A femme fatale hollywoodiana dos anos 90: Instinto selvagem, um caso hipotético


Por Julianne Pidduck

Esse texto é constituído de trechos de um vasto estudo sobre Le meurtre en Amérique (O assassinato na América, Julianne Pidduck, The 1990’s Hollywood Fatal Femme : (Dis) Figuring Feminism, Family, Irony, Violence, p. 65) publicado em CinémAction, n° 38, revista canadense de teoria do cinema que congrega contribuições diversas que emanam dos círculos críticos universitários americanos mais radicais.

Aproveitando o orgasmo de seu parceiro para lhe plantar um picador de gelo no torso com uma confiança inigualável, a Catherine Trammel (Sharon Stone) do muito controverso thriller de Paul Verhoeven, Instinto Selvagem deu ao “complexo de castração” um novo elã na América pós-feminista dos anos 90. Doravante, três anos depois de sua estreia, Instinto Selvagem se ancorou para sempre na memória popular pelo seu uso muito pouco moderado de assassinas lésbicas e bissexuais. Nesta direção, esse filme se reata sem complexo à tradição homofóbica de Hollywood, o que os grupos gays e lésbicos não deixaram de assinalar à América manifestando violentamente a sua desaprovação na época da estreia do filme. Mas essa proliferação de assassinas coincide igualmente com a ressurgência recente de personagens de femmes fatales do filme noir clássico. Catalisado pelo sucesso de Atração fatal, notório lança-chamas anti-feminista, esse ciclo dos anos 90 floresceu imensamente: A mão que balança o berço, Desejos, Relação indecente, Corpo em evidência, Os imorais, Mamãe é de morte, Uma noiva e tanto, Mulher solteira procura, Nikita, O sangue de Romeu fazem parte dessa mesma e única família.

Em cinquenta anos, passamos das manipulações maquiavélicas de uma Barbara Stanwick em Pacto de sangue (1944) que, em uma bocada, domina o infeliz Fred Mc Murray, ao abandono sexual assassino das primeiras imagens de Instinto selvagem.

Ora, a ligação entre as questões do masculino e do feminino no filme noir clássico e contemporâneo não é acidental. No filme noir tradicional, a femme fatale é frequentemente associada a um mal-estar profundo suscitado pelos deslocamentos dos papéis do homem e da mulher numa sociedade em período de guerra ou no pós-guerra. Nessa mesma ordem de ideias, é fácil para os teóricos especularem sobre a ameaça que pesou sobre os homens os ganhos do feminismo nos anos 90.




Observemos então o fenômeno da femme fatale do ponto de vista de várias perspectivas feministas. Uma das interpretações possíveis, aliás muito sedutora, associa essa ressurgência a uma reação anti-feminista: transformamos em estereótipos negativos, mulheres que têm uma personalidade muito forte e uma sexualidade sem complexo. Susan Faludi autora do best-seller Backlash (Backlash: The undeclared war against american women, Anchor books, 1991, p. 113), cita Atração fatal de Adrian Lyne (1989) como representativo do cinema reacionário dos anos 80: 
Essa reação quase moldou o discurso de Hollywood sobre as mulheres nos anos 80. As histórias se sucederam em que dispomos as mulheres umas contra as outras; sua cólera em relação à sua situação social se encontrou despolitizada e apresentada como uma depressão pessoal; vidas de mulheres foram utilizadas como contos morais nos quais a boa mãe ganha sempre ao passo que a mulher independente é invariavelmente punida. E Hollywood de reafirmar e de reforçar a tese da reação: se as mulheres americanas são infelizes é porque elas são livres demais; a liberação as privou do casamento e da maternidade. 
 Ora, muitos desses filmes dos anos 90 tem uma função ideológica claramente definida: dominar esse tipo de mulheres através de cercas narrativas: a morte, o casamento ou a quarentena. No interior de uma paisagem política que a decadência de valores familiares tradicionais (sejam eles quais forem) obceca, a defesa dessa família nuclear infinitamente frágil permanece o objetivo n°1 da Hollywood dos anos 90. Nessa batalha, a mãe de família é uma aliada que a ajudará a erradicar a mulher independente e forçosamente fatal. Julguemos pelos gritos de alegria do público quando a esposa gentil Anne Archer acerta sua conta com a amante malvada Glenn Close em Atração fatal.

No filme noir clássico como Pacto de sangue ou Crepúsculo dos deuses, o thriller problematiza a posição ao mesmo tempo autoritária e justa do herói masculino detetive tanto fascinado quanto desestabilizado pela femme fatale. Essa dramatização recorrente das humilhações públicas e privadas do personagem masculino corresponde ao que Richard Dyer chama (Women in film noir, ed. Ann Kaplan, British Film Institute, 1980, p. 91) “uma certa ansiedade em torno do estatuto e da definição da masculinidade e da normalidade”.



Basta, aliás, se debruçar sobre a carreira de um ator como Michael Douglas para ilustrar esse aspecto. O crítico do Village Voice, Jim Hoberman (Victim Victorius, Village Voice, 7 de maio de 1995) liga a recente carreira de Michael Douglas à popularidade crescente do que ele chama “o homem branco em fúria”, vítima complacente da virulência dos arautos do movimento politicamente correto, feminista, pessoas de cor, enfim, de todas essas pessoas que não são como ele. É assim que Michael Douglas se tornou nos últimos anos o objeto dos desejos femininos mais agressivos.

De Atração fatal a Instinto Selvagem, esse ator, mais que qualquer outro, personificou a demonização por Hollywood da mulher independente, sem fé nem lei. Mas ao mesmo tempo ele não encarna com muita desenvoltura o papel principal masculino típico. Homem que está a envelhecer com a barriga um pouco mole, ele não chega verdadeiramente aos pés das femmes fatales que levam vantagem sobre ele. Do infalível policial de São Francisco urgente (1972-1977) ao inepto detetive Curran de Instinto Selvagem em 1992, Douglas perdeu completamente seu verniz. E mesmo se ele é com seu nome, seu cachê e seu estatuto de estrela, o protagonista central do filme é certamente Sharon Stone, então ilustre desconhecida, a quem todos os olhares convergem. Por fim, ela acumula todas as vantagens táticas acordadas à femme fatale: mais jovem, mais bem educada, mais rica, mais inteligente, mais sexy, mais cruel, ela tem vantagem por todos os lados sobre Curran. Além disso, seu diploma de psicologia, muitas vezes citado, e seu estatuto de autora de best-sellers, lhe conferem explicitamente um poder de representação no interior mesmo do filme. Ainda que narrado do ponto de vista de Nick, o próprio tema do livro de Catherine, onde ele é mal um personagem cuja existência está por um fio, sublinha a batalha que se desenvolve em torno do poder de nomear, contar e de concluir.

