Breve mas Verídica História da Pintura Italiana #2

"Há uma bela página sobre a pintura toscana em Noces de Camus, a propósito de uma viagem em nosso país. O pintor toscano não pinta um sorriso efêmero ou um pudor fugaz, não pinta a saudade ou a espera, mas relevo de osso e calor de sangue. Destas faces coaguladas em linhas eternas, some para sempre a maldição da alma. 'As custas da esperança. Porque o corpo ignora a esperança, este não conhece senão o pulsar do sangue. A eternidade que lhe é propria é feita de indiferença. Como aquela Flagelação de Piero della Francesca na qual, num pátio recém-lavado, o Cristo justiçado e o carnífice de grossos membros deixam surpreender o mesmo destacamento. Este suplício, de fato, não tem séquito. E sua lição se detém na moldura da tela. Porque comover-se por quem não espera o amanhã?' Esta impassibilidade e esta grandeza do homem sem esperança é justamente o que previdentes teólogos chamaram de inferno. 'E o inferno, como todos sabem, é também sofrimento da carne. Nesta carne detém-se os toscanos, não em seu destino...'. São os dias em que Camus prova o tom de seu Estrangeiro, e é sobretudo tocante que um dos mais aclamados escritores do nosso tempo queira ver um romance existencialista, seu primeiro romance existencialista, na estupenda pala de Urbino. Um trecho sugestivo, dirão, mas que ao menos a propósito de Piero, depois de haver entrevisto grande parte da verdade, continua em direção do equívoco. Como ao equívoco termina por tender, mesmo se o princípio polêmico é legítimo, o impulso que Berenson comenta no último diário, Sunset and Twilight: "Faz alguns dias me veio a feliz ideia de escrever sobre o favor popular do qual usufrui neste momento Piero della Francesca e de explicar essa sua popularidade. Eu pretendia descartar vários esnobismos intelectuais que estão na base da compacta admiração por ele, muito devida, na minha opinião, à necessidade de justificar um culto análogo por Cézanne...". É o impulso que leva Berenson a compor o seu Piero della Francesca ou da arte não eloquente, um elegante, fascinante discurso que se perde um pouco no vazio, na tentativa de chegar à questão considerada fundamental que, além das qualidades técnicas, seja sobretudo a falta de sentimento de Piero, a falta de expressão de suas personagens a impressionar. 'Suas figuras se contentam em existir. Existem e basta. Não se dão nenhum trabalho de explicar, de justificar sua presença, de causar a simpatia, o interesse do espectador. Faz cem anos Jacob Burckhardt, falando de certas palas de altar do último Bellini, as chamava de Existenzbilder, quadros de existência. Eu hoje quase não ouso servir-me deste termo pelo medo que venha a ser confundido com o existencialismo, ou melhor, com uma filosofia que não entendo. E no entanto são assim as grandes artes figurativas...'. Também Berenson aferra grande parte da verdade, mas depois procura chegar a uma conclusão que lhe é distante. A Madonna com o Menino na pala de Brera, a cujo encanto Berenson está sujeito, é feita nem mais nem menos como a Flagelação de Urbino, não com a falta de sentimento de Piero, mas sim com sua extraordinária capacidade de sentir, a integrissíssima fé nas regras da execução pictórica como regras morais. Entre romance existencialista e quadro de existência, cabe procurar um ponto intermediário. Os temas que de vez em vez Piero escolhe, uma flagelação ou uma Madonna, a celebração de um tirano ou uma ressurreição, é sempre superado pelo férvido transmutar-se da ciência em arte, uma arte que eternize a beleza, a completude, a harmonia do criado."

Oreste del Buono, La Luce del Presente.

"Ou vede a Ressurreição de Cristo, em Borgo San Sepolcro, a pátria do grande pintor. Pensai o que teriam feito Botticelli ou Sassetta. O Cristo volejaria no ar curvando-se flexível com o auxílio das asas dos drapejos flamulantes; os quatro guerreiros fugiriam ritmicamente em pares pelos dois lados do quadro com quatro manteletos esvoaçantes. Aqui, pelo contrário, o intento é o de assentar diante de vós no espaço uma construção de corpos humanos imóveis, isto é, em relação arquitetônica, e de planos. O Cristo e os guardiões formam juntos uma composição piramidal intangível. Olha se o Cristo continuasse sua ascensão ou se um só guardião despertasse! A relação estética seria perdida e vós ali deveis por conseguinte comprazer-vos na unidade deste volume inalterável. E, se desejais desfrutar de algum particular, observai a canelura arquitetônica no torso de Cristo - eixo da composição - e os guerreiros ligados pelos pés ao centro da pirâmide, revoltos como quatro pétalas abertas de um volume recolhido, como quatro gomos de um fruto redondo ligados ainda por um filamento na base. E a cor? O seguinte: a pirâmide se torna triângulo variegado de zonas de discos de placas onde as cores se correspondem misteriosamente. O intento colorístico, de resto, se revela na perspectiva sobre-elevada das colinas escuras, concebida para fornecer alvura colorística oportuna ao corpo de Cristo - marfim envolto de drapejos cor-de-rosa - que de outro modo não teria destaque sobre o céu, no qual retornam os tons claros de azul estagnado de nuvens estriadas de violeta sufocado e de rosa!

