Cineclube #4 "Ossos"



Miguel Haoni comenta "Ossos" (Pedro Costa, 1997)
Captação e edição por Wesley Conrado

Amok, A idade da terra

Por Pascal Bonitzer

“Essa coisa amedrontadora, indescritível, mais vasta que qualquer trem subterrâneo, esse aglomerado de bolhas protoplásmicas, levemente fosforescentes, sobre o qual milhares de olhos provisórios se formavam e deformavam, como pústulas de luz esverdeada, essa coisa vinha em nossa direção enquanto esmagava os pinguins aterrorizados...”. Os leitores de Lovecraft terão facilmente reconhecido um Shoggoth. Mas alguns espectadores da Biennale terão provavelmente identificado também nessa entidade ameaçadora o último filme de Glauber Rocha, A idade da terra, ou pelo menos a impressão que ele causou em Veneza. Os pinguins, nesse caso, são os espectadores, entendidos em sua carapaça moral. 

É mais fácil descrever a impressão causada pelo filme do que o filme em si mesmo, assim como é mais fácil para o narrador lovecraftiano descrever o afeto provocado pelo Shoggoth do que o aspecto da criatura. À semelhança do narrador em questão, temos vontade de escrever: “Todas as palavras que eu poderia esboçar seriam incapazes de sugerir ao leitor o horror do espetáculo assustador que a nós se ofereceu”. Espetáculo ao qual, evidentemente, não falta grandiosidade, no mínimo – o que não foi o caso de muitos filmes da Biennale, incluindo os premiados. Mas não se premia um monstro; ou fugimos dele ou o matamos. No geral, foi o que fizeram ambos os espectadores, a imprensa, o júri. E mesmo isso sendo compreensível, é de se lamentar, pois destruímos aí uma boa parte das chances (se é que o termo chance seja adequado) de ver na Europa essa obra estupefaciente.

A idade da terra, como seu nome sugere, visa a nada menos do que retraçar ao mesmo tempo a história do mundo e a do Brasil — antiga e recente — a tomar simultaneamente a medida desse país-monstro, desse país-continente, e da política planetária. Não pense que isso signifique que as análises são abundantes. De um extremo a outro desse filme, salvo um ou dois oásis de algo próximo da racionalidade jornalística, o ponteiro do medidor não para de oscilar entre o transe da macumba e as vociferações mais assustadoras. A câmera parece guiada pelos tocos putrefatos de alguma fungosidade blasfematória (para permanecer no estilo lovecraftiano). Se o foco está em algum lugar, ou a luz, ou o quadro, presumimos que é por acaso. Some-se a isso uma montagem de selvageria inaudita, uma montagem de assassino, de louco da machadinha. O diretor aparece na imagem uma ou duas vezes, para mostrar um rosto de condenado, disferir no vazio um violento golpe de facão ensanguentado. 

Quanto ao discurso, ao “sentido”, o que dizer dele? Todos os enunciados atravessam a tela como se passassem por um triturador: revolucionários, marxistas, terceiro-mundistas, fascistas (e dos mais asquerosos: ironia sobre as torturas, “fui torturada, extremamente torturada, e confesso que senti prazer”, diz uma jovem mulher, símbolo da burguesia intelectual de esquerda), enfim, umbandistas e cristãos. O Cristo aparece sob a aparência de um negro do sertão, que multiplica Coca-cola. Estranho, estanho filme, que faz com que os anteriores do autor pareçam exercícios comportados e pálidos. Nunca tinha sentido, em presença de um filme, tamanha impressão de me achar diante de uma terra incógnita absoluta, esse enigma, o terceiro mundo. Nenhum outro filme, além desse de Glauber Rocha, havia me dado esse sentimento de estrangeirismo continental. 

Mas também de singularidade desesperada, de solidão trêmula. Essa monstruosidade atravessada por clowns alegóricos gritando sem parar as mesmas frases, como em planos-sequência que não terminam, essa destruction in progress, o autor a tenta definir, em off, no meio do filme, numa torrente verborrágica. Retive duas palavras: desespero lisérgico. “Um filme de desespero lisérgico”. Provisoriamente, podemos nos agarrar a essa definição. 