Mas recusando a conter sua anti-heroína, o filme deixa aberto o capítulo da femme fatale. E é de uma maneira muito irônica que o fim nos mostra um Douglas na cama de uma assassina suscetível de trucidá-lo a qualquer momento. Num desfecho clássico, o filme se conclui com Curran/Douglas no lugar de Johnny Boz (a vítima da cena de abertura) no papel do cordeiro sacrificial de Sharon Stone. Até as suas últimas imagens, Instinto Selvagem sublinha a vulnerabilidade física e sexual e a autoridade moral em declínio do protagonista masculino.
É um filme sobre a ansiedade e a paranoia masculina. As mulheres que afirmam o seu poder suscitam a ansiedade dos homens, tanto quanto mulheres afetivamente ligadas a outras mulheres. Logo, Catherine os inquieta duplamente. É verdade que ela e as outras são talvez assassinas. Mas observe o que elas matam. A família, por um lado. Seus irmãos. Homens que poderiam se tornar maridos. É verdadeiramente constitutivo de toda a ansiedade masculina. Na verdade, é quase uma paródia do pior pesadelo do homem comum. (C. Carr no Village Voice). 


A angústia masculina é geralmente bem veiculada por essa recrudescência de roteiros de uma crescente violência, abertamente paranoicos, beirando às vezes o ridículo, que colocam em cena personagens de mulheres sexualmente pervertidas e onipotentes. Com a sua superpopulação de loiras, assassinas em série e sexualmente ambíguas, Instinto Selvagem leva a palma do gênero.        
Instinto selvagem é quase uma comédia sobre o pressuposto perigo mortal ligado às mulheres. Mas é a relação complexa que une todas essas mulheres entre elas que produz o horror do filme. Em outras palavras, não é o que elas fazem individualmente que constrói o formidável suspense do filme, mas o mistério do que as liga umas às outras. (Lynda Hart) 
Assim olhando de mais perto a matéria desse filme, finalmente mais complexa do que se parece, podemos identificar momentos de ruptura e de conquista, e proceder uma leitura feminista que se revelará divertida, mesmo que se trate também de uma obra infinitamente misógina. Pois as questões de gênero e poder são postas de uma maneira bem produtiva como frequentemente ao longo desse ciclo de filmes que o discurso feminista ataca, oferecendo em alguns momentos uma crítica muito irônica e mesmo involuntária dos valores familiares, das relações entre sexos e da autoridade masculina.  

No entanto e apesar de tudo, a extraordinária proliferação da figura da femme fatale na cultura popular, verdadeira caixa de Pandora nos anos 90, exprime um mal-estar muito profundo que nunca poderemos elucidar inteiramente. A própria femme fatale, figura controversa mas central desses filmes, tal como ela é representada, é uma monstruosidade maior do que o natural, uma espécie de caricatura paranoica do estado no qual se encontra o inconsciente masculino do homem norte-americano. Mesmo que ela não revele nada de real sobre a experiência de base da mulher norte-americana, a impossível figura da mulher violenta veicula uma carga afetiva e fantástica, um excesso discursivo que pode ser no fim das contas muito estimulante para o discurso feminista.

Tudo isso é ainda mais impressionante que a violência contra as mulheres foi ainda assim a ponta de lança de todas as batalhas feministas. E eis que a transição entre o discurso sobre a violência engendrada pela vida real e a representação hollywoodiana das femmes fatales produz um efeito de inversão de uma bizarrice um pouco sinistra. Certamente representamos frequentemente a violência contra as mulheres nas telas. Mas o sucesso de filmes como Atração fatal e Instinto Selvagem não tem equivalentes. Essa ascensão nas telas da violência perpetrada pelas mulheres é verdadeiramente um sintoma curioso e perturbador. Há nessas mulheres assassinas alguma coisa de terrivelmente forte, uma espécie de excesso emocional e fantástico que escapa de toda explicação tradicional e racional. Contra uma persistente convenção cultural (ao mesmo tempo, generalizada e mais especificamente feminista) que faz das mulheres sempre vítimas da violência, corpos sem vida ou em perigo virtual, a femme fatale propõe uma figura paratética (“façamos como se”) excepcional e onipotente. Incluindo no aspecto politicamente ambíguo da femme fatale, a inversão de papéis permite à espectadora de explorar uma metamorfose no nível da fantasia e da representação em que do objeto da violência (passivo) ela se torna sujeito (ativo). É aí, no nível imaginário, que a figura da femme fatale nos oferece momentos preciosos de evasão, mas não sem distância crítica e uma ironia benéfica. Catherine Trammel/Sharon Stone, com sua verve impossível, sua sexualidade desenfreada, sua capacidade de paralisar de emoção uma sala cheia de policiais resistentes e mesmo a força excepcional com que ela se apodera do legendário picador de gelo castrador, acarreta momentos de um culpável, intenso e supremo prazer a espectadora feminista – uma fantasia efêmera, certamente, mas eminentemente estimulante.

La femme fatale hollywoodienne des années 90 – Basic Instinct, un cas de figure
foi publicado na revista Vertigo, nº 14 (dossiê “Féminin/masculin”), em janeiro de 1996, traduzido do inglês por Caroline Benjo. Tradução do francês: Leticia Weber Jarek. 

Os cineastas franceses e a desobediência civil

Cinema e política: beleza da mise en scène




Por Judith Cahen

20 de março de 1997


Cara Hélène,

Nós nos encontramos no momento da Guerra do Golfo, quando estudantes, nós procurávamos “fazer política de outra maneira”. O projeto era ambicioso mas lhe faltava precisão. Eu aprofundei minha questão no lado do cinema: “como fazer filmes de outra maneira, como mostrar o mundo, como fazer belos filmes que mostram o mundo em que vivemos, inventando ao mesmo tempo um mundo mais habitável… etc.” Nós nos encontramos, alguns anos mais tarde, em torno de uma revista de cinema, animadas pelo desejo comum de voltar – do ponto em que estamos, o cinema – a essa ligação com a política, reforçada nesses últimos tempos pelo apelo à desobediência. Eu te/nos colocarei uma primeira questão:

Qual é a relação entre a mise en scène no cinema e a mise en scène de uma ação política?

Essa questão é um grande canteiro aberto. Nós não temos até esse momento uma resposta, mas intuições. Me parece que o ponto de aproximação que nós podemos tentar abordar, a partir de hoje, deve ser procurado no lado do gozo. Há um momento em que tudo isso é claramente excitante!

Eu digo isso com muito respeito, pela política, pelo cinema e pelo gozo!

