Trechos de “Trafic no Jeu de Paume”








Por Serge Daney

Terça-feira, 5 de maio de 1992, Serge Daney está na Galeria Jeu de Paume na companhia de Raymond Bellour e Patrice Rollet para apresentar o segundo número da revista Trafic. Durante duas horas, ele vai se dedicar a um dos seus exercícios favoritos, a análise do futuro das imagens. Última aparição pública de um estilista da palavra. 

Trafic, uma nova revista de cinema. Deixemos por um instante a palavra “cinema” e peguemos a palavra “revista”. O desejo de passar em revista, todos nós o tínhamos fortemente. Eu sempre o tive já que minha vida se confundiu em parte com aquela de uma revista que se chama os Cahiers du Cinéma. Em um momento, eu tive um sentimento que não deveríamos abandonar isso, a ideia da revista, no sentido em que Godard diz que em “revista” (revue) há “rever” (revoir) — como em Renoir há renascer (renaître), esse tipo de jogo de palavras. É bom rever os filmes, uma revista é feita para rever, e talvez para ver o que nós não vimos na primeira vez. Num clima circundante de mediatização um pouco desesperada, um pouco medíocre e selvagem, a ideia de fazer uma revista me apareceu, não como um programa original, mais como se eu tivesse pego o Littré e procurado pela palavra “revue” para ver do que se trata. Então, aqui está, em uma revista há textos, eles são bons ou ruins, tem uma qualidade intrínseca ou não, isso é mais importante que saber do que eles falam ou como eles falam e se encontramos um ângulo... Hoje, essas histórias são próprias de um maneirismo jornalístico, é preciso retornar às coisas mais simples. Além disso, há pessoas que encomendam, que descobrem, que escrevem quinze textos todos os três meses. Se são bons, isto é, se os textos têm uma certa força, são suficientemente intempestivos, simultaneamente arcaicos e revigorantes, ainda melhor; e Trafic propõe isso através da reconstituição de uma espécie de base, de núcleo duro. Primeiramente, nós sentimos prazer ao se inscrever numa “história das revistas” — e Deus sabe como a França tem revistas prestigiosas, incluindo de cinema —, em seguida, ao enviar garrafas ao mar onde só colocamos coisas que para nós tem valor. Então, não é, de maneira alguma, o cinema, nem todas as formas de examiná-lo, é uma parte do cinema, a parte que, visivelmente, faz escrever hoje. As outras partes do cinema não fazem escrever; as pessoas que gostam de um cinema bem oposto ao nosso, esse dos storyboards ou da Qualidade Francesa reexaminada e corrigida, eles nunca escrevem visto que amam um cinema em que o escrito não tem lugar, profundamente. 



Nos Cahiers, e eu penso em várias gerações dos Cahiers, sempre sonhamos no cinema com algo que era cachorro e gato, óleo e água, que era a imagem e a escrita. Essa família intelectual sempre aceitou fracassar (mas também gozar) sobre a ideia que há a escrita na imagem, e a imagem na escrita. Há alguns anos, sentimos uma vontade muito violenta de acabar com isso, de modo que é a escrita que perde e a imagem que perde. Os professores que diziam: “A imagem vai matar a escrita, pobres crianças, eles não saberão mais ler”, e depois diziam: “Vamos ensiná-los a ler as imagens, dessa forma eles vão lutar contra a televisão”, fazem um mau maniqueísmo. Na nossa cultura, a imagem e a escrita estão ligadas, teologicamente, metafisicamente, isso nos ultrapassa consideravelmente. Mas o dia em que esse paradigma se omitir ou não interessar mais ninguém: 1) não haverá mais revistas, só haverá magazines, 2) há as mídias, e as mídias não se desenvolvem a partir da escrita, elas se desenvolvem por meio do que é descartável; ora, o que queremos descartar, nós não escrevemos sobre. Então, de repente, nós nos descobrimos os únicos griots, eu entendo isso no sentido de o que “escreve” a tradição africana é evidentemente a palavra, a tradição oral não quer dizer nada além de “gravar com as palavras”. E para gravar com as palavras, é preciso que se fale todo o tempo. Como eu sou muito falante, eu sempre falei muito, e minha palavra se torna um pouco mais operacional graças à Trafic