Amouk, l'âge de la terre foi originalmente publicado em Cahiers du Cinéma, n. 317, nov. 1980. Traduzido do francês por Luiz Carlos Oliveira Jr.

Saquê para as crianças



por Serge Daney



Escolhei uma máquina de venda automática, ao acaso. Metei 200 ienes. Esperai o som surdo de um objeto que tomba. Ouvi a máquina que, bem-criada, vos agradece. Domo arigato gozaimasu! (muito obrigado). Voltai-vos ao objeto escolhido: um maço de cigarros, uma lata de cerveja ou uma revista. Abri-a: é uma coletânea de mangá? Estais no coração do problema: vossa investigação sobre o "look japonês" pode começar.

O que é, pois, o mangá? Quadrinhos, HQs mal impressas sobre inqualificável papel colorido. Os mangás estão por toda parte: vendidos nas bancas e nas livrarias, em oferta nos livreiros de Kanda, abandonados sobre as mesas dos cafés ou nos banhos públicos. Pouco conhecido no estrangeiro, mal estudado por alguns niponistas franceses mais ou menos tatamisados (Thierry Lagarde em Tóquio, Jacques Lalloz em Quioto), o mangá é um fenômeno de todo considerável.

Um a cada quatro japoneses lê mangá regularmente. Trinta milhões de exemplares são publicados a cada semana, cada mês e quinzenalmente. Como tudo que diz respeito à mídia japonesa, o centro é forte e a periferia, nula. Cinco grandes editores de Tóquio partilham o essencial do mercado e um só título (Big Comic, criado em 1968) vende um milhão de exemplares. Cada editor divide seu alvo segundo a idade e o sexo. Criancinhas, rapazes e moças, homens adultos e mulheres casadas são atingidos segundo velocidades variáveis.

A cada semana saem 6.600.000 compilações-mangá para rapazes e 1.500.000 para moças. Baseball e samurais contra água de rosas. As moças leem mais devagar que os rapazes pois, a cada mês, a proporção se inverte: 6.400.000 para elas e 1.500.000 para eles. A cada quinze dias, 2.500.000 exemplares são adquiridos, lidos e deitados fora por adultos "velhos demais". Sobre o total, avalia-se a dez por cento a percentagem irrepreensível dos eromangás, ou três milhões de exemplares vendidos transformados imediatamente em fantasias sexuais. De resto, além de Garo, publicação para mangáfilos esclarecidos, contam-se pelo menos 300 pequenas revistas, próximas do fanzine, mas com tiragem, mesmo assim, entre 5.000 e 30.000 exemplares. O mangá é mais que uma voga e bem mais que uma onda: é um maremoto.

Os leitores de mangá constituem um dos espetáculos deveras curiosos da rua toquiana. Nenhuma lei lhes impede de se esconder no fundo de uma livraria para tomar ali conhecimento dos lançamentos da semana. É a prática do tachiyomi (“ler na vitrine”). Fregueses ou não, se reúnem em silêncio para se perder (ou se reencontrar) nessas imagens de pelúcia a dois centavos onde o Japão se delira por si mesmo. Ao contrário deste outro jogo solitário que é o pachinko, não é a exasperante bolinha de aço que o adepto do tachiyomi persegue, mas seu próprio olhar que lhe impele de imagem em imagem, da direita pra esquerda, de cima pra baixo e de página em página, em velocidade desconcertante. “Leitor”, ele o é mais no sentido tecnológico do termo: ele não lê efetivamente, mas procede uma espécie de varredura eletrônica da página, ele a “escaneia”. Mais tarde, no metrô, entreter-se-á entre duas sonecas, excitar-se-á entre duas estações, segundo seja o mangá engraçado ou erótico. Em massa e em segredo, o japonês está em casa nessas imagens. E inclinar-se nelas (esquecendo toda prudência) é também reencontrar-se, nela.