Lado cinema e lado política, uma mise en scène bem-sucedida convoca o real e o simbólico, a sedução e muita gente. O metteur en scène como o militante ambicioso é animado por uma vontade de maestria, de uma capacidade carismática de colocar em cena os outros, de levá-los a algum lugar. Essas disposições só têm valor certamente na medida da sua concepção de mundo.

Voltemos ao gozo… Cinema e ação política, permanecendo fiéis a um ponto de vista sobre o mundo, a valores, eles devem ser ao mesmo tempo suficientemente excitantes e sedutores! E quando isso já não é mais o caso, isso assusta… Não há nada que se pareça mais a um filme laborioso e fracassado (encenado sem gozo), que um militantismo rançoso, que fala difícil de tanto ser bem-pensante. Quantas vezes, frente a militantes, nos dizemos que por mais que eles tenham razão, nada se mexerá se eles não inventarem um erotismo particular à situação? Nos dois casos, nós nos sentimos mal pelos metteurs en scène e pelos atores… nós temos também compaixão, pois não é assim tão fácil seduzir. Pois é também do lado da sedução que, às vezes, perdemos nossa alma! Contudo, permanecer íntegro, ter a verdade consigo não basta! Ainda é preciso inventar a mise en scène que dará a essa verdade a sua existência pública…

Chego assim ao apelo à desobediência lançado por Pascale Ferran e Arnaud Desplechin: o que ele tinha de tão astucioso, de tão esperto, na sua dimensão ao mesmo tempo subversiva (logo, violenta) e estranhamente unanimista? Me parece que ele tocou no laço desfeito, o laço entre a responsabilidade individual e o engajamento político em geral… Com o texto de fechamento proposto por Pascale Ferran (publicado no Le Monde, para explicar a dissolução do coletivo dos cineastas), há a vontade de permanecer nesse apelo à consciência individual, à prática política de cada um na sua vida (mesmo que seja nos partidos políticos), e de não delirar em novos grupos de cidadãos engajados pelas profissões. Isso remete, então, cada cineasta a sua prática e ao seu engajamento político (ou a sua ausência de engajamento) preliminar… aqui, aqueles que não tem geralmente esse hábito devem começar (enfim) a pensar: “O que fazer neste momento? Como se adaptar a esse renascer? Já é o suficiente e é preciso esperar pela próxima boa ideia, retornar ao trabalho em nossos filmes – então, se aprofundar cinematograficamente na expressão do imaginário da relação, trabalho fundamental nessa época ‘gangrenada’ por medos reacionários do outro… Ou então é preciso aproveitar inteligentemente da situação para ir mais longe politicamente?”

Questões de relações de poder ou de eficácia da mise en scène?


Desejo de coletivo/estar cheio do coletivo 

Mas onde eu estou aí dentro, você se pergunta sem dúvida?! Eu partirei da minha própria ambivalência tal como eu a trabalho no cinema através do personagem de Anne Buridan – ambivalência entre uma necessidade feroz de isolamento e uma aspiração ao coletivo. Eu não acredito que eu avanço muito ao supor que como eu, outros cineastas devem ter sido atravessados por essa ambivalência “buridanesca” em relação ao movimento que mobilizou os cineastas. E eu resumirei, deste modo, os “dois polos” entre os quais nós navegamos, no ritmo das semanas, dos dias, das horas… ou dos minutos (para os mais afetados entre nós!).

1) “Meu trabalho essencial de cineasta consiste em fazer filmes, eu não devo me dissolver num ativismo militante sem relação com a minha prática, nem me tornar o joguete das mídias.”

2) “Já que isso se movimenta enfim! Estejamos à altura dos acontecimentos que nos desapossaram: intervenhamos! (E, ainda por cima, é prazeroso!). De qualquer maneira, eu não farei bons filmes se eu enterro a minha cabeça na areia: meu trabalho de cineasta se nutrirá do meu engajamento político/cidadão.”

Como conciliar a ideia de que o verdadeiro engajamento para um cineasta é talvez o de fazer os seus filmes com o máximo de atenção e de exigência, e então aquela ideia – mais política, que quer que nós nos agrupemos por vezes para tentar ver juntos como avançar na sociedade que nos envolve?

Mas eu paro por aqui, pois eu gostaria muito que você me falasse do seu engajamento político contra a extrema-direita e dos limites, das ambiguidades que você mesma experimentou, para além do prazer extremo de identificar tão bem o seu inimigo.

Cara Hélène, está com você.
Judith Cahen

Carta a Judith


Por Hélène Frappat

22 de março de 1997


Cara Judith,

Antes de todas as agitações suscitadas pelo projeto da lei Debré [1], eu me lembro de ter te dito, no momento da eleição de Catherine Mégret em Vitrolles e do caso Chateauvallon: devíamos fazer alguma coisa na Lettre du Cinéma. Eu não tinha nenhuma ideia precisa, mas esse projeto me parecia necessário. E então, logo depois, houve o Apelo dos cineastas, a manifestação contra a lei Debré, teu próprio engajamento ao lado deles, e me pareceu que a ligação que eu procurava estava se estabelecendo gradualmente. Eu mesma assinei a petição à iniciativa de Emmanuel Terray, mas as ações dos cineastas, e algumas de suas reuniões que eu assisti, só confirmaram esse primeiro desejo: com esse movimento, uma parte de meu próprio passado militante se encontrou reanimado, até mesmo iluminado. Pois essa questão do militantismo no fundo não é muito clara e, contudo, ela enreda um determinado número de implicações do movimento dos cineastas e, no segundo plano, da luta contra a extrema-direita à qual, em parte, esse movimento contribui.

Nós nos encontramos, há alguns anos, quando eu militava no Comitê de luta contra La Vieille Taupe, uma livraria negacionista que tinha se reinstalado na rua Ulm. Eu tinha me engajado profundamente numa luta contra: contra uma livraria (ela acabou fechando), contra os negacionistas (isso deu origem a uma Associação de luta contra o negacionismo), contra todos os nossos inimigos e mesmo aqueles nossos amigos acusados de serem por demais frouxos (Deus vomita os frouxos… era a minha máxima na época). Esse frenesi não era sem perigo, e eu mesma recebi ameaças de morte, assim como um buquê mortuário. É preciso dizer que eu me engajava com violência, até por que a violência manifestada era por vezes muito excitante. Uma imagem extremamente forte permaneceu comigo: dezenas de vans da CRS[2] estacionavam cada terça-feira, às 18h, em frente à La Vieille Taupe e, uma tarde, eu me lembro de duas fileiras ameaçadoras com, de um lado, um grupo do Betar[3] e os simpatizantes do Comitê (um pouco envergonhados de manifestar com o Betar) e, em frente, os negacionistas. A tensão era palpável, a fumaça dos gases lacrimogêneos invadia a rua e nós estávamos unidos pelo mesmo medo de sermos espancados pelos militantes de extrema-direita, com, por vezes também, o desejo de chegar às vias de fato.