Se pegarmos duas pessoas apaixonadas pela literatura que discutem: “Ah! Você se lembra em Educação Sentimental, a cena com Dulaurier... genial!” É ridículo. Amar a literatura é ter encontrado completamente sozinho essa cena de Flaubert. A única coisa que podemos dizer é: “Flaubert é genial!” e passamos para outra coisa. É a literatura. Eu, quando eu encontro alguém que ama U samogo sinego morya de Boris Barnet, eu sou um griot e eu digo: “E o momento quando o mar cobre todo o quadro, é magnífico; e o momento em que ela não sabe que é ela que chora porque todo mundo acredita que ela está morta, e que ela ri com os dois rapazes que começam a dançar...” O outro visualiza. Ele revê alguma coisa. E o que chamamos de cinefilia (que aborrece tanto os outros), esse prazer reservado aos griots, que consiste em relembrar exagerando, alucinando — incluindo por meio da teoria —, algo que pode regressar, que pode ser revisto. Quando dizemos “revista de cinema”, trata-se de evocar um filme de tal forma que o outro o reveja, então nós nos contentamos. Há aí algo bem infantil, bem adolescente, que felizmente nunca se portará bem, apesar da panteonização do cinema e de todos os abutres. 


Mesmo com o seu aspecto bem sério, Trafic nasceu desse desejo, dessa certeza. Hoje, se pessoas como eu, pessoas que se parecem um pouco comigo, não concordam em fazer essa revista, e se as pessoas não concordam em lê-la, não haverá outro discurso sobre o cinema. Porque o que faz escrever, é o que primeiramente foi escrito, o que faz amar é o que foi primeiramente amado. Eu sou bem platônico nesse sentido: rebatemos a mesma bola. No cinema, essa bola, a nossa, eu penso que ela existe: mas atenção, há uma relação de forças, nós somos bem pequenos. Somos bem resistentes, nós nos apoiamos, isso impressiona, mas somos bem pequenos. Os outros são bem mais fortes que nós. É o orgulho da revista e, ao mesmo tempo, a extrema modéstia de seu lançamento. Não se trata de uma nova revista de cinema no sentido em que rivalizaríamos com os Cahiers, Positif, etc., não é o mesmo projeto, mas se trata de uma espécie de boletim (o menos secreto possível) que, de qualquer forma, deve ser enviado. 

[...]

À propósito de O amante, filme que muito me entusiasmou porque ele é, no entanto, não assistível, muitos amigos que amam o cinema, que não confundem as toalhas do cinema com os panos do audiovisual, me disseram que eu perdia meu tempo escrevendo sobre esse filme: eu aceito a observação em cinquenta por cento. É verdade que talvez não seja necessário escrever uma linha sobre isso, porque isso não nos concerne, trata-se de outra coisa, das técnicas de venda do indivíduo pós-moderno que se compra, que se observa. Mas, ao mesmo tempo, eu não gosto — por atavismo, pelo jornalismo, pelo gosto do presente — a situação que consiste em não levar em consideração Annaud porque é repugnante, para dizer “passemos às coisas sérias”, passemos a Brisseau, por exemplo. Brisseau é unânime na imprensa, é impressionante; Brisseau é um verdadeiro cineasta e, ao mesmo tempo, eu acho o filme [Céline] desagradável. Eu não tenho completamente certeza disso, e é um filme sobre o qual eu não deixei de tentar falar à força com todos os meus amigos. É o último filme que eu vi, eu o acho “clivado”, bizarro, antipático, brilhante... Poderíamos abandonar o debate sobre o filme de Annaud dizendo que ele é indigno de nós, que nós somos superiores a isso, que é o povo que ama Annaud, pois o povo é idólatra e reencontra na publicidade sua idolatria. Os clérigos eternos não vão lhes bater, dizendo-lhes: “Você amará Deus e não as imagens de Deus”, velha história na qual nos reencontramos. Nós deixamos então o povo com as suas idolatrias: antes era Lelouch, agora é Annaud — de repente Lelouch parece imensamente simpático, visto que isso se agravou. Lelouch é um pioneiro, um verdadeiro idólatra do povo, enquanto que Annaud começa a parecer o assassino da máfia... Com o que nós nos parecemos quando permanecemos entre nós, nessa espécie de comunhão que, para mim, não é a tradição oral dos griots mas algo um pouco mais chique de onde dizemos: “Nós temos o Brisseau e isso é um filme de autor”? Eu penso que em Céline, quando nos aprofundamos, podemos terminar por encontrar a mesma vae victis, o mesmo encarniçamento em relação aos personagens perdedores, o mesmo amor pelo ganho, a mesma coisa tacanha, espiritual, new age, etc., que eu não consigo amar completamente. Eu creio que é melhor permanecer fiel à ideia de um único mundo de imagens, incluindo aquele que foi apoderado pelo inimigo hereditário, isto é, a imagem prostituída, a imagem publicitária que foi integralmente prostituída, em vez de se fechar sobre si próprio por meio do “nós estamos acima de tudo isso”.