Pois trata-se de uma produção popular. Sem fôlego e preguiçosa, repetitiva e plena de imprevistos, terrivelmente desigual. Atravessar um mangá é tombar sem aviso sobre uma banda-pérola no meio de bandas-chiqueiro, é perder o caminho entre miseráveis nus fotografados, propagandas ilegíveis e jogos pueris. O mangaká de gênio caminha ao lado do amador que atamanca e do trapaceiro que desenha a partir de fotos. Mas o prazer é intenso. Pode-se descobrir seus autores, segui-los incógnito de semana em semana, fruir de uma produção que não é vigiada, ainda, pela “dignidade cultural”. No Japão, o que é popular tem vida dura. Amantes pervertidos de subculturas, saudosos do “espírito série B”, onde quer que estejam, sociólogos astuciosos e gaijins nipólatras: o mangá é para eles.


Diferente de uma televisão inepta e açucarada, forte de seis canais nacionais (mas sem tv a cabo) e de um cinema em perda de velocidade, o mangá é a linha direta que liga o japonês aos seus fantasmas. Autoanálise interminável. Aqui o inconsciente não pesa, nada se passa metaforicamente ou “em algum lugar”, os sintomas são claros. Tudo lá está, exposto em desenhos, contado sem precauções. Lá é que é preciso agarrar in vitro a fabricação do “look japonês”. Através destes milhares de corpos de tinta e papel, destes rostos mutantes que fazem por vezes duvidar do pertencimento do Japão ao continente asiático.

Roteiros sexuais deliberadamente sadomasoquistas, historietas dos bastidores do baseball ou do sumô, o brincar de médico impudente, samurais revoltados, crônicas voyeuristas da cidade grande, pequenos cartoons escatológicos, esperas aos príncipes encantados, science-fiction e mitos inabaláveis: tudo pode ser reciclado pelo mangá. Sua relação com a verdade histórica é mais do que tênue, seu valor educativo fraco, sua moral insignificante. O mangá é quase sempre um roteiro delirante. Delirante e diluído.

Onde encontrar (senão na moda?) tal liberdade de estilo, invenção tão alegre, vitalidade plástica e audácia comparáveis? Ao que parece, em lugar nenhum. A arte e a maneira de decupar a página, de decompor a ação, de dividir os corpos são tão evidentemente japonesas quanto essas “páginas de comida” que são os pratos preparados e os postiços expostos nas vitrines dos restaurantes. E este gosto excessivo pelo ângulo impossível, o detalhe obsceno ou o espaço esvaziado, nós também o reconhecemos. Ele fez a grandeza de fogo do “cinema japonês”. Teria se refugiado no mangá?

Uma noite, sem mais me segurar, visitei o professor Yoshiya Soeda. Autor de três livros sobre o mangá, o homem é uma autoridade. Em seu pequeno estúdio de Shinkoenji, recheado de livros eruditos, respondeu de bom grado minhas questões. Sim, o mangá continua hoje em dia o estilo cinematográfico, a seu modo. Para isso há excelentes razões: no decurso do século XX, o velho mangá (não vimos aquele de Hokusai em Paris recentemente?) e o jovem cinema fizeram uma boa parte do caminho juntos. Esses companheiros de estrada têm uma bela história comum. Flash-back para os anos trinta.

Imaginai agora a rua japonesa. As projeções do cinema mudo são animadas por um benshi 1. O benshi é um homem (de carne e osso) que empresta sua voz, barulhos e comentários às ações do filme. Diante desse mangá animado que é o filme, o benshi aprendeu a colocar seu texto e suas onomatopeias como balõezinhos sonoros sobre uma imagem não mais capaz disso. O público de sábado à noite, durassiano avant la lettre, vê as imagens para escutar seu benshi favorito. Em sua autobiografia 2, Kurosawa evoca a figura romântica de seu irmão mais velho, Heigo, líder do sindicato dos benshis de Tokyo no momento da chegada do falado (1931) – que se suicida. O benshi foi a grande vítima do falado.