Dessa “luta contra”, eu retenho que ela não me parecia habitavel por muito tempo. Primeiramente, a essa excitação sobre a qual eu te falo, esse gozo muito forte experimentado ao combater o mal que nos confrontava (e é preciso dizer que nossos inimigos eram particularmente abjetos), sempre se misturou um certo mal-estar. Mal-estar de ter, para lutar com eficácia contra eles, que suportar de perto ou de longe a presença ou os textos de indivíduos cuja toda vida foi consagrada a arruinar a vida de seus adversários. Esses tipos de extrema-direita estão mergulhados até o pescoço no gozo do negativo, particularmente os negacionistas que consagram suas vidas a negar a morte e a memória, a mentir. Eu não tive vontade, como certos militantes do SCALP[4] ou do Ras l’front[5], de contracenar com a extrema-direita, só agindo em reação contra eles, num corpo-a-corpo que não é suportável sem um certo equívoco, ou um desgosto.

Em outros termos, eu acho que aquele que milita unicamente contra alguma coisa é forçado a entrar numa relação de força que seu adversário lhe impõe. É bem conhecido: à agressividade incontrolada de certos indivíduos, vale mais responder se colocando em um outro terreno, modificando as regras do jogo. É por isso que os cineastas tiveram razão, a meu ver, de agir a favor dos sans-papiers[6], ao invés de continuar a lutar contra uma lei, permanecendo numa relação de forças distorcida de antemão (o governo não dá a mínima para os cineastas que, nessa estrita relação de forças, não pesam muita coisa). Ao invés de ser contra, os cineastas escolheram, na minha opinião, estar ao mesmo tempo a favor e ao lado. Isso implica em se tornar o mestre do jogo, logo, da mise en scène: de ser o autor de uma ação verdadeira, na situação de inventar, de decidir e não só entoar slogans encantatórios de vigilância. Isso permite também abandonar a lógica da suspeita, que nunca fez as coisas avançarem muito, e de trazer uma ajuda real àqueles que são as suas primeiras vítimas (neste caso, os sans-papiers).

Essa questão da mise en scène está para mim intimamente ligada àquela da ficção. Quando eu militava, eu frequentemente senti o prazer muito forte que acompanha a organização de uma pequena ficção. Excitação de conluios noturnos, de ações mais ou menos secretas, do medo de ser vigiado, atacado: tudo isso, ainda que eu tenha vivido diretamente as mais reais consequências disso, participava de uma ficção conspiratória no fundo assaz infantil, digamos, como uma mistura entre Rivette e o 5 famosos
! Eu só tomei consciência dessas implicações fictícias muito mais tarde, pois então eu me obstinava a dramatizar tudo: a pior das ficções era talvez aquela que me fazia endossar, sem eu saber sem dúvida e por motivos distantes, a postura da vítima. É uma posição bem difundida nos nossos dias entre aqueles que denunciam o perigo da extrema-direita, e por ter sentido eu mesma a vertigem dessa identificação com as vítimas, me colocando assim (mesmo que inconscientemente) num lugar que não era o meu, eu sei que essa atitude não é válida, sobretudo taticamente (de nada serve culpabilizar um adversário, perfeitamente consciente de admirar voluntariamente as exações dos torturadores). E o que é mais doloroso que combater pela verdade de uma posição que não é, ela mesma, completamente verdadeira?

Retrospectivamente, eu me vejo à mercê dessa vertigem, como que aspirada por uma ficção, situação evidentemente problemática logo que o aspecto documentário do combate conduzido (a Segunda guerra mundial e o genocídio judeu e cigano) é atroz. Situação ainda mais difícil por que os negacionistas estão totalmente mergulhados na mais completa das ficções, numa mentira que recusa a dizer seu nome. Então na época, ao fim de muitos anos, eu acabei por me convencer de algumas coisas. Eu não podia continuar indefinidamente a militar contra, mas como a questão da atividade política continuava a ser muito importante para mim, era preciso que eu conseguisse encontrar uma via de acesso mais positiva, a partir da prática e da vida de onde eu poderia me engajar. Eu tinha alguns contatos com o PS, mas esse partido não tinha me parecido na época (nem agora) suficientemente excitante para que eu ali investisse tempo ou que eu fizesse da política o meu trabalho. Ora uma das questões essenciais atua, na minha opinião, em torno desse problema do trabalho: as motivações pelas quais militamos são sempre obscuras, certamente, e talvez o meio mais verdadeiro de se engajar consiste em fazê-lo do lugar onde nós trabalhamos. É isso que me pareceu justo no Apelo dos cineastas: que ele abra a possibilidade de um militantismo positivo, de um engajamento ao mesmo tempo comum e expressado na primeira pessoa, ao lado das relações de força institucionais e a favor dos Sans Papiers, história de fazê-los viver uma outra história que não aquela da sua espoliação administrativa, de colocá-los em cena enquanto atores de uma ficção cujo autor, enfim, os respeita. É assim que eu compreendo o pequeno filme coletivo que lhes dá a palavra, e a iniciativa tomada por Jeanne Labrune de convidar em breve os Sans Papiers para falar deles mesmos, no Trianon.       

Com você Judith,
Hélène Frappat


Desejo de coletivo, estar cheio do coletivo, a sequência


Por Judith Cahen

Onde, para concluir com os cineastas, nós voltaríamos aos filmes!


Sobre Marius et Jeannette de Robert Guédiguian e Jeunesse sans Dieu de Catherine Corsini


6 de abril de 1997


Cara Hélène,

Você escreve na sua carta: “o que é mais doloroso que combater pela verdade de uma posição que não é, ela mesma, completamente verdadeira?”. Eu escolhi essa frase para retomar as questões.

Por exigência e para se aprofundar ainda mais, eu corro o risco de ser um pouco cruel com os cineastas signatários (logo, também comigo mesma). O texto de Julien Husson me parece suficientemente claro e engajado com a ligação entre uma prática de cineasta e a denúncia das leis xenofóbicas Pasqua/Debré para que eu me apoie nesse momento num papel mais 
“pó de mico” em relação a um coletivo de cineastas que por mais coletivo que ele seja, me parece um pouco vago (frágil, volátil, fantasma?)... Isso para deslocar o debate no lado dos filmes, do cinema, pois no fundo, é talvez , sobretudo, que nós, pessoas do cinema, temos que pensar.