[...]

As pessoas da Trafic se telefonam, se veem, o que significa horas e horas de “discussões intermináveis”, de reconsiderações, mudanças de opinião, etc. E então, de repente, escrevemos. Para mim — é muito pessoal — , nunca foi compreensível como as pessoas possam ver filmes e não falar deles. Não escrever, aceitamos, mas não falar deles... A cinefilia não consiste em ver filmes sozinho, na penumbra, roçando nas paredes como um rato — esse é só um aspecto da questão —, ela consiste em não falar durante uma hora e meia, ser obrigado a escutar, olhar, e durante a hora e meia que segue o filme, recuperar seu atraso. E se não há ninguém para conversar, vamos escrever, é ainda uma forma de conversar. Logo se trata sempre, ainda assim, de falar, de escrever, com interrupções nas quais o filme tem a palavra. É como o tênis: cada um tem a sua vez de servir. E, para mim, a cinefilia é o que eu chamo de tradição oral, é um conjunto de práticas sociais. Se você elimina uma delas, por exemplo, se ninguém mais escreve, por isso ninguém mais fala, ninguém mais , pois só vemos bem as coisas quando somos capazes de dizê-las, de fazê-las regressar através da palavra, nem que seja porque temos vontade de confirmar às vezes. Eu penso que eu não teria prazer em rever um filme tal como ele é e tal como eu o tinha esquecido se, durante todos esses anos em que eu não o tinha visto, eu não tivesse ainda assim falado dele. Entre o que alucinamos, o que queremos ver, o que vemos realmente e o que não vemos, o “jogo” é infinito — e aí tocamos na parte mais íntima do cinema. Mas é preciso que esse jogo se expresse em algum momento. Isso para dizer a que ponto Trafic consiste em substituir as discussões perdidas, as discussões de bistrot entre pessoas habituadas a discutir por discutir, em um momento em que isso acabará escrito em algum lugar. E porque isso ocorre organicamente, de maneira que tudo se passou agradavelmente entre nós, e finalmente sem muita angústia. É simplesmente o prolongamento natural do que nós já fazíamos, que era não nos resignarmos a nos calar, deixarmos de ser chatos, repetitivos, rapsódicos...


[...]

