Breve mas Verídica História da Pintura Italiana #1


"Comecemos com a pintura. Neste ponto é necessário recordar que faço retroceder o princípio da decadência de Veneza ao ano de 1418. Ora, Giovanni Bellini nasce a 1423 e Tiziano em 1480. Giovanni Bellini e seu irmão Gentile, dois anos mais velho, fecham a série de pintores religiosos de Veneza, e o mais solene espírito de fé religiosa anima ainda todas as obras de ambos. Por outro lado, não há sombra de religião em todas as obras de Tiziano, nem traço de simpatia, seja por si mesmo ou por aqueles que pintava. Seus vastos temas sacros não são senão motivos para uma demonstração de retórica, de composição e de cor. E suas obras menores estão geralmente subordinadas à exigências retratísticas. A Madonna na Chiesa dei Frari não é senão uma figura mundana introduzida no quadro como ponto de conjunção aos retratos dos vários membros da família Pesaro que a circundam. Ora isto ocorre não porque Giovanni Bellini fosse homem religioso e Tiziano não. Tiziano e Bellini são os representantes das escolas nas quais operam, e a diferença de seus sentimentos artísticos é uma consequência da diferença, não tanto de seu caráter, quanto de sua primeira educação. Bellini crescera na fé, Tiziano no formalismo, e nos anos que correm do nascimento de um àquele do outro morre a religião vital de Veneza." 

John Ruskin, Pedras de Veneza. 


"Examinai agora as quatro Pietà e lhas ordenai em progressão. Em cima à esquerda está a Pietà do Museo Correr, a mais antiga. Fio de ferro lento e tortuoso do contorno; rugas de carne e dos drapejos: definição da psique dolente com o meio acurado da linha. 

A Pietà do museu de Brera é quase contemporânea. O metal de Padova venceu os caracóis de lenho de São João, as lâminas dos drapejos, as bocas abertas em tomento silencioso. Mas como já se desfaz mais largamente o mármore do peito de Cristo! 

É necessário todavia passar à Pietà do Palazzo Comunale de Rimini para ver quase realizada a renovação. Eis o quadro todo ocupado de tonalidades alternadas colorísticas claras e escuras: eis os corpos tornados de uma substância mais viva e respirante, como de açúcar, onde a sombra se deposita maciíssima, eis o modelado arredondar-se como nas cabecinhas angélicas: eis a cabeleira de lenho encaracolado passar por melenas largas e fusas: eis o corpo infundir-se de âmbar e as vestes fazerem-se de rosa.

Na Pietà de Berlim a largueza é ainda maior. Uma unidade estrutural funda o coro de Cristo e dos anjos em poucos planos lentíssimos. Como se -conglobam- as três cabeças no alto, como se fundem os bracinhos aos braços do morto! Que lentidão de curvas brotadas nos ombros, nas asas: e detrás das asas o engaste denso e vibrante de um céu turquesa! - e também, inevitavelmente, que repousada dor. Pensai nisto se quiserdes compreender como o estilo figurativo é o que determina as expressões psíquicas igualmente difusas em toda a composição.

Da primeira Pietà a esta última vimos o tormento agudo lancinante transmutar-se em repouso sentimental, em calma depois da dor, em resignação pacata e lenta. Ora é a linha que desaparece para dar lugar aos planos e à cor: nada além disso. Este é o grande segredo portanto: saber fazer coincidir as grandes razões do estilo com os grandes sentimentos humanos. Só a linha pode exaltar e sublinhar o tormento: só a cor e a planificação podem dar a calma silente do espírito. Mas compreendei também o seguinte: não se pode ir além desta unificação sentimental de todas as figuras do quadro, isto é, não se pode andar em direção do drama produzido pelo contraste psicológico: isto o estilo repugnaria. Na Pietà de Brera não poderia haver uma pessoa resignada e calma (plano e cor) ao lado das que sofrem (linha): na Pietà de Berlim os anjos não poderiam mais chorar (caretas lineares). Isto vos preludia a explicação da eternamente florida calma de todos os grandes venezianos que procedem do segundo estilo de Bellini.

