em Senegal), "A Expulsão dos Mouros" (e seu livro de companhia em duas partes, The Book of Disappearances/The Book of Tractations, que inclui um espelho em lâmina destacável, de modo a ler as páginas impressas ao contrário), A TV Dante, Las Soledades (um curta de 1993 para a BBC que vê o Chile através dos olhos de um pintor clássico chinês), e A Coruja Cega. Implicitamente, constitui o contexto de Tous les Nuages sont des horloges (All Clouds are Clocks, 1988), longa francês livremente adaptado de "um romance de mistério japonês ao qual falta o último capítulo" por "Eiryo Waga" (na verdade, um pseudônimo de Ruiz - que escreveu o livro de modo a ser adaptado por seus alunos de roteiro na FEMIS, encarregados também de elaborar o último capítulo). A linha de abertura de Dark at Noon é "Tenho duas paixões - milagres e idiomas estrangeiros", e de certo modo tal mote pessoal descreve ambas as obsessões Ruizianas: múltiplas ficções miraculosamente coexistindo no tempo, múltiplas culturas linguisticamente coexistindo no espaço. E, sempre que essas obsessões combinam-se, seu trabalho se torna muito mais que passatempo. Como Dave Kehr escreveu a mais de uma década, "Seu trabalho não é apenas um sistema - de narração, de linguagem - reduzido ao caos, mas o espetáculo de um sistema (o sistema de imaginação de Ruiz) devorando outro (o sistema de significação da linguagem). Uma ordem substitui outra: é revolução, não anarquia." 

"Uma história é a conexão entre os objetos do set", Ruiz escreveu certa vez num artigo. E as conexões entre os objetos criadas por Ruiz forjam uma lenda preciosa, ao mesmo tempo em que contam uma história - mesmo que certas porções da história e lenda permaneçam ainda dispersas e enterradas, como pistas numa caça ao tesouro - ou como partes de um corpo desmembrado feito quebra-cabeça, noção recorrente encontrada em peças dispersas de Ruiz como Utopia (1975), Diálogo de Cães (1977, disponível na mesma cópia em vídeo de A Hipótese do Quadro Roubado), Le Borgne (1981), e A Coruja Cega. Junte todas as partes do quebra-cabeça e obterá um milagre, uma ficção, uma lenda, uma noção de exílio da utopia, e um bom número de objetos duradouros, espalhados ao longo de vastas distâncias do tempo e do espaço. 

- Film Comment, Janeiro-Fevereiro de 1997. Tradução: Eduardo Savella.

Oficina de cinema na escola - dia 1



A Oficina de cinema na escola ocorreu entre os dias 25 e 28 de setembro de 2017 no Centro de Desenvolvimento Profissional Professora Maria Olga Mattar, no bairro do Sítio Cercado em Curitiba. 

Ministrante: Miguel Haoni 
Registro: Bruna Silva Costa 
Edição: Matheus Moura Silva 
Produção: Beija Flor Filmes

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1 ano de Vestido sem costura em PDF

No dia 3 de maio de 2017 o Vestido sem costura – blog de cinema veio ao mundo e para comemorar o seu aniversário de um ano, resolvemos presentear aqueles que (assim como nós) gostam de imprimir os textos para ler. Neste documento estão os 46 textos lançados por ordem de publicação. Boa leitura!

Prólogo à Poetica del Cine 2


por Raúl Ruiz

As três poéticas do cinema de Raúl Ruiz - a última incompleta - foram reeditadas no Chile pelas Ediciones UDP, numa nova tradução em espanhol por Alan Pauls. Escritas majoritariamente em francês, Apresentamos aqui o prólogo da Poética 2, traduzida a partir do texto de Pauls. 

As páginas que seguem são uma tentativa - uma primeira tentativa - de reunir, no menor espaço possível, o corpus de opiniões, intuições e razões que ao longo dos anos me levou a fazer filmes. É inevitável que de vez em quando a uma razão siga-se uma objeção, a uma intuição um chiste e a uma opinião uma provocação ou um desafio. O cinema é um ofício militar, que compartilha muitas de suas ocupações: madrugar, longas marchas, comida ruim, gente mobilizada. Arte solar por excelência, o cinema exige ter a cabeça nas nuvens e os pés no chão. Primeira vítima do processo de industrialização da cultura, o cinema se tornou de uma só vez a arte mãe da maioria das artes aplicadas (ao que parece, um dos traços distintivos do nosso tempo é a tendência de encadear e desencadear processos que aparecem subitamente). 

Chamar o cinema de "arte mãe" tem mais de um sentido. Recordemos que durante anos atribuiu-se-lhe o mérito de ser a arte manipuladora, a orquestradora de todas as belas-artes que a precederam. O teatro, a música, a literatura, a pintura, a arquitetura e a dança encontraram no campo cinematográfico um modo eficaz de se entender e cooperar criativamente numa espécie de ópera do mundo. À sua maneira, propiciando esse jogo de encontros bem sucedidos e falidos entre as distintas disciplinas artísticas, a atividade cinematográfica realizava uma operação intelectual muito parecida a essa prática religiosa que a cultura chinesa chamava Chang: a arte de manipular religiões. No Chang, através de um jogo de mediações, interrelações e reflexos, o budismo podia colocar o taoísmo em perspectiva e recorrer, em caso de perplexidade, ao confucianismo. Na arte cinematográfica, o retrato rítmico dos fatos do mundo reinventa o teatro; o espírito da dança pode inspirar e suscitar novas formas de expressão valendo-se das três mil e tantas mímicas que o rosto pode criar e expressar. Opera mundi, arte mãe, o cinema se tornou de pronto uma arte criminosa, a mãe que, invocando a "razão de Medéia", mata seus filhos e, como Cronos, os devora. O cinema se converteu no mar morto onde desembocam as artes agonizantes de nosso mundo. 

