Essa tarde lhe botamos fogo




Por Camille Nevers

Travolta et moi. Digamos que há filmes que complicam a vida, e aqueles que nos simplificam a existência. Caro diario, ou Travolta et moi, esses dois filmes que avançam cada um da sua forma, nós os percorremos um pouco da mesma maneira [1]: com a uma sensação nada fácil de descrever, de estar lá, muito simplesmente. Quando Moretti deixa o guidão de sua vespa no ritmo da canção de Khaled, ou quando explode White Riot de The Clash em contraponto à melopeia de Christine perdida sobre o gelo, é enfim a mesma coisa — começamos a bater os pés. Estar em cadência, o espectador e o filme, os planos e a música, o movimento e a duração, Travolta et moi, o que pode ser mais simples? Sim, nada mais simples, bastaria apenas conhecer a música. Mas Nanni se desespera por não saber dançar e Christine afirma não saber patinar: há então outra coisa, que não deve nada ao “savoir faire”, que é exatamente o oposto. Não é um acaso se as trilhas sonoras de Travolta et moi e Caro diario são as mais excitantes que escutamos desde muito tempo (estranha coincidência, os mais belos filmes, esse ano, reservam à música e à dança um lugar essencial no seu “desenvolvimento”: J’ai pas sommeilHexagoneTrop de bonheur — e eu adicionaria: do mesmo modo que os mais decepcionantes, o que prova que não há milagres), e os dois filmes se correspondem através da evocação groupie de um modelo, modelo de dança e de cinema popular, John Travolta em Mazuy e Jennifer Beals em Moretti, de tal maneira que Christine reconhece seu ídolo em cada rapaz (Nicolas, Igor e até o aprendiz de confeiteiro) e Nanni em cada mulher (as dançarinas do baile ao ar livre). É que a música não é só o acompanhamento melódico da imagem e que a imagem não é só a ilustração rítmica, pela montagem, da música. Não há um movimento para se acompanhar, mas um movimento a ser criado a partir de várias linhas, a linha de uma narrativa muito simples (um passeio em Roma, um primeiro amor), a linha sinuosa de um corpo que se desloca no espaço (numa estrada, numa ilha, numa padaria, numa pista de gelo...), a linha melódica de uma canção, as linhas do diálogo, as linhas do cenário e outras ainda. Nesses entrelaçamentos de intensidades distintas, que se afastam e se coincidem, o movimento se insinua, se transforma, se desdobra, o tempo se acelera ou desacelera, faz uma pausa, recomeça, tudo isso que chamamos de mise en scène e que é a canalização (uma tubulação ou uma rede elétrica) de um determinado número de energias, de várias linhas de força — tudo isso libera uma certa tensão, mas de maneira que começamos a bater os pés, em cadência... Então, de nada adianta conhecer os passos, ser um entendedor em matéria de música, se é para impressionar, os connaisseurs são maçantes. Os grandes dançarinos percorrem o mundo, eles nos convidam a segui-los passo a passo, e se mexem de tal forma que tudo ao redor deles começa a dançar, que as linhas vacilam e que um movimento se inventa no coração daquele no qual nos encontramos. O filme assim acarreta essa estranha sensação de estar lá, que é física tanto quanto psíquica, o corpo assim como o pensamento são apanhados por um mesmo elã, entram na dança. Quanto a isso, Patricia Mazuy e Nanni Moretti concordam certamente — ou seja, quanto ao essencial: Jennifer Beals e Pasolini, Travolta e Nietzsche, “ambos são dançarinos”. Travolta et moi. 

