A propósito de Le Ciel est à vous

Por Jean Grémillon

Na carreira de Jean Grémillon, Le Ciel est à vous vem na sequência de Remorques (1939-1941) e de Lumière d’été (1943), dois filmes importantes que confirmaram definitivamente seu lugar entre os cineastas franceses de primeiro plano. Baseado em um roteiro de Albert Valentin e Charles Spaak, dialogado por esse último — que Grémillon reencontra ao seu lado pela quinta vez desde La Petite Lise (1930) —, esse novo filme é produzido por Raoul Ploquin do qual, depois dos anos passados na direção das versões francesas da UFA entre 1933 e 1939 (dos quais, já há quatro anos com Jean Grémillon), é a primeira produção independente no comando da sua própria companhia; ele deixou alguns meses anteriormente a direção do Comitê de organização da indústria cinematográfica (C.O.I.C), organismo de tutela criado pelo governo de Vichy em outubro de 1940 e que, como tal, não é aceitado pela maioria dos profissionais. Essa experiência, ao menos, sem dúvida alguma, forneceu algumas vantagens ao produtor para obter, em diversos níveis, as autorizações indispensáveis para efetuar essa produção, cujo tema (história de um casal de pessoas simples das quais a vida é transformada pela sua paixão pela aviação) não tem certamente em si nada de politicamente temerário, mas que apresenta a dificuldade particular, levando em conta a época, de ser necessário inúmeros dias de filmagem num aeródromo. Começada em maio de 1943 no estúdio de Boulogne, a realização do filme continuará nos exteriores a partir de 31 de julho no aeroporto de Bourget, depois, por causa de um bombardeamento, no aeródromo menos exposto de Lyon-Bron, onde as filmagens se concluíram, na metade de agosto. Le Ciel est à vous estreiará nas salas em 2 de fevereiro de 1944. Com a ajuda de seu tema consensual, ele será, de uma maneira geral, bem acolhido, por motivos por vezes contraditórios, mas se encontrará mais tarde, com a chegada da liberação, no centro das polêmicas da qual ele será menos o objeto que a ocasião. Ainda permanece algo dele com os historiadores de cinema, uns vendo nele um filme “pétainista”, outros o próprio exemplo do filme de resistência. O texto abaixo, que permaneceu até então inédito, foi redigido pelo realizador nas primeiras semanas de 1944, nas vésperas da estreia do filme.

---

Quem dentre vocês nunca se debruçou, quando pequeno, sobre as imagens da astronomia popular do Almanaque Hachette? Elas representavam um homem, um homem bem pequeno sobre uma rota muito longa. Ao fundo aparecia seu vilarejo, o lugar onde ele vive. E, imensa, acima dele, a abóboda celeste, cheia de constelações e estrelas costuradas ao ponto da tela. 

Você também, provavelmente, as observou como Thérèse e Pierre Gauthier observaram essa estranha e fiel cosmografia. Você sabe muito bem... Há Andrômeda, a Cabeleira de Berenice, a coroa boreal, o Cruzeiro do Sul e miríades de outras. Provavelmente nenhum destino particular estava ali inscrito aos seus olhos. Ao menos eles o pensavam. 

Pois Pierre e Thérèse Gauthier não têm ideias particulares. Pierre pensa simplesmente que aquele que faz o pão trabalha para aquele que corta as roupas, e este que corta as roupas o faz para aquele que ensina o alfabeto, a aritmética e o vocabulário. Sua mulher, Thérèse, pensa também que é um trabalho, um trabalho útil aquele de cozinhar os alimentos, que é um trabalho de amor como aquele que embeleza sua vida e a de suas crianças.



Eles são como todo mundo. Não são heróis. Eles estão afogados na multidão. E nesse fragmento de suas vidas que conta Le Ciel est à vous, há muitas aparências frívolas, hesitações, mentes pequenas (como em todas as vidas) que três em cada quatro vezes bem arriscam de arrebatá-los até o dia em que, finalmente, uma grande coisa é realizada. 

Nesse fragmento de suas vidas há apenas o esperado, um pouco de banalidades e muitos lugares comuns com, todavia, esse acento de simplicidade e despojamento que é próprio das pessoas simples. Tudo se encadeia na vida de M. e Mme. Gauthier com um rigor que condena as reviravoltas de teatro e as paixões excepcionais. E, contudo, algo de grande acontece, tão grande e tão simples que sua história se torna extraordinária.
A glória em si não tem para eles nenhum valor. O que os anima, é um elã impetuoso do coração, e a aviação será aí somente um pretexto para a transfiguração da realidade de um meio em uma realidade superior. 

Aqueles que poderiam pensar que esse filme glorifica o espírito de aventura que nasce no seio de uma família honesta de artesãos se enganariam tanto quanto aqueles que, ao observar a vida desse casal hábil e trabalhador, esperavam que à custa de tantas virtudes providenciais, eles receberiam a recompensa merecida e subiriam na hierarquia social. 

É uma história bem mais simples que tudo isso: há tantos prazeres e alegrias sobre a terra, apesar de tantas misérias e pesares, há tantas maneiras e espaços para apreciá-los que Thérèse e Pierre estão certos de se deter um dia sob uma árvore. E se, através do verde e de seus galhos eles veem ainda o céu, eles ali descobrirão sempre, como todos aqueles que olham bem no fundo de suas almas, no fundo do céu que está neles, a constelação, a pequena estrela cadente que era o símbolo das suas esperanças. 

À propos du Ciel est à vous foi publicado no livro Le cinéma? Plus qu’un art!...– Écrits et propos (1925 – 1959), coletânea de textos de Jean Grémillon. Tradução: Letícia Weber Jarek.

(Link para o filme com legendas em inglês.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário