Três mortos


Por Jean-Claude Biette

CHAPLIN

Graças ao cinema, Chaplin, que acaba de morrer dia 25 de dezembro, teve mais espectadores que Ésquilo, Shakespeare, Molière, Racine, Claudel ou Brecht. Antes da multiplicação dos aparelhos de televisão, Carlitos era uma das primeiras pessoas que uma criança deste século conhecia, imediatamente depois de seus pais. Mas sem dúvida frequentemente a criança preferia o Gordo e o Magro, que interpretavam muito melhor a comédia do papai e da mamãe, e nos filmes em que podiam ainda reconhecer todos os membros de sua família. Mas Chaplin é o cineasta que melhor fez passar o espírito da infância nos sombrios assuntos dos adultos. Ele não se dirige às crianças, ele se faz de criança para que todos os adultos que sofrem e que estão enredados nos dramas da vida social assistam ao espetáculo da agilidade de um indivíduo que foge e não triunfa a não ser pela artimanha e o cinismo da exploração, das perseguições e da pobreza. Os filmes de Chaplin são, no fundo, o resultado de uma análise desencantada da vida: que ele chore, que ele ria, ou que ele suspire diante de uma mulher, ele interpreta sem cessar e não esquece nunca, durante pelo menos um décimo de segundo, de olhar para a câmera, quer dizer, para o espectador, para lhe pedir que acredite em seu jogo. À exceção talvez de O grande ditador, ele nunca idealiza seus combates. Fizemos de Carlitos uma espécie de Dom Quixote, mas ele é mais Ulisses, Renart ou Panurge. Sua primeira obra-prima de longa metragem, O circo, 1928, muito superior a Em busca do ouro, 1925, conduz a filmes cada vez mais profundos, onde o cinema se impõe com cada vez mais fluidez até à leveza sublime de A Condessa de Hong-Kong. Luzes da ribalta é o mais belo filme feito sobre o espetáculo e sobre a vocação artística e Monsieur Verdoux é um definitivo "Não se deixem enganar!", oposto a todos os valores sociais. 

Podemos pensar que sem Carlitos, Renoir e Pasolini não teriam talvez sentido a mesma urgência de fazer filmes. Cineasta menor que Mizoguchi, Chaplin é, no entanto, o único a ter filmado todas as emoções, e ele foi provavelmente o único ator a ter interpretado todos os papéis, inclusive a sinceridade, com tanta arte. 

HAWKS

Morto um ou dois dias depois de Chaplin, Howard Hawks simboliza a livre iniciativa americana, diante da grande máquina contra a qual Chaplin igualmente se batera. Hawks era unido ao dinamismo confiante dos USA. Sua obra afirma a sua certeza e ignora a crítica. A glória de Hawks na França é obra de Rivette, de Rohmer e dos cineastas-críticos da Nouvelle Vague. Esta glória repercutiu nos USA. E é pouco surpreendente que um cineasta que fez de tudo para ganhar sua independência em Hollywood, como produtor e diretor, tenha feito uma grande quantidade de filmes que dão o testemunho de suas qualidades de lutador e de lógico.

Muito mais que Chaplin, Howard Hawks simboliza, com Hitchcock, a cinefilia, fenômeno que consistia em descobrir e defender cineastas desprezados pelo conjunto da crítica. Pouco a pouco celebrávamos Hawks por ter dado a cada gênero sua obra-prima. Isto é, visto de perto, um pouco inexato. Rio Bravo, 1958, não é o mais belo faroeste do cinema americano (podemos preferir a ele um Ford, um Dwan, um Walsh, um Fuller, um Nicholas Ray ou um Boetticher); Águias americanas, filme de guerra de 1944 é menor que Fomos os sacrificados, filme da mesma época de John Ford, e O inventor da mocidade não eclipsa as comédias de Lubitsch, de McCarey ou de Minnelli, e porém Howard Hawks é um dos muito raros cineastas a ter acertado em todos os gêneros. No entanto a noção mesma de gênero marca o caráter relativo de seus sucessos: sua grandeza no relativo o impediu por vezes de considerar o risco de afrontar o absoluto. Este risco foi, no entanto, assumido uma vez em Terra dos faraós, filme extraordinário em que o relativo confessa seus limites: o trabalho, desta vez, conduz a um gigantesco dispositivo sepulcral.