Pessoalmente, eu não quero mais escrever sobre a televisão porque eu penso que isso não serve pra nada. Para os outros, há certamente coisas para escrever sobre a televisão, eu não sei muito bem quais. Publicamos um texto sobre isso no último número, eu gosto bastante. Eu me pergunto qual é a forma adequada (é um debate que ultrapassa a Trafic) para dizer o que pode haver de revoltante na televisão. Eu pensei que era preciso se debater com os meios que eu tinha, isto é, o jornal, a crônica, discussões, etc., eu fiz isso durante anos — com um sucesso considerável, a questão não é essa —, mas nada volta... A tv é um buraco negro. É como jogar dinheiro em um poço: talvez isso traga sorte... Pra mim, isso não me trouxe sorte, isso me fez perder tempo. Se você retira os filmes, a criação do vídeo que pode existir na tv, você percebe que a tv não inventou nada, que ela é um instrumento de anti-produção e de anti-desejo, para falar como Deleuze antigamente, e que ela funciona muito bem assim. Ela é certamente o que há de mais próximo ao inconsciente da sociedade, e o inconsciente não se julga. É perigoso entrar em contato com as radiações dos lixos da sociedade (eu não digo “lixos” pejorativamente, é uma parte importante da vida). A única questão interessante, mas não sou eu que a elucidará, é que desde que a televisão existe, nós estamos em sociedades que vivem ao lado das suas lixeiras, que as assistem: assistir a televisão é vasculhar o lixo, aliás, encontrando às vezes tesouros. Mas eu creio que isso não tem nada a ver com o discurso crítico, com os restos do progressismo, sobre o desenvolvimento dos espectadores. A televisão é percebida, sabiamente, pelos seus consumidores, ela é a parte não elaborada, não consciente, não assumível de suas vidas. Não serve para nada assisti-la como um semiólogo que diz: “Ah, há uma ideologia por trás da meteorologia”, dizer isso era interessante quando os Cahiers o faziam em 1973, não mais agora. Fomos os primeiros a ter feito isso nos Cahiers, mas ninguém nunca o diz; nós éramos ingênuos e althusserianos, mas era bem sincero e não idiota. 

[...]





Se minha hipótese é justa, se o inconsciente massivo, global (“as lixeiras”) de uma sociedade é, antes, a televisão e que ao lado há essa coisa assaz sofisticada que se chama cinema, que não se encontra nada entre eles, eu fico ainda assim muito inquieto em relação ao que vamos relatar, como vamos relatar, etc. Não podemos tomar partido de uma cultura consciente, que tem uma memória, uma história (o próprio símbolo da memória), essa cultura cinéfila terrivelmente consciente de si, muito bem organizada, que tem seus padres, sem tocar nessas grandes lixeiras que a sociedade deposita em massa todos os dias. Ou então a fissura é definitiva, nesse caso o cinema entra no seu período pós-moderno, em algo que não tem mais muito impacto como a música moderna (eu gosto bastante, eu escuto bastante música contemporânea — eu sou um dos raros, mas eu não imponho isso a ninguém, é um caso encerrado...). É difícil dizer: “Nós amámos loucamente o cinema, que era simultaneamente uma arte sábia e uma arte popular, pelas duas razões ao mesmo tempo, uma levando a outra, com vigarices que não eram possíveis entre o populismo e o elitismo (a história de Cahiers é essa).” Que prazer amar Lang porque minha zeladora via Lang e porque quando eu lia Platão e encontrava Lang. Que prazer para um garoto da minha idade. É inesquecível, essa sensação de andar sobre duas pernas. Há a sociologia, e então eu assisto a tv, e eu fico muito furioso porque a sociologia me coloca na ideologia ou na política, ou nas péssimas maneiras do mundo das mídias aos quais eu reajo rapidamente, e então há a arte. Eu sei que eu não consigo ultrapassar isso. Mas isso deveria ser ultrapassado pelas pessoas mais jovens. A solução é que, porventura, o cinema continue, se desenvolva de forma autônoma e intrínseca ? 