Nada menos abstrato e também nada menos natural (o filme não é experimental, não é naturalista) que essas linhas. Elas são, aliás, tão visíveis que a imagem é toda sulcada por elas. E, em primeiro lugar — uma pequena linha, uma dançarina —, um cordão no sapato de Christine. Uma linha de ônibus na saída do liceu. É lhe entregando o cordão que Nicolas, esse rapaz “bizarro” com longos cabelos loiros, marca um encontro com a jovem no dia seguinte. Uma história de aposta lançada a um amigo que deve conquistar a terceira, não, a quarta garota que subiria no ônibus — Christine. Uma aposta que teria a ousadia de uma provocação, de uma bravata, desde o início, do roteiro que resolveria nos alertar: primo, que podemos fazer uma história com qualquer coisa e com qualquer um, só importa o que fazemos, a forma de tratar (bem, mal) esse “o que” e esse “quem”; segundo, que, em um filme, dois personagens não se encontram, fazemos com que eles se encontrem, eles são aproximados, então é melhor começar por aí e forçar o encontro; é em seguida que veremos se isso funciona ou não, se os golpes que se sucedem (Christine não poderá ir ao local combinado porque, golpe do azar, seus pais lhe confiaram a guarda da padaria da família para irem a um congresso de confeitaria, em Vichy... o azares se acumularão), se eles se assemelham à vida, seus infortúnios, e ao amor. A partir daí, Travolta et moi nos fará passear através de dois espaços em Chalôns-sur-Marne, o lugar mais vertical da padaria, depois aquele da pista de patinação, mais horizontal. As linhas estão por todos os lugares, as barras da escadaria, as grelhas das bandejas da padaria, as linhas e as faixas coloridas nas paredes, os neons, toda uma arquitetura com ângulos retos, rígidos no espaço da padaria, enquanto que na pista de patinação as linhas são mais curvas. Um é o lugar “quente”, o forno, o espaço reduzido, a família, a clientela frequente, a única música do Bee Gees, o outro “frio”, o gelo, o espaço gigantesco, o metal da estátua, as músicas que se sucedem bruscamente sem unidade de “gênero” (mas sim de espírito, o do rock’n roll, mesmo em plena época do disco (1978), mesmo com Joe Dassin e os Jackson ao lado de Dylan, Nina Hagen, os Clash — é justamente essa junção que é o rock’n rol). Ambos são perigosos: pôr fogo, cair sobre o gelo. Então o filme poderia ser perfeitamente simétrico, com todas suas linhas e seus dois espaços complementares, porém, ele não o é completamente, nem completamente perfeito, nem completamente simétrico e é nesse “não completamente” que o filme se revela genial. Patricia Mazuy filma entre as linhas. A mise en scène se une aos interstícios, ela se interpõe, no sentido que a câmera circula sem cessar entre, ao menos, dois polos de energia que ela libera e conduz na sua sequência (entre Christine e seu pai, Christine e sua amiga, Christine e Nicolas, etc., ou Christine e Saturday Night Fever, a música, Travolta, o cartaz do filme). Um pouco como o disse sobre Moretti (e sim, ainda ele), Alain Philippon em um belo artigo do número de julho, Mazuy está sempre “entre”. E nesse título formidável, Travolta et moi, ela é o “et”, evidentemente. É porque ela ama os desvios, sejam desvios de conduta ou de linguagem, os de ritmo, os de gosto e os cantos afastados, tudo o que precipita o movimento onde nós não o esperávamos, para impelir os limites, encontrar as linhas de fuga: eis o melhor ângulo, um ângulo de ataque, selvagem, para captar as intermitências da adolescência. Sem psicologia, sem interpretação, sociológica, metafórica ou outra, não se trata disso. Somente um campo de intensidades para percorrer, um movimento coreográfico para descobrir, um vai-e-vem ininterrupto (“Isso vai e volta”, “Bom dia, senhora, até logo, senhora”) que nos mergulha na expectativa sem nunca antecipar nada. É verdadeiramente surpreendente do princípio ao fim, funciona bravamente, no momento certo, e funciona. Do menor figurante aos papéis principais (os habitantes de Chalôns-sur-Marne), o jogo se harmoniza. E então Christine. Eu creio que não serei injusta com ninguém ao dizer que Leslie Azzoulai é a atriz adolescente mais surpreendente de todos os tempos. À mercê das palavras que se dissolvem, observem-na, escutem-na quando ela pronuncia — “Um tipo de lanche medíocre para retardados mentais...”, “Chocolate é chocolate!”, “Ela não é triste. Ela é feia” —, tente encontrar algo melhor... Em pouco mais de uma hora, Travolta et moi traça a curva imensa que vai da inocência à liberdade, da pura energia à loucura pura. Acendemos o rastilho e o impacto da explosão, o grito da garota, são de revolta. Ao longo de dois dias e duas noites, Christine não terá dormido, terá conhecido o amor, o real — o amor real, terá lutado por ele, terá percorrido o mundo, terá revolvido a terra e o céu. E o movimento de Christine é como aquele da terra, revolucionário. 

[1] Por mais que eu tenha tentado, esse artigo insistiu em começar por aí: a proximidade singular dos filmes de Patricia Mazuy e Nanni Moretti... Eu deixei que isso acontecesse. 

Ce soir on vous met le feu foi publicado originalmente na revista Cahiers du cinéma, n° 485, novembro de 1994. Tradução: Letícia Weber Jarek.

Link para o filme: https://mega.nz/#!FGBSFAia!4HQV0csi6dv4NLa9BaPTgaZx8UvU20khhaCoK5VG6yU
*Sem legendas, por enquanto.

2 comentários:

  1. Oi Camila

    Este é um dos filmes de que mais gosto, assisti a série de filmes completa Tous les garçons et les filles de leur age na Mostra Internacional de São Paulo em 1994.
    Minha tela de senha no computador é uma imagem da Leslie Azzoulaï deste filme.
    Pena que não esteja mais disponível no site indicado. Fora um fragmento de 20 minutos no Youtube (não sei se ainda está lá) nunca consegui rever este filme na íntegra.
    Patricia Mazuy a diretora, ficava um pouco irritada com o passar dos anos com a insistente admiração de jornalistas franceses deste filme. Este filme ganhou o Pardo de Bronze no Festival de Locarno.
    Leslie Azzoulaï desapareceu das telas depois deste filme. Mas em Travolta et Moi ela teve uma performance estupenda, mágica.

    Meu blog de poesia:
    pothosnoitedaimonica.wordpress.com

    Como você acompanha muito cinema, te sugiro um filme que tenho uma tremenda admiração Un uomo a metà do Vittorio de Seta.

    Obrigado pela bela recordação deste filme
    Mauro

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    1. Bom dia, Mauro. Chegaste a ver a ultima entrevista da Mazuy para os Cahiers du Cinéma? Traduzimos ela aqui: http://vestidosemcostura.blogspot.com/2020/06/criar-colisoes-entrevista-com-patricia.html

      E muito obrigado pelas sugestões.

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