A força de Hawks é o seu senso do concreto, do pequeno detalhe que constitui o funcionamento do todo, e a justeza do tempo de seus filmes. Se há ironia ou derrisão, não é Hawks que lhes inclui: elas não provêm de nenhum outro lugar a não ser da pouca importância no absoluto do desafio que anima estes personagens que vivem plenamente o relativo, mas que, sobretudo, não querem sair dele. A grandeza nasce da modéstia de uma mise en scène purificada de qualquer elemento simbólico. E é isso que levou tanto tempo para descobrir. Nesta obra que não evoluiu, nem progrediu, eu proponho a minha escolha: O código criminal, 1931; Scarface, 1932; Vivamos hoje, 1933; O paraíso infernal, 1939; À beira do abismo, 1946; Rio Vermelho, 1948; O rio da aventura, 1952; O inventor da mocidade, 1952; Terra dos faraós, 1955; Rio Bravo, 1958; e Faixa Vermelha 7000, 1966... alguns filmes inesquecíveis que é preciso rever tentando esquecer os discursos humanistas sobre a amizade viril e a grandeza do profissionalismo sob os quais a maioria dos críticos afogam ainda a obra de Hawks. E nesta escolha os maiores: Scarface, A beira do abismo, Rio Vermelho, O rio da aventura, O inventor da mocidade, e Terra dos faraós, estes só carregam esse traço com a maior ambiguidade. Poderemos reler com circunspecção "Gênio de Howard Hawks" de Rivette, "H.H. ou o irônico" de Comolli e "Velhice do mesmo" de Daney. Mas o mistério Hawks, para mim, nunca foi esclarecido... 

TOURNEUR

Precedendo na morte Charles Chaplin em uma semana, Jacques Tourneur teria passado despercebido durante toda sua carreira. As histórias do cinema consagram páginas ao seu pai Maurice, que era considerado por Griffith como um grande cineasta, mas se elas mencionam o nome de Jacques é apenas ligeiramente. Se houver a chance de os reencontrar, é preciso reler as excelentes entradas de Eisenschitz na "Enciclopédia do Cinema" assinada por Roger Boussinot, e os artigos de Louis Skorecki, alias Jean-Louis Noames, nos Cahiers.

Depois de ter sido montador dos filmes de seu pai e de ter realizado quatro filmes na França, Jacques Tourneur emigrou em 1934 aos U.S.A., encontrou trabalho na M.G.M., fez uma vintena de curtas-metragens narrativos, depois em 1939 seu primeiro longa-metragem americano série B (menos de 80 minutos), They all come out, filme sobre as prisões. Depois de três outros filmes nunca lançados na França, ele começa a sua colaboração na R.K.O. com o produtor Val Lewton, que resulta em seus três grandes filmes: Sangue de pantera, 1942; A morta-viva, 1943; e O homem-leopardo, 1943. Lembremos que Sangue de pantera, rodado em 21 dias com 130.000 dólares, primeiramente detestado pelos responsáveis da R.K.O. e finalmente lançado com um contrato de uma semana no Hawaï Cinema, ultrapassa as receitas de Cidadão Kane, fica treze semanas em cartaz, rende um milhão de dólares e salva naquele ano a R.K.O. Depois destes três filmes, a R.K.O. o leva a fazer Quando a neve voltar a cair, primeiro filme de Gregory Peck, 1944, e Idílio perigoso, 1944 - dois filmes de grande orçamento - então o "empresta" (estes são os termos de J.T.) à Universal para fazer um faroeste de grande orçamento, o magnifico Paixão selvagem, 1946. Tourneur volta à R.K.O. e faz Fuga do passado, 1947. Ele mesmo me disse ter recusado várias vezes rodar este filme policial cujo roteiro não lhe agradava até que todas as modificações que ele queria fazer tivessem sido aceitas: ao contrário do que se pode ter dito, ele é totalmente responsável por este roteiro. Em seguida, realiza Expresso para Berlim, 1948, comparável na sua proposta a Alemanha, ano zero de Rossellini. E para citar somente seus filmes mais marcantes: O testamento de Deus, 1949, inédito na França e que podemos, graças a Patrick Brion, esperar ver na FR3, filme preferido do próprio Tourneur; O gavião e a flecha, 1950: o sublime A vingança dos piratas, 1951; O gaúcho, 1952, belíssimo filme contemplativo com Gene Tierney; o desconcertante Almas selvagens, 1953; Choque de ódios, 1955; Pelo sangue de nossos irmãos, 1956; e em 1957 o relativamente célebre A noite do demônio, que podemos ver de tempos em tempos na Cinemateca. Depois disso, filmes claramente menos bem sucedidos: Fabricantes do medo, sobre a manipulação da opinião publica pelas pesquisas, 1958, que amaríamos ver na França, e Timbuktu (Tombouctou, na Bélgica), 1958. O Gigante de Maratona, 1959, tem algumas cenas bonitas. Em 1963, Farsa trágica, comédia macabra com Peter Lorre e Vincent Price, e em 1965 seu último filme, Monstros da cidade submarina, baseado no poema de Edgar Poe, "City in the sea", inédito na França e lançado na Itália em 1968. Jacques Tourneur realizou igualmente dramas de televisão dos quais o mais conhecido é Um chamado na noite, 1962, que Daney viu nos U.S.A., bem como uma série, Northwest Passage, 1959, da qual J.T. realizou oito episódios. (Para mais detalhes remetemos ao número 181 dos Cahiers e ao número especial de Présence du cinéma consagrado igualmente a Allan Dwan, onde figura uma filmografia estabelecida por Simon Mizrahi e comentada por J.T., números difíceis de encontrar, bem como a reunião realizada por Bertrand Tavernier na Positif n° 132).