Atualmente, o maior cineasta é certamente Manoel de Oliveira... 85 anos. Ele nunca será majoritário. Mas ele continua o cinema de uma maneira absolutamente estupefaciente, simultaneamente arcaico e completamente insolente. A ideia que Oliveira esteja lá para dez mil pessoas, para sempre, me deixa triste. Então, aqui está, eu estou insatisfeito dos dois lados, é por isso que fazemos uma revista. Eu não tenho a solução. O afastamento é muito grande: nós andávamos sobre duas pernas e então, de repente, nós fizemos uma espargata. Agora, eu concordo que haja uma perna Amante, uma perna Roda da fortuna, e então uma perna Oliveira, uma perna Raoul Ruiz. Mas eu não posso ficar feliz com isso, porque quando eu vejo Diário de um pároco de aldeia, que me faz chorar, e o filme ainda tem duas pernas. E ele fala do povo. Mas talvez deva se dizer que nós estamos aqui, agora, e pegar tudo isso tal como nós o encontramos. Na vida, não é muito importante resolver os problemas, mas antes, viver bem com eles. Então, nós temos ainda assim um problema que diz respeito à sobrevivência autônoma do cinema como memória inesquecível, como lembrança que não devemos esquecer — pois o cinema nos diz que não se deve esquecer. Não é que não se deva esquecer o cinema, é o cinema que assegura toda memória. O cinema é genial. É muito mais do que nós acreditávamos. O que fazemos com ele? 



Eu formei uma espécie de cinema no cinema, e a esse cinema pertence o conceito de luto que eu penso hoje que nós estamos, nós mesmos, em vias de realizar. Meu tempo de vida e de atividade intelectual foi fortemente marcado pelo fato que houve certos acontecimentos no século que só o cinema viu. Os campos são o símbolo disso. [...] Foi a América que, subitamente, nos remeteu uma imagem dos campos e do Holocausto que não era indigna, de forma alguma, que era americana e que teve um sucesso mundial. Eu me lembro que eu me disse na época que nós íamos exibir Noite e neblina porque Noite e neblina era esse pequeno filme que pessoas como eu levaram em cheio na cara aos doze ou treze anos e que lhes disse que o cinema existia, que os campos existiam, que o homem existia, que o mal existia, e que eles nunca mais o esqueceram. Depois, isso se passou para Godard, Rossellini, Antonioni, para todos os modernos. Tarkovski também. E depois, há um momento em que a arte moderna entra em crise, em que a memória está em déficit ou se torna muito seletiva, como se a questão da memória só se colocasse para essa história. 

[...]

O cinema, se ele está alguns anos antecipado sobre o que vai acontecer, é formidável. Eu vou dar um exemplo que todo mundo pode se lembrar, o de Tati. Tati desenha Playtime no momento em que se construía Orly, lá está todo o design contemporâneo no qual nós vivemos, e Tati o extrapola a partir do que ele vê. O cinema é ainda assim muito ligado ao fato de ver ou de não ver, de ter visto bem ou mal, de não querer ver ou de querer ver. Se nós explodimos essa pulsão de ver no cinema, resta o mercado visual. O cinema é uma memória muito particular, especular, narrativa e visual que correspondeu aos primeiros grandes eventos da história da humanidade que eles mesmos tinham uma dimensão privada-pública. O que são os campos? É privado na medida em que não podíamos ir lá de qualquer maneira, mas é público pois é um espetáculo, é posto em cena como um espetáculo. A ambiguidade no cinema, entre o íntimo e o extrovertido, entre a escada do Lido para a star e a pequena história intimista, é também a oscilação do século. Há uma cumplicidade, o cinema se assemelhou ao século, ele o captou mesmo algumas vezes in vivo. É por essa razão que eu digo que é a memória. Não será eternamente verdade porque o século muda. O ato de ver é, neste momento, bem desqualificado, são os processos óticos, é o optically correct que vem a seguir. Annaud anuncia essa nova situação. Então, será preciso se debater para ver, e quando se debatemos para ver, nós entramos realmente numa luta religiosa.


[...]