Eu não digo que os cineastas “fariam melhor ao fazer melhores filmes” invés de tentar “fazer política de outra maneira”. Mas é talvez interrogando o “verdadeiro lugar” (ou não) que eles ocupam, e de onde eles falam, que os cineastas seriam diretamente confrontados com o político, logo obrigados a pensar e trabalhar nas suas obras a distorção entre uma visão do mundo tal como ele os cerca e tal como ele seria enfim habitável.

O politicamente correto, vai bem por um tempo… Tão astucioso e pensado que seja o apelo de partida dos cineastas, cada um o sabe bem, não vemos porquê o fato de ter iniciado e/ou assinado esse apelo faria dos cineastas outra coisa que aquilo que eles são há anos, bem antes das leis Pasqua de 93: para a maioria, pessoas distantes da prática política clássica, porque eles têm coisas melhores a fazer que se engajar no militantismo. Os filmes já são lugares suficientemente violentos de engajamento… Essa violência situa de antemão o cineasta na sociedade, mesmo quando ele teria que reinventar o mundo a cada filme.

Mas se permanecemos nessa constatação, esquecemos de uma coisa mais turva que se entrepõe entre os diferentes cineastas e às vezes, infelizmente, entre os cineastas e seus próprios filmes… é o meio do cinema.

Se ele não é assim tão podre quanto podemos dizer, o meio do cinema não é uma grande família. É um pequeno meio onde, como em todos os lugares, cada um defende o seu lugar.

Os cineastas desejosos de pensar “democraticamente” uma melhor convivência (estrangeiros/franceses), será que eles começaram questionar a não-democracia violenta do meio do cinema? Ou ainda, ocultando essa questão delicada em proveito de ideias políticas mais vastas, mais nobres, mas sobretudo mais gerais, estariam eles contaminados por sua vez pela fantasia da falta de lugar? 

A “partilha do bolo” 

Eu acredito que a pequenez do cinema independente (de onde provém a maior parte de cineastas reagrupados em torno do Apelo inicial) é atravessado, sem ousar muito ao confessá-lo, pela ideia de que não há lugares suficientes para todo mundo… O volume de dinheiro disponível para filmes ditos independentes, os filmes cujos objetivos não são somente comerciais (basicamente, aqueles que dependem dos orçamentos do CNC, da Arte ou do Canal +), é limitado. Qual cineasta que nunca teve o sentimento de uma injustiça flagrante no seio do meio do cinema, que nunca deplorou que os lugares fossem tão caros e sobretudo tão mal repartidos? Inversamente, para além do seu próprio sucesso, e da satisfação narcisista de ter merecido o seu estatuto, qual cineasta nunca teve o sentimento que não há nesse meio, em termos de meios de produção, lugar para todo mundo?

Depois da minha prisão domiciliar pelo senhor Raoult, ministro sombrio das piadas estudantis, no bairro Courtillères em Pantin, eu tive o prazer de ser convidada no Ciné 104 com Albert Jacquart, para falar do racismo com trabalhadores sociais da cidade. Como habitualmente, ele falou desse medo xenófobo da falta de lugar e terminou por atacar frontalmente o liberalismo. Em filigrana, ele recordava que somente uma sociedade fundada sobre outros valores que aqueles do liberalismo econômico (uma sociedade comunista…?) poderia quebrar esse medo de perder o seu lugar que falseia a relação com o outro, o estrangeiro, e daria a capacidade de considerar o outro como uma fonte, uma força – criar a partir das qualidades do outro, como dizia Brecht – e não um potencial rival. Eu achei isso muito belo. Eu então tomei consciência como nunca até que ponto o meio do cinema, apesar alguns sobressaltos, é atravessado pelos efeitos mais deletérios do liberalismo.

Um “modelo social”?


No melhor dos casos, o meio do cinema evoca algo da ordem da máfia. Uma pequena selva pouco democrática feita de relações de poder, de medos, de adulações, de rivalidades, de reputações, de fofocas e maledicências… mas, claro, também de alegres festas, de sedução, de desejo e de prazer. Em suma, uma pequena sociedade pela qual muitos são apaixonados, que muitos desprezam (são as vezes os mesmos!), da qual muitos ainda se sentem excluídos. Todas essas coisas um pouco mafiosas são talvez mais simpáticas que a burocracia administrativa atrás da qual se protege por vezes a democracia, mas isso não é suficiente para considerar uma outra maneira de pensar e viver juntos… E aliás, bem rápido, esse conjunto que apareceu aqui e ali nas intervenções “coletivas” dos cineastas soou falso: pois além da utilização mediática de patronímicos, sem uma comunidade de filmes, um coletivo não corresponde mais a nada. No melhor dos casos, ele se constitui como um encontro mundano para cineastas reconhecidos que precisam de formação política. É bem difícil formar uma comunidade com cineastas que estão, depois de muito tempo, sentados sobre sua esperteza (e/ou sua ingenuidade cultivada), e que utilizam as engrenagens de um sistema sem mesmo inscrever nos seus filmes uma visão de mundo que seja um pouco… admirável.

A arte não quer saber da democracia


Eu não defendo uma democracia mole e 
estúpida que nivelaria por baixo. Graças a Deus, a arte não quer saber da democracia! Meu objetivo também não é pregar uma revolução política no coração do meio do cinema. (Eu não quero mais do que ninguém passar mais tempo me batendo por esse meio que fazendo filmes! Meu engajamento no ACID, no Prix Sadoul e na Lettre du Cinéma são amplamente suficientes para ocupar o tempo que eu lhes consagro.) Não se trata, enfim, de dizer que os cineastas não são sempre muito brilhantes em matéria de engajamento político, pois eles não têm mais (ou menos) vocação para isso que qualquer um… Eu me pergunto apenas, e eu lhes pergunto por que, sofrendo ao mesmo tempo a violência do meio do cinema e aquela da sociedade por completo, e quaisquer que sejam ademais as suas qualidades, eles produzem tantos filmes higienizados!

Como se, bizarramente, quanto mais os tempos fossem
difíceis, maior era o medo de perder o seu lugar (de não fazer mais filmes), e mais tímidos eram os filmes… terrivelmente limitados pela ideia de “agradar” em detrimento do resto (“já está bom” garantir as entradas…). Como se o derradeiro objetivo, o maior dos prazeres não fosse justamente de fazer da própria complexidade do mundo o gozo do espetáculo.

Diríamos que os autores, os autores franceses neste caso, tem terrivelmente medo, desde que eles começam a pensar um pouco, de se transformar numa “dor de cabeça”, de ter que afrontar processos pujadistas, ainda em curso, contra os filmes de autor “intelectuais” e “umbiguistas” …

Francamente Hélène você conhece muitos, você, filmes que te deram uma verdadeira “dor de cabeça” esses tempos? Filmes que estimulam, pela sua inteligência, sua própria inteligência? Que decepção em relação aqueles que tinham mostrado alguma ambição e que, de medo de afastar o seu público, se deixaram cair num academicismo retumbante, em simplificações deprimentes!