Mas criações ainda mais absolutas Piero nos deixou nas histórias da Verdadeira Cruz, que transmutaram as paredes do coro da Igreja de São Francisco de Arezzo em imensas tapeçarias placida e largamente variegadas, abrindo no próprio tempo visões amplíssimas e seguras de distâncias ensolaradas. Lá, quando a arte figurativa for para vós qualquer coisa de ativo e de substancial, podereis receber as sensações mais altas que as de qualquer outra criação pictórica, antiga ou moderna.
  
Na Derrota de Cosroé deveis de imediato sentir o espaço murado pelas infinitas intersecções do movimento humano, movimento, bem entendido, não da ação, o que significaria dizer linha funcional, mas movimento partido deslocado angular, tal qual foi criado por Paolo Uccello na Batalha de Santo Egídio; aquilo que dá a esta composição colorística o aspecto de uma muralha ciclópica de maços poligonais de grandeza e de cor diversas, aplacada somente no alto no marfim da lança que se imerge no leite da nuvem, à esquerda, e à direita no estandarte largamente cruzenfaixado e naquele de Cosroé no qual o negro da figura mouresca imprime-se sobre o branco com efeito de cor ao menos tão moderno - quanto vós, infelizmente, não sois, pardon, ainda capazes de compreender.

Eis o Sonho de Constantino, uma das maiores criações do gênio italiano. Eixo da composição é o mastro liso da tenda que se expande num cone amarelo avermelhado variado de poucas pregas cilíndricas: enquanto em baixo se entrevê a massa enquadrada - cobertor vermelho lençol branco - do leito, e despontam cândidos bulbos de metal sobre as cabeças dos guardiões: massas de cor, de forma, planos de luz, coincidem numa liberdade superior de geometria não-euclidiana."

"E, de um só golpe, tudo se transmuta em vastitude de composição colorística. Assim a monumentalidade se torna superfície: o cavalo escorçado se expande num largo disco claríssimo; sobre os grandes espelhamentos marmóreos estendem-se os damascos dourados, as vestes violeta ou marrom, listradas de arminho, enquanto à esquerda nas bacias compreendidas entre as encostas inclinadas de duas cervizes humanas versa-se o líquido verde de uma colina tão distante - como forma, tão próxima - como cor!

A obra-prima absoluta é, todavia, a Derrota de Magêncio. Se haveis compreendido que alegrias nos possa dar a cor distendida em largas superfícies de repouso - 'o repouso da cor' - se vós mesmos agora sabeis repousar sobre estas pradarias de tintas várias como as estações podeis compreender a Derrota de Magêncio seguindo a equivalência verbal que tentei alhures e que repito-vos aqui, não sem medo de parecer algébrico (se a álgebra é difícil): 'Lenta irrigação segura dos arrozais da pintura. Estesura de homens e de animais esplanados na achatada colorística quase sem saliências. Escorços rematados, troncos aplanados, joelhos partidos, tamancos torneados, branco e preto numa silenciosa partida de xadrez. Poços redondos de forma soldam-se, tapam-se colinas raspadas e manchadas, hastes e lanças que irrigam à esquerda de leite de âmbar e de ébano líquido o prado azul do céu que nuvens bordadas de luz reparam, enquanto à direita estende-se à secar a desconfinada pétala rosa do estandarte vitorioso do derrotado, e as incorruptíveis esferas de marfim pálido procedem movediças sobre os elmos metálicos até que na luz abaciada tornem-se sobre o peito cerúleo do céu, medalhas - de valor colorístico!'. Quando fordes capazes de dar sentido a cada palavra desta restituição literária de uma obra pictórica poderei crer que tereis finalmente compreendido o que precisamente seja o encanto mágico da síntese prospética de formacor."

Roberto Longhi, Breve mas Verídica História da Pintura Italiana. Tradução de Eduardo Savella.

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