Uma outra obra vos mostra melhor a renovação de Bellini. É a Transfiguração de Cristo no Museu de Nápoles. Pensai de modo geral na composição toda descentrada e de perfil do Cristo no Horto, e vedes como foi transformada nesta solene -centralidade- compositiva onde o Cristo forma com os apóstolos embaixo uma pirâmide humana análoga à ressurreição de Piero no Borgo San Sepolcro. Pensai numa ordem mais alta que o antigo e que o novo modo que Bellini tem de ver o mundo. Lá dizia: para mim o monte desejará ser um organismo robustamente estudado em sua ossadura lapídea como um organismo humano: o céu, em cima, uma cavidade onde vaguearão nuvenzinhas nervosas sempre mutáveis de contorno; sobre o terreno rachado o tronco desenhar-se-á pungente em toda a esilidade aguda de suas fibras salientes enquanto, ao lado, o homem encurvar-se-á também ele em pose afilada seu contorno vivaz e articulado. Era o desenhista quem falava. Mas agora fala o colorista, o prospético: para mim o terreno será massa de húmus colorístico marrom manchado de retalhos verdastros que se achegará ao céu, não mais cavidade neutra mas faixa azul com faixas brancas de nuvens, enquanto o tronco será caractere marrom decalcado sobre marrom mais claro, e o homem dois retângulos, azul e vermelho ( está parado) dois trapézios (ele se move) estreitos ao húmus do solo e unidos com formas mais distantes por meio de suas fronteiras divisas em planos macios. Compreender estes dois solilóquios poderia bastar para fazer-vos entender a divergência de visão e de concepção entre o desenhista e o sintetista."


"Uma olhada em algumas das peças de altar do período maduro de Bellini. A Madonna com seis Santos na Academia de Veneza. A função dos vastos fundos variegados de paisagem é aqui substituída admiravelmente pela arquitetura. Estesura lenta de abside dourada - o fundo de ouro dos Seneses - o aplanar-se de lesenas cândidas, de tons alabastrinos, espelhamentos polícromos de mármore. Ali se entrevê calma em seu lugar a forma humana convergindo em dois planos em direção da Virgem e do Menino. Posições estáticas e, todavia, extáticas. Ardor benigno e flamejante de vida nos santos: sob uma colherada de neve alpina cintilante ao Sol. Os anjos sonantes, irmãos espirituais daqueles de Melozzo. E a matéria pictórica exala incensos sempre mais agudos dos campos de cor.

No famosíssimo Tríptico dei Frari: composição única de espaço convergente, única de cores de cava ardentíssima entonadas sobre ouro fervente do fundo enfaixado de correntes lisas de marrom e de candor. Mas olhai mais para dentro. Para o espaço: que tom amolado vos permite conquistá-lo com plácida segurança: é a magia, enfim, da forma em planos que escapa do manto da Virgem em deliciosos cristais de turquesa e que ampara e interrompe a pose imprevista do menino. Para a cor: como se mete deliciosamente o grupo divino na substância áurea do campo, como sem esforço os santos penduram nos breves espaços verticais seus mantos de negro fumoso manchado do candor de um livro e rematado pelo cajado ebúrneo de pastor!

Com os mesmos olhos deveis procurar usufruir a Peça de San Zaccaria: Madonna com o Menino entre Quatro Santos, ou o Batismo de Cristo em Vicenza, no qual podeis ainda comparar a centralidade compositiva que desce em linha reta do Pai Eterno, através da Pomba e da concha, ao corpo de Cristo: mas sobretudo a distância do espaço fechado de largas zonas de montes e do grande espelho de céu avermelhado e estriado de nuvens. Com os mesmos olhos a última peça de altar em São João Crisóstomo onde a perspectiva sobrelevada que fecha mais no alto a boca do quadro tem a mesma função de leito colorístico que na Ressurreição de Piero; e vos devem ficar igualmente claros de sentido os Santos recostados aos largos espelhamentos marmóreos e a curva sintética do manto de São Gerolamo no alto que se repete na faixa clara de céu e na escura do sub-arco.

Nem gostaria que esquecêsseis um quadrinho de dimensões menores, mas de mesmo período e estilo. É a alegoria das Almas do Purgatório nos Uffizi.

Ficastes embaciados! Enfim este maravilhoso espelhar-se de reflexos de claro e de escuro do alto do céu à terra. Devei aproveitá-lo como um tabuleiro mágico que deixe transparecer em intervalos em cada planura branca e preta um quadrinho de vida e natureza. Onde navegaremos? nos laguinhos polícromos do terraço estriado de faixas marmóreas: ou no lago verdadeiro? Onde repousaremos ou nos deteremos? nos rebocos escuros das florestas: ou nas casinhas de açúcar docíssimo? Uma coisa somente eu não gostaria que desejásseis, uma vez no terraço: que é o skating. Não compreendeis que o repouso da cor seria destruido? Mas segui o conselho destes atores silentes: recolhei-vos e, apartados, fazei zona simples de turquesa ou de vermelho entre duas zonas cândidas de mármore."

Roberto Longhi, Breve mas Verídica História da Pintura Italiana. Tradução de Eduardo Savella.

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