Eu me interrogo, então, sobre o nivelamento de fato de muitos filmes ditos de autor. Existiria aí o sintoma de uma certa tendência atual do cinema francês? Nesse caso, ela não seria somente imputável aos autores de filmes, mas também às condições “históricas” nas quais os filmes são produzidos. Pois, nós o sabemos desde Rivette, o filme só conta no fundo a história de sua filmagem. E essa história, no clima atual, é frequentemente triste. É o percurso do combatente, onde dominam a frustração e a autocensura. Uma forma de infantilização do autor, ela mesma proveniente da sua incapacidade de pensar a produção com o (ou os) produtor(es). No final, cada vez menos filmes são produzidos, cada vez mais caros, e todo mundo tem medo. Trata-se também, por vezes, da hesitação dos produtores. Alguns apostam nos autores, mas todos receiam que eles o sejam demais: “Autores” demais, autobiográficos demais, demais tristes e entediantes. A moda são as comédias. Porquê não, se não nos impedimos de ser eventualmente cruéis... Nada mais irreverente que o riso, no cinema como na política!

Longe de opor os filmes “políticos” ou as comédias sociais às histórias de amor, longe de pedir para cada filme convocar A política por inteiro, na verdade, eu peço aos filmes de estarem ao menos à altura das contradições que contariam as histórias das suas filmagens. Eu gostaria, por exemplo, que nenhum cineasta se autorizasse a filmar a história de amor que ele escreveu, quando ele descobrisse que ela é menos interessante, menos verdadeira, que a menor historieta que nunca deixa de acontecer numa filmagem!

Retomemos. Tudo se passa como se, para preservar o lugar de cineastas reconhecidos que eles adquiriram a alto preço, os cineastas estivessem cegos (um cúmulo!) às contradições de seu meio. Se tornaria muito doloroso olhá-las de frente, ou se trata simplesmente de consciência pesada?

Duro se bater pela verdade quando não falamos verdadeiramente de um lugar verdadeiro. Não é preciso buscar mais longe a origem de um mal-estar confuso, essa mistura de não-ditos e da má fé, essas falsas hesitações entre a ação e o pensamento (e os conceitos que florescem, como “o humanitário do pensamento”)!, que foram expressos durante as reuniões de cineastas signatários, e que terminam por deixar um gosto amargo. Se somente os peticionários trabalhassem mais para criar para e com os seus próprios filmes um lugar verdadeiro no coração do meio do cinema, um lugar livre e coerente, ao invés de ocupar os lugares que nós os outorgamos... O ato seria de uma tal violência, de tal coerência com a exigência de verdade, que não seria mais necessário se entrincheirar friorentamente atrás da ideia muito geral e no fundo muito convencional que é preciso refletir em como “fazer política de outra maneira”! Me retorquirão que eu não tenho que dar lições a ninguém, que eu não fiz ainda meu primeiro filme nas condições ditas “profissionais” ... Certamente. Eu não creio que seja necessário, contanto, reprimir a minha experiência sobre a minha juventude e a minha inexperiência. Você sabe bem, Hélène, que essa cólera é sobretudo uma maneira de me obrigar eu mesma a assegurar, quando o dia chegar, a filmagem! 


Viva o cinema!


Eu gostaria agora de falar de dois filmes que contradizem totalmente minhas afirmações! Mais exatamente: eu gostaria de articular meu ponto de vista com dois exemplos possíveis daquilo que eu chamo de uma exigência e coerência políticas, de cineasta. Esses dois filmes são Marius et Jeannette de Robert Guédiguian e Jeunesse sans Dieu de Catherine Corsini.

O delicioso filme de Robert Guédiguian é o trabalho de um cineasta que, armado de um ponto de vista político sobre o mundo, claramente consciente dos efeitos do capitalismo, sabe olhar desse ponto de vista as relações mais íntimas entre as pessoas, e chega na obra-prima. Eu noto, além disso, que Robert Guédiguian é também produtor dos seus filmes, o que não pode ser estranho ao sucesso do empreendimento. Sentimos que as pessoas que fizeram esse filme viveram tão intensamente quanto aqueles que o filme conta a história. Marius et Jeannette consegue mesmo, de maneira sublime, nos fazer rir e amar um personagem que se deixou uma vez votar no Front National – “Uma vez, só uma vez, você não vai ainda assim me odiar durante toda a vida?!”, ele diz à sua mulher... Nós amamos esse personagem, e nós rimos dele, mas com ele, porque o filme testemunha um amor, uma alegria de viver, uma inteligência e uma confiança que permitem descobrir, com uma acuidade absoluta, a relação entre uma deriva passageira e uma estupidez geral. Não há aqui nenhuma prática política “nova”. Apenas a construção risonha mas rigorosa da história, que mostra que nenhuma alienação é tão ameaçante que ela não resista à nossa exigência. 

Eu não tenho reservas em relação do filme de Robert Guédiguian, ele é genial! Simplesmente, eu me digo que é mais simples mostrar a inteligência, o amor e a dignidade de personagens que não tem nem privilégio nem poder que personagens que, tendo um pouco disso tudo, são condenados a não ser nunca mais tão puros. Se eu pudesse passar uma encomenda para Robert Guédiguian para o seu próximo filme, eu lhe pediria que me mostrasse o que se tornou a filha de Jeannette (a caixa demitida, heroína de Marius et Jeannette), que foi para Paris para fazer jornalismo. Como ela se sairá, a quais compromissos ela se submeterá? 

Ao contrário do tom profundamente alegre do filme de Robert Guédiguian, o muito perturbador Jeunesse sans Dieu de Catherine Corsini carrega a figura do intelectual em período de crise. A primeira vez que eu vi o filme, eu me perguntei se não seria uma facilidade situar o filme na Alemanha, na época em que o nazismo se arrastava, invés de nós falar de hoje. Mas Catherine Corsini não finge. Um pouco perdida, ela procura se aproximar do local onde isso bloqueia (com risco de perder o “contrato-sedução” de seu filme): a ambiguidade da sua relação com o mal. Um jovem professor humanista que ensina a igualdade entre os homens se encontra rejeitado pelo fascismo de seus alunos. Sobre essa trama, Corsini não se contenta com a inevitável parte de “fascinação” pelo mal... Ela vai além, até a ingratidão implícita do tema, que muitos teriam evitado. “Nos falando de ontem, da época do nazismo em ascensão, o filme nos fala de hoje” dizia ela em Cannes no ano passado. É verdade, mas não exatamente lá onde nós esperávamos. Se o filme nos dá medo por hoje, não é um medo do inimigo neofascista, claramente designado sob a etiqueta “Front National”, mas sobretudo o medo de nós mesmos, da nossa própria renúncia, o medo de não ter mais vontade de transmitir a inteligência, por amargura, por indiferença...