À exceção de O testamento de Deus, que Tourneur teve tanta vontade de fazer que não viu inconveniente em receber o salário de um iniciante, todos os seus filmes foram filmes de encomenda. Tourneur era conhecido por fazer com nada filmes que se sustentavam. É o mínimo que poderíamos dizer dele. Tomado em Hollywood por um pequeno artesão, para não dizer um tarefeiro, hoje que as glórias terrestres da Meca do cinema estão desaparecidas ou mortas, a obra de Jacques Tourneur, solitária, modesta, sem brilho, revelou isto: enquanto que o cinema de Hawks é um manifesto da evidência (cf. texto de Rivette) e se afirma pela justeza (das relações, do jogo dos atores, das ações, do ritmo etc.), o cinema de Jacques Tourneur é um manifesto da verdade que se esconde no próprio cinema. Nada é camuflado: os elementos mais desprezíveis (segundo os outros) ou os mais pobremente convencionais (na minha opinião) aqui tem seu pleno emprego e seu recado para dar. Mesmo o vazio das convenções ou das censuras fala, aqui. Nos tempos mortos dos filmes de J.T., é a vaidade de Hollywood que se desnuda. 

Seu cinema repousa sobre a crença no invisível, que começa por se identificar ao espaço e aos sons em off para atrair até ele a linguagem supostamente pertencente ao reino dos mortos, aos fantasmas, ao além, e que o cinema é capaz de fazer dialogar com o visível, com os limites do quadro e com uma certa familiaridade psicológica exprimida pelos atores. Jacques Tourneur fundou seu cinema sobre esta troca que era para ele coisa natural, e na qual chegaram no fim de suas vidas Dreyer, Fritz Lang e Mizoguchi.


Posfácio


CHAPLIN

Podemos, talvez, ser surpreendidos ao ver que eu falo de Jacques Tourneur mais do que de Hawks e de Hawks mais do que de Chaplin. É que pela própria natureza de seu gênio e pelo eco universal que provocou antes e sobretudo o ator, Chaplin ultrapassa os problemas específicos do cinema. Se frequentemente os espectadores não enxergam reais diferenças entre os primeiros curtas metragens de Carlitos e, digamos, Tempos modernos, de Charles Chaplin, mas lamentam no curso dos anos um enfraquecimento da força cômica, não é o mesmo para quem é sensível a todos os elementos que entram na composição de um filme. E, contudo, os historiadores do cinema e os escritores terão escrito páginas e páginas sem nunca se dar conta do gênio cinematográfico de Chaplin: nós perderemos, então, tempo lendo-os. Vale mais ir imediatamente aos textos luminosos de André Bazin[1]. Chaplin é aqui desembaraçado da papa humanitária onde o mergulhamos habitualmente e reaparece ácido, seco, malvado e agudo. A grandeza deste cinema, seu sucesso imenso vem (na condição de que o sucesso obedeça a uma causa) do fato de que Chaplin vai e vem entre a vida e uma representação que a reenvia sem cessar a essa mesma vida, e que ele joga igualmente com o riso e as lágrimas que provoca, e que são poucas as linguagens tão universais quanto esse jogo com o riso e as lágrimas quando aquele que assim se arrisca descobriu as suas regras (como o grande McCarey, o inventor, entre outros, da dupla o Gordo e o Magro). Mas a dificuldade começa para os espectadores quando eles precisam aceitar que Carlitos o personagem se torna Chaplin o cineasta e para os críticos quando se trata de saber a partir de qual filme e de que forma o cinema é realmente posto em contato com uma visão do mundo e dos homens encarnada até ali num só ator, único verdadeiro protagonista, e como Chaplin desenvolve em termos concretos este progressivo alargamento de sua visão.