Imaginai novamente a rua japonesa. Lá, para um público de crianças reunidas, desenrola-se o kamishibai, ou “teatro de papel”. Os bonequeiros de HQs gigantes edificam as massas. Ora, os desenhistas do kamishibai viam filmes e influenciavam-se pela “linguagem cinematográfica”, então em plena agitação. Muito por serem de esquerda, adaptavam os truques da montagem soviética para fazer agitprop na rua. Malgrado o sucesso do cinema falado e a requisição dos desenhistas para as necessidades da propaganda imperial, o kamishibai não morreu de pronto. O professor Soeda evoca mesmo a data de 1957 e nomeia a responsável pelo golpe de misericórdia: a televisão.

O mangá moderno (ainda que tenha existido desde os anos vinte) é o herdeiro direto do “teatro de papel” cinéfilo do pré-guerra. Sua primeira idade de ouro coincide com os anos cinquenta. Viu-se então uma nova geração de mangakás se curvar a formatos (menores) e a velocidades diferentes (mais velozes). Viu-se um público de crianças mais velhas continuar lendo mangá. A infantilização começou. Osamu Tezuka, Shirato Sampei, Ishimori Shotaro, Tsuge Yoshiharu, Takita You e vários outros transformaram o mangá feirante e marginal em mídia próspera.

Aspecto reprimido, seus mangás eram de bom grado épicos e morais, com bons sentimentos e uma espécie de escotismo humanista, que é o traço dominante da época. Essa candura das “boas resoluções” do pós-guerra pouco a pouco se perdeu face ao cinismo e a indiferença, mas os mangáfilos de hoje dela sentem falta: ela lhes lembra da infância (como para nós Hergé ou Jacques Martin).

Por outro lado, a invenção plástica jorrava sem cessar e as narrativas “continuam...” interminavelmente. Durante alguns anos, Sampei compilou seus admiráveis Ninja Bogeichyo (“Cadernos de Artes Marciais Ninja”). Justo retorno das coisas, Oshima levou-os à tela em 1967, contentando-se em filmar as pranchas de desenho tais quais. Tezuka, o mais conhecido de todos, com sua boina e jovialidade osakiana, não cessou de inventar pequenos personagens portadores de mensagens, dos quais alguns (como Tetsuwan-Atom, transformado em Atom-Boy nos EUA [e Astro Boy em português]) fizeram a volta ao mundo. Em 1951, depois da morte do filho, criou Astro Boy, cujas aventuras seguiram-se durante dezessete anos! A sensibilidade tezukiana é humanista e mesmo ecológica: Astro Boy se levanta contra a utilização militar do átomo e luta de antemão contra o racismo anti-robô. Hoje, numa outra série-rio, Tezuka lança suas personagens em busca de um pássaro mítico, nada menos que a Fênix (Hinotori).


Mesmo que envolvida num respeito afetuoso (está-se em vias de reedição “todo o Tezuka”), tal geração de mangakás está defasada. Para além dos anos setenta, o mangá conheceu um segundo boom. Ele soube gerir seu público, segui-lo em seu crescimento, seu enriquecimento relativo, sua cultura de novo-rico, sua despolitização. Os anos sessenta viram o triunfo do mangá hebdomadário e o retorno do eromangá para adultos. Durante os anos setenta, o público de moças foi ganho e hoje são as mulheres que estão em vias de serem seduzidas.

Ao diversificar seu público-alvo e feminizando seu público, o mangá perdeu seu caráter heroico. Alguns, incluindo justamente Tezuka, se lamentam: o mangá kawai lhes entristece. Encaminha-se para histórias tiradas da vida de todos os dias, pés-no-chão, mesmo regionalistas. Não se colocam mais grandes questões, mas contam-se cruamente pequenas histórias. Ou então, retorna-se a um estoque de histórias universais, gênero “Três Mosqueteiros” ou essa tira de Ryoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, cujo sucesso foi tal que o produtor aventureiro Mataichiro Yamamoto e os produtos de beleza Shiseido encomendaram uma versão filmada a Jacques Demy (que virou Lady Oscar, 1978).