"Triste época", diremos. Mas isso não é tudo. O cinema é também a arte mãe das distintas maneiras de industrializar as demais atividades que o envolvem e o explicam. Lugares comuns, dirão. Sem dúvida. Mas não esqueçamos que o lugar comum é o refúgio perfeito das coisas inexplicáveis: "O século XXI será religioso ou não será", dizia Malraux, e a frase, à força de ser repetida, se tornou outro lugar comum, até que o atentado contra as torres gêmeas de Nova York a transformou num enigma terrível. "O cinema, arte para todos": outro lugar comum. Sua contrapartida são as mil salas vazias ou transformadas em templos para seitas. Preencher os lugares públicos é o lugar comum por excelência da sociedade das massas, e a desaparição da noção de pleno emprego é seu correlato irredutível. 

Onze anos separam estas linhas da primeira parte de minha Poética do Cinema. Entretanto, o mundo mudou, e o cinema com ele. A "Poética do Cinema 1" devia ser um chamado à rebelião. O que escrevo hoje está mais para uma consolatio philosophica. Porém, que não se confunda: um pessimismo salutar pode valer mais que um otimismo suicida. 

"Luz, mais luz!", disse Goethe antes de morrer. "Menos luz, menos luz", repetia Orson Welles num cenário de cinema, na única vez que o vi. No cinema atual, (e no mundo) há muita luz. É hora de voltar às sombras. Portanto, meia-volta e às cavernas! 

As ideias que desenvolverei aqui (por vezes de maneira errática) giram em torno de três intuições ou metáforas. A primeira é que as imagens que compõem um filme determinam o tipo de narração que o estrutura, e não o oposto. A segunda afirma que um filme não é composto por uma determinada quantidade de planos, mas sim decomposto por eles: ver um filme de 500 planos é ver 500 filmes. A terceira sustenta que um filme só tem valor - no sentido estético da palavra - se vê o espectador tanto quanto é visto por ele. 

Qualquer leitor razoável compreenderá que estas três intuições são mais sensações que ideias gerais; sensações como o medo, a vertigem, a cólera ou a adoração. Estão mais próximas da mística que da filosofia da arte. A ideia que subjaz a todas estas reflexões é a de que um fenômeno tão estranho e esquivo como o cinema reclama antes uma aproximação poética. Faz muito tempo que o cinema vem sendo analisado com as técnicas as mais diversas. A maioria dos filmes se deixa examinar, decompor em partes. Aceitam submeter-se ao "controle de qualidade" como qualquer outra máquina, não importa o quão infernal seja. Mas há uma parte que escapa sempre à análise: a "zona escura". A sombra. Minha intenção é abordar o cinema a partir de seu lado escuro. 

Durante muito tempo os artistas e artesãos envolvidos na indústria do cinema recorreram à palavra "premissa" para referir-se a essa espécie de conceito que unifica os acontecimentos de um filme. Uma das melhores de que me lembro é a seguinte: um homem que foi honesto durante toda a vida comete um ato desonesto num momento de debilidade; outro homem, que foi desonesto toda a vida, torna-se definitivamente honesto num momento de debilidade. O que aconteceria se ambos se encontrassem? As más premissas não incluíam a pergunta final; eram afirmativas, no estilo de: "A ambição leva à ruína", ou "A ruína leva à redenção", ou "A redenção leva à glória". As premissas foram desaparecendo com o tempo, e a única coisa que restou foi a pergunta final: o que aconteceria se...? Assim nasceu o What if? 

Proponho-me usar da figura retórica do What if? para apreender os inúmeros fatos de que é composto um filme: os visíveis e os ocultos, os implícitos e os explícitos, os explicáveis e os inexplicáveis. 

O poeta Jorge Teillier dizia que todo filme, por mal que fosse, encerra ao menos cinco minutos de boa poesia. Luis Buñuel sustentava que só os maus romances eram adaptáveis ao cinema. Meu tio Daniel Muñoz Vera, homem moderado, limitava-se a dizer: "O cinema é um veneno". 

Terão compreendido vocês que estas três afirmações têm um denominador comum: o cinema escapa, trata de escapar, à maioria dos critérios de qualidade que de certo modo, com sorte, podem se aplicar às outras artes. 

Não há filmes maus. 

Todo filme se alimenta de restos. 

Todos os filmes são phármakôn: veneno ou remédio, dependendo do caso. 

Este é o tipo de problemas que intentaremos tratar ao longo das páginas que seguem. 

Prólogo à Poética do Cinema 2 publicado em Poéticas del Cine, Ediciones UDP, 2013. Traduzido por Eduardo Savella.