HAWKS

Compreenderemos melhor esta inversão de perspectivas sendo mais precisos: os filmes de Hawks manifestam melhor a especificidade do cinema que aqueles de Chaplin. Trabalhando sobre um material tematicamente e dinamicamente muito limitado: homens que aceitam correr toda forma de riscos (mesmo aquele de morrer) para exercer corretamente sua profissão. De filme em filme as profissões mudam, o cenário muda, a atmosfera muda, mas o drama permanece o mesmo: como viver plenamente o presente sob o risco de roçar a morte. O que significa, cinematograficamente falando: como, sem jamais dar ao espectador a impressão de uma ausência (por onde se insinuaria a dúvida, o desespero, o medo, ou o pânico), ocupar plenamente um plano e manter constantemente esta impressão de equilíbrio. A acumulação dinâmica do plano ameaçada por um acidente ou uma catástrofe, que chega por vezes, mas que é reabsorvida, foi sempre a grande preocupação (nunca vivida como um drama) de Howard Hawks. Nenhum tempo, nenhum suspiro são deixados de fora, noutra parte que forneceria um espectador que poderá recorrer ao seu conhecimento e à sua experiência da vida. Não pensamos jamais vendo seus filmes: como é belo! Como é emocionante! Mas: como isso funciona! Como é harmonioso! É disto que Rivette dá conta quando fala de evidência. Era lógico que uma revista de cinema que se propunha o objetivo de compreender o cinema, quando este era tomado como uma distração secundária e quando, no melhor dos casos, Hollywood era vista com comiseração diante da sutil Europa, se centrasse mais nos filmes de Hawks que naqueles de Chaplin. Chaplin foi sempre uma barganha para aqueles que queriam se gabar do texto em torno do cinema. Hawks é uma pedra de toque para aqueles que querem falar do cinema. Hoje que o cinema é ensinado em todas as universidades e que ele é enfim imposto como uma arte florescente, no momento mesmo em que ele perde toda a grandeza, é preciso quebrar as barreiras da rede de distribuição contra as quais a maioria da crítica relaxa esperando a sua quase cotidiana ração de códigos ou de ideias que ela ousa chamar de vivo e de humano e, se é verdadeiramente o cinema o que queremos compreender, em vez dos problemas abstratos impostos pelas mass-media, tentar descobrir o que, em não importa qual espaço de distribuição, é do cinema.


TOURNEUR

Diante do silêncio dos historiadores e dos críticos no seu conjunto - existem raras e preciosas exceções - o melhor é não procurar justificar o lugar acordado aqui à Jacques Tourneur. Podemos acrescentar, no entanto, que no todo do cinema americano, ele foi o único (mais radicalmente ainda que Nicholas Ray) a mimetizar totalmente a identificação ao cinema e à sua estrutura circunstancial, ao ponto que nenhum elemento nos seus filmes se sobrepõe a outro. Em grandes artistas como McCarey, podemos, nesta perspectiva, perceber ainda a importância da interpretação dos atores. Nos filmes de Jacques Tourneur cada elemento deve se fundir no todo que forma o filme e exprimir o lugar que ele ocupa. Os personagens vão assim para o anonimato e descobrem que são intermediários: é o que a mise en scène se ocupa em fazer sentir. Ela superpõe à maquinaria hollywoodiana um revestimento ficcional tão fortemente carregado de sentido quanto adequado e transparente. A totalidade da obra americana de Tourneur constitui, de maneira discreta, o grande negativo do cinema hollywoodiano entre 1940 e o seu declínio por volta de 1957, que coincide entre outras coisas com a saída de Fritz Lang dos U.S.A., com a mudança radical de tonalidade em Hawks após Rio Bravo etc... 


[1] Charlie Chaplin por André Bazin + 1 texto de Eric Rohmer sobre A Condessa de Hong-Kong, Editions du Cerf, n° 57.

Trois morts foi originalmente publicado na revista Cahiers du cinéma n° 285, fevereiro de 1978, e republicado na coletânea Poétique des auteurs, p. 28-33. Tradução: Miguel Haoni.

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