Agora, a quê parece hoje em dia um mangaká bem-sucedido? A Mizushima Shinji. Um dia, descobrimos que ele expõe em Ueno, no último andar das grandes lojas Matsuzakaya. Lá vamos nós. É boa publicidade para ele (“um aperto de mão igual a dez exemplares vendidos”, diz-me) e boa imagem para a loja, pois Shinji é um dos mangakás mais ricos e célebres do Japão. A exposição, de resto, tem bela aparência, com pranchas originais sob vidro, cartões prontos para ser autografados, carimbos com a efígie das personagens inventadas por Shinji. Em vermelho, verde, azul, todo um pequeno mundo de jogadores de baseball de uniforme, do bruto de olhos redondos ao moleque hirsuto e tagarela. Um mundo votado a um eterno “nós-ga-nha-mos”, que delicia os escolares.

Franzino afastado dos estádios malgrado sua paixão pelo baseball, Shinji vingou-se desenhando e declara a cifra de 240 milhões de ienes de rendimento anual. O bastante para assalariar vários assistentes (150.000 por mês durante sete anos: depois, voam com as próprias asas) e posar esportivamente com eles. Detrás de uma vitrine, sob os olhos estupefatos de um público de todas as idades, os assistentes fazem uma demonstração do trabalho de atelier. Verdadeira tradição japonesa, essa: um trabalha sobre os detalhes, outro se ocupa das sombras, um terceiro arma a trama.

Interrogado, Mizushima Shinji não brilha por modéstia. Não se interessa (diz ele) nem pela arte moderna ocidental, nem pela arte japonesa tradicional, nem mesmo pelo mangá dos outros. Não ama senão o que faz (e que já faz há dez anos, sem se renovar). “Meu mangá é bastante agradável”, e dele fala como de uma droga doce. Seu mangá é “saquê para as crianças”.

Evidentemente ele exagera, o sucesso o aturdiu. Mas se é verdade que o mangá é o suave delírio cotidiano “made in Japan”, seu uso parece irremediavelmente interno. Universalmente conhecidos no Japão, Tezuka, Sampei e os outros são quase ignorados alhures. Não se queixam (salvo Tezuka, que prepara uma estreia na França). Tanto quanto a moda abre o Japão para o exterior (o que quer dizer, para o Ocidente), o mangá é a expressão de um microcosmo fechado.

Estranho arquipélago, o Japão? Livre de todo desejo de falar ao resto do mundo, tendo tudo a lhe vender, nada a lhe contar. Ativo e vazio. A anti-América, sim. Um estranho pressentimento assalta o viajante. Aquele de uma cultura muito antiga e provincial ao mesmo tempo, que alcança o século XXI no pelotão de frente, mas sem imagem de si mesma, sonâmbula em seu pragmatismo, exposta à gafe (cf. o episódio da reescrita dos manuais escolares) ou a um desarmante candor chauvinista (“somos japoneses, logo, incompreensíveis”). 4

O camponês eletrônico do século XXI será japonês? Está ele já num mundo que confunde informação (rápida, muito rápida) e comunicação (lenta, muito lenta)? Não tem mais necessidade de imagens para se comunicar com quem não o é? Não, isso não é possível.

15 de dezembro de 1982.



1. Sobre o benshi, ver o livro recente de Noël Burch, Pour un observateur lontain, página 79 (Gallimard/Cahiers du Cinéma).


2. Comme une autobiographie. Akira Kurosawa, Ed. Cahiers Cinema.

3. As únicas narrativas japonesas vendidas no estrangeiro são os desenhos animados. Sua estratégia única visa as crianças pequenas. Muitos mangakás são cineastas malogrados. Tezuka, a partir dos anos sessenta, realizou numerosos longa-metragens de animação (“animeshon” como se diz no Japão), por vezes distribuídos nos EUA (Vampire Cleopatre, As Mil e Uma