O que acho absolutamente magnífico em Paradjanov, e sobretudo em A cor da romã, é que ele nos coloca frente a uma questão muito mais louca que não é: “Eu vou fazer a arte armeniana do século XII e eu vou filmá-la”. Ele coloca a sua câmera a uma tal distância das coisas que isso permanece cinema, e o que nós vemos ao mesmo tempo é o que o cinema nunca filmou, vemos pessoas que mostram as coisas de longe, tesouros. Temos, então, algo de magnífico em Paradjanov, da ordem do: se tivesse existido o cinema, um dia, por milagre, alguém teria viajado no tempo e teria posicionado a sua câmera em um mercado em Erevan, e como ele não soube muito bem onde se colocar, um pouco como os Straub em Cedo demais, tarde demais, ele se colocou em um campo e há pessoas que passam e dizem: “Quem é esse zumbi?”, como os homens verdes de Spielberg e lhe fazem sinais à distância mas não ousam se aproximar, e nessa espécie de roteiro louco onde existiria o cinema no coração de uma cena real da Idade Média, Paradjanov reconstrói a hipótese de uma imagem da qual podemos dizer: essa é muito anterior ao cinema. Ela corresponde a uma espécie de intrusão imaginária miraculosa em um mundo que existiu e ao qual nós não teríamos nunca mais acesso, que é o contrário do Nome da rosa, que não está no hiper-realismo da maquiagem mas em: se houvesse cinema na Idade Média, A chegada do trem na estação Le Ciotat teria sido isso para eles e para nós. Eis a verdadeira inocência. E o que é sublime, é que em A cor da romã, Paradjanov empresta os mais belos objetos. Eu acho isso sublime em comparação àquilo que eu escrevia sobre O amante, sobre o sapato, isto é, que não está à venda em Paradjanov e provavelmente que nós estávamos em um mundo onde as belas coisas não estavam apenas à venda. Nós chegamos, assim, a alcançar uma espécie de equivalência de um mundo sem cinema, de um mundo da Idade Média. 





















[...]

Temos uma ausência de imagem. Certamente e é algo dramático. É a forma como, na nossa sociedade, uma parte enorme da experiência de uns e de outros , e sobretudo daqueles que não tem muitos meios para a expressar, está em vias de passar por um buraco negro, dos quais eles mesmos são frequentemente seus próprios coveiros. O que é difícil é não renunciar a essa questão: o cinema é uma arte realista. E ao mesmo tempo não considerar que é um caso de tomada de decisão, de orçamento, de assegurar que uma imagem chegue lá onde, como pelo acaso, nós nunca quisemos ver nada. 