Há dias em que, como o personagem principal, toda pessoa em posição de transmitir (professor, cineasta, artista, intelectual...) está bem cansada de convencer e de esperar ser ouvida. Figura do desencorajamento face à estupidez, esse professor é um personagem de ficção complexo, à altura do desengajamento dos intelectuais, bem antes das leis Pasqua. Oprimido pela inércia, tão triste quanto covarde, ele está sempre à beira de abandonar os outros às suas situações. In extremis, ele escolherá a violência da verdade.

Jeunesse sans Dieu coloca que a covardia, o desprezo e o ódio surdo podem atingir àqueles que pretendiam aí resistir, mas que, vendo a inteligência tão puramente e simplesmente ridicularizada, não podem mais (se) confiar. Onde estamos hoje? Devemos pensar nessa questão.

Catherine Corsini nos mostra sinceramente uma figura da impotência e questiona o reino da vertigem do ódio e da desconfiança. Contudo, Robert Guédiguian nos transmite deliciosamente a confiança...

Cara Helène, por minha vez, eu confio em você – a seguir...
Judith Cahen


[1] A lei n° 97-396, de 24 de abril de 1997, permite o confisco do passaporte de estrangeiros em situação irregular e autoriza também o registro das impressões digitais daqueles que solicitam um titulo de permanência. Ainda, a lei obriga aos cidadãos franceses de notificar a prefeitura da presença de estrangeiros hospedados em suas casas. Nesse contexto, nasce então o apelo de desobediênca civil promovido pelos cineastas. (Esta nota e as seguintes são da tradução, com informações obtidas de fontes diversas).
[2] Companhia Republicana de Segurança.
[3] Movimento radical da juventude judaica representativo da extrema direita sionista.
[4] Section Carrément Anti-Le Pen: rede francesa antifascista, radical e libertaria de extrema-esquerda.
[5] Rede associativa francesa de extrema-esquerda criada em 1990 com o objetivo de lutar contra o Front National e suas idéias.
[6] Estrangeiros em situação irregular.

Essa correspondência entre Judith Cahen e Hélène Frappat foi publicada na revista La Lettre du cinéma, n° 2, em maio de 1997. Tradução: Leticia Weber Jarek.

Fantástica realidade


Por Jean-Charles Fitoussi

"As coisas que existem são importantes."
Paul Claudel, O Pão Duro

Pode-se julgar um filme à luz da realidade que este nos priva durante a projeção: enquanto estou na sala diante da tela, de qual realidade exterior sou privado? O filme que me foi apresentado em lugar da vida vale esta privação? É evidente que, se não damos nenhum valor a tal vida, qualquer filme será o bastante - exceto aqueles cujo objetivo seria precisamente o de devolver aos espectadores a realidade da qual gostariam de se abstrair comprando o ingresso. Mas se a existência é concebida como profundamente desejável em si mesma, e já rica, complexa, fabulosa, trágica o bastante sem que o cinema nela se misture, então o êxito cinematográfico se torna mais raro e precioso: o cinema deve então fazer melhor que uma realidade contudo já perfeita, já feita da melhor forma. Que faça simplesmente tão bem quanto, e nos consideraremos felizes.

Distinguem-se então duas maneiras de lograr um filme: a que consiste em desvalorizar a realidade extra-filme, de modo que esta fique apequenada diante das potencialidades estupefacientes da imagem e seus efeitos - arte dos narcóticos. Dedicamo-nos neste caso a fabricar filmes "compensatórios", valorizando tudo o que não tem chance alguma de existir fora da tela, tais como os falsos desejos inumeráveis (desejos de irrealidades, que levam somente a falsas alegrias) sobre os quais falava Charles em O Diabo Provavelmente, de Robert Bresson, ou que mostra Mizoguchi nos Contos da Lua Vaga - deslocamento do desejo em coisas inexistentes que, fazendo-o prisioneiro de um fantasma, conta justamente dentre as táticas do diabo (e do qual o cinema hollywoodiano atual não detém o monopólio).

A outra via, menos simples, menos imediatamente rentável, consiste antes em ressaltar as qualidades e o gosto da existência, sua magia própria - que os filmes ou outras representações do primeiro tipo se esforçam em apagar. Nesta perspectiva, a arte do cinema - que pode se aparentar à arte culinária por sua faculdade de tornar perceptível (e inesquecível) qualidades e sabores que sem ela passariam despercebidos - requer do cineasta, no mínimo e de partida, um desejo de percepção dessas qualidades, um "apetite de realidade" associado a um "bom estômago".

É o gosto ou o desgosto da realidade (ou, o que dá no mesmo, da existência, da verdade) que faz, para mim, o bom ou o mau cineasta. E que me faz, na primavera de 1999, preferir Três pontes sobre o rio (e a obra toda de Jean-Claude Biette) a Romance ou O vento da noite (e toda a obra de Catherine Breillat ou de Philippe Garrel) - independentemente do gênio de cada um: há bons e maus gênios.



Será preciso retornar ao gênio próprio de Jean-Claude Biette. Tudo serve ao seu cinema que não tem senão de receber e detalhar, seus filmes desenhando um receptáculo aberto a todas as brincadeiras, todas as esquisitices e todos os charmes da existência. Charmes que fazem o título de um filme de Grémillon - outro cineasta que este mês de abril sob as chuvaradas de março nos terá gratificado.

Tudo, em Grémillon, cineasta singular e complexo, músico, autor de filmes que testemunham uma acuidade extrema da sensibilidade, uma percepção aguda dos seres. Mesmo a escuridão: pois há nele uma força tal de aprovação que o desejo e a vontade triunfam mesmo sobre o pior. A fragilidade da vida e do amor, seu caráter efêmero, ou submetido ao envelhecimento, não anula nem a vida nem o amor, mas aumenta-lhes ainda mais o valor. Os heróis de seus filmes ganham na medida daquilo que aceitaram perder. É assim com o casal Gauthier em Le Ciel est à vous, que decide liquidar tudo (incluso o piano da filha) para concluir a fabricação do avião que lhes dará o céu. É assim, no seio desse casal, de Pierre (Charles Vanel) que ama sua mulher Thérèse (Madeleine Renaud) ao ponto de aceitar a ideia de poder perdê-la deixando-a voar. A graça não se obtém senão ao preço do desespero, da derrelição. O anúncio do êxito de Thérèse confunde-se com o linchamento prometido a Pierre: contra a parede, acreditando ter perdido Thérése para sempre, ele enfrenta a multidão da vila que imaginamos tomada pela raiva nascida da reprovação moral - mas que, na verdade, clama o nome de Gauthier para anunciar-lhe a boa notícia, o êxito de sua esposa. Também ainda o aristocrata Kériadec (apelidado "Patas Brancas" por causa de suas polainas, dando o título a este filme magnificamente composto) que, prestes a botar fogo em seu castelo de modo a acabar consigo mesmo segundo a divisa de sua linhagem "Antes morrer que fracassar", prefere contudo a vida e aceita o amor que se lhe oferece, malgrado todos os inconvenientes (neste caso, ao menos alguns anos de prisão) - permitindo-se lançar à armadura vazia de seu ancestral, rebelde em seu tempo: "E aceitar, você, já pensou nisso?".

Não se deve estranhar se essa primazia dada à realidade, à aceitação do que é dado, pôde produzir uma obra suficientemente distante do realismo ao ponto de que nos tenhamos sentido obrigados em apor-lhe o corretivo "poético". Pois o conhecimento do real compreende o reconhecimento de seu caráter eminentemente fantástico, "esse fantástico, escreveu Antonin Artaud, que percebemos, cada vez mais, ser na verdade o real". Do mesmo modo, todo filme realista (que se refere à realidade) deveria ser fantástico - e reciprocamente. A potência que faz a especificidade do fantástico de Grémillon se deve em grande parte, e paradoxalmente, a sua discrição. Assim como a pintura de André Masson, tal como figura no último filme do cineasta, não se dá à primeira vista como uma representação do real, o fantástico de seu cinema pode à primeira vista passar despercebido. Nessa última obra, o comentário falado de Grémillon convida o espectador, não somente a reencontrar a realidade nas telas do pintor, como a perceber na realidade os elementos abstratos do quadro. É assim que no decurso desse filme, conquanto breve a realidade mais ordinária (uma árvore, uma cascata, arbustos e formigas) vem a se metamorfosear, a tornar-se outra: como a árvore oca que, em contato com a música composta pelo cineasta, torna-se flauta. André Masson ou les quatre éléments é exemplar na medida em que resume e condensa toda a arte do cinema de Grémillon: transformar (aguçar) o primeiro olhar e fazer perceber, numa mesma realidade, um ser outro. Em Le ciel est à vous, o professor de música convida os circunstantes a discernir as diferenças de timbre entre dois pianos. As orelhas não-treinadas são evidentemente incapazes para isso, e têm as duas sonoridades por idênticas: percebem um Lá onde há dois. Assim como L'Etrange Monsieur Victor, de maneira um pouco mais trivial que nos filmes que o seguem, o papel principal interpretado por Raimu contém na realidade dois seres (ou dois desejos) dos quais um, fora da lei, é condenado a permanecer secreto durante toda a duração do filme, o que tem por efeito aumentar cada vez mais o mal-estar desse homem. Sua libertação será obtida apenas através do reconhecimento efetivo desse outro em si, e implicará uma nova prisão, desta vez nas prisões do Estado. O que não é nada perante a prisão anterior, o que explica o sorriso do Sr. Victor que conclui o filme - sorriso da reconciliação consigo, da explosão da verdade, seja o preço qual for.

Não há filme de Grémillon que não leve o espectador a perceber o outro escondido no mesmo, a modificar seu olhar de tal modo que esse outro apareça sob os traços do mesmo, resultando numa visão do ser sempre mais rica de nuances, polifônica, única e múltipla ao mesmo tempo. Esse jogo de metamorfoses explode e se generaliza em Lumière d'été, filme virtuoso que vê transformar-se todos os seus elementos: da paisagem montanhosa ao canteiro de obras, não esquecendo nenhuma das personagens. É preciso ver como essa paisagem exterior - na medida da repetição "idêntica" de certos planos (a panorâmica ao som da trompa, a avalanche, etc.) - torna-se paisagem interior, como em Patrice, o rico proprietário (Paul Bernard), o masculino deixa espaço ao feminino com o contato de Michèle (Madeleine Robinson), cuja feminilidade desaparece proporcionalmente e exibe sua ambiguidade. Le ciel est à vous revela uma dupla e feliz metamorfose, como uma permutação: o marido inválido (o "braço" quebrado) troca de papel com a esposa; o marido "torna-se" esposa, a esposa “torna-se” marido.



A manifestação dessas "diferenciações" deve muito, certamente, à notável escolha dos atores e à sua direção. Também não é menos devedora do efeito criado pela utilização da música, a qual, por sua natureza essencialmente "outra", estrangeira à realidade a qual se sobrepõe, parece a mais apta em fazer surgir o fantástico: sugerindo sem nada dizer ou mostrar a existência de um outro plano de realidade, inoculando na imagem sua própria "surrealidade". O final de Remorques, como o começo de Lumière d'été, nada tem a invejar, neste aspecto, à árvore-flauta de André Masson, nem mesmo à Terra sem Pão, de Luis Buñuel. Na abertura de Lumière d'été, um simples som basta para transtornar a percepção de uma paisagem. Esse som, de início não identificado e, depois, no fim da panorâmica, reconhecido como de uma trompa que previne o perigo da explosão das minas, esse som que, por mínimo que seja (uma só nota, duas durações, como no código morse) possui contudo o efeito propriamente musical de alteração do que está dado, convida a ouvir todo som, seja qual for, como uma música. Convite que a banda sonora dos filmes deste músico não cessará de reiterar, incluindo em sua sinfonia generalizada mesmo os murmúrios da matéria.

Esse reconhecimento do outro sob o exterior do mesmo, essa percepção de uma realidade sutil (esta mulher é "na verdade" um homem, este homem faz as vezes de mulher, esse exterior é interior, etc), se elimina as ilusões ocasionadas pela grosseria de um olhar velado pelas representações convencionais, interdita ao mesmo tempo toda fabulação, toda escapatória, todo recurso: pois uma vez percebida a realidade de perto, uma vez desnudado o ser, não resta senão aceitá-la verdadeiramente, os olhos abertos (caminho difícil aceito por André em L'Amour d'une femme), ou morrer (Patrice em Lumière d'été).

Tal amor pela realidade nua, trágica, múltipla, coloca Grémillon no firmamento dos cineastas - e lhe permite atribuir à sua arte, segundo seus termos, uma "função de constatação" assim como um dever, todo filme bem-sucedido tornando-se documentário, de "dar conta" - da crueldade, das sutilezas e dos charmes da existência.

Fantastique réalité foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°10, verão de 1999, pp. 81-84. Tradução: Eduardo Savella.