Os italianos parecem ser as pessoas mais vivas, mais cínicas, mais livres dos seus movimentos, os mais descrentes e, por conseguinte, eles são aqueles que mais trabalham com os processos visuais da propaganda no futuro, pela imagem... Eu ia citar Benetton, mas Benetton só faz, por enquanto, cartazes, imagens fixas. Eu não penso absolutamente que o cinema italiano vá se recuperar, justamente por causa disso. É interessante ver como se recicla o talento. O talento italiano foi estrondoso depois da guerra e isso durou uma quinzena de anos, depois os italianos se tornaram ricos, e como as pessoas que se tornam ricas, eles se desinteressaram um pouco pelo cinema. Poderíamos pensar que eles fariam como os ingleses, que abandonaram seu cinema muito cedo, depois do Free Cinema, mas fizeram durante muito tempo uma boa tv, Stephen Frears é o perfeito exemplo de alguém que é um bom produto da televisão inglesa com suas qualidades básicas. Na Itália, nada disso se passou. Eu procuro sempre de onde parte o talento e eu não finjo pensar que vá surgir, aí, um novo cinema italiano. Há Moretti que é a nossa própria vigilância, nosso homem lá, há talvez alguns que estão ao redor dele, mas é muito pequeno em comparação à enormidade do cinema italiano antigo e são resistentes, eles se queixam, tudo bem, são os nossos irmãos, nós os conhecemos. Mas o talento italiano, que é sempre considerável no design, na moda, não foi de maneira alguma para a televisão. Se assistirmos a RAI, é de chorar. Eles realmente falharam na televisão, eles a fizeram pior do que era possível, é surpreendente para pessoas que têm verdadeiramente uma cultura teatral magnífica, uma trivialidade felliniana. Pensávamos que veríamos Fellini não tão bom quanto Fellini na televisão italiana, mas de maneira alguma. É vendo as campanhas de Benneton ou a maneira com a qual Berlusconi carrega seu império que eu me convenci que havia visivelmente grandes predadores, tais como os Condottieri, que sabem manejar o dinheiro, a política, o poder, em uma Itália que chega a um grande momento de sua crise de Estado, que começa a se parecer bastante com a Itália de Dante, uma Itália de pequenas cidades suntuosas não totalmente unificadas. Era só uma hipótese, eu não sei se ela vale: vigiemos a Itália, mas não a vigiemos onde ela não irá regressar, do lado do cinema, nem a vigiemos do lado da televisão, a vigiemos do lado da comunicação em imagens porque os italianos têm uma qualidade que os americanos não têm, eles não creem em nada. São descrentes. E nós vivemos em uma época em que necessitaremos, não nós, mas o grande capital, de grandes artificiosos, de grandes ilusionistas, de pessoas capazes de fazer truques gigantescos, de gerar enormes orçamentos, um pouco como o fantasma de fogos de artifício de Casanova em Veneza filmados por Fellini. E eu penso que isso vai se passar, antes, na Itália. Para acabar, eu diria que eu tive esse sentimento quando eu vi um filme que eu gosto bastante e do qual eu sempre falo bem porque ele não foi levado a sério, é o último Poderoso chefão de Coppola. Eu vi alguma coisa nesse filme que me colocou a pulga atrás da orelha: há o novo mundo e o velho mundo, e o filme consiste em retornar ao antigo partindo do novo. Toda a parte da parada, com a máfia de Nova York, o bale das famílias, é magnificamente feito por Coppola, sentimos que há uma sólida tradição e, apesar da violência, o senso do teatro e da parada, o gosto do espetáculo e essa generosidade americana de se dar como espetáculo dizendo que todo o mundo vai lhes amar — é o único povo na História que pensou que seria amado —, é muito belo no filme de Coppola até mesmo a paródia. De repente, eles vão à Itália, é preciso ir ao Vaticano conseguir um contrato, é preciso ver o velho camponês siciliano que é um falso padre e um assassino profissional, e subitamente, nós entramos na matriz que é simultaneamente o Vaticano e a Máfia, é uma cultura muito mais antiga, é aquela que tem a Ópera com o filho do chefão que canta e que nós acreditamos que ele vai ser morto. E eu me disse que isso era a Itália selvagem, um país talvez não muito longe da selvageria, que podemos imaginar o momento em que ele construiu a golpes de machado as grandes categorias do nosso mundo visual, porque é, de qualquer maneira, o Quattrocento que impôs a perspectiva. Hoje, nós quebramos a perspectiva e é a Itália que a quebra, não a América, eu acho que a América está absolutamente no fim da linha. Pacino deixa essa magnífica cultura da parada, de majorettes, de assassinos e vai se recarregar com os anciãos, os grandes assassinos, com o grande assassino que é o papa, e é seco e frio, para mim, é Benetton. E eu acho extraordinário que isso passe pela Itália, não como a salvaguarda do cinema, mais como a continuação de um capítulo das ilusões, da propaganda e da política, e quanto a isso, a Itália é novamente um país modelo por causa da presença do papa, da ausência do Estado, da desarticulação, pois forjada por essa cultura da qual ela não se ocupa. Então, há certamente uma história que continua e que passa pela Itália novamente, mas não é a história do cinema, e talvez nós, pequenos franceses, e eu mais que qualquer um, herdamos essa obrigação de carregar o fardo da história do cinema porque apenas nós a escrevemos e a vivemos de forma tão séria e tão insubstituível. É um pouco a nossa questão. 

Conversa transcrita por Anne-Marie Faux, Cahiers du cinéma, “Spécial Serge Daney”, n° 458, julho-agosto de 1992. Transcrição republicada na coletânea La maison cinéma et le monde – 4. Le moment Trafic. Tradução: Letícia Weber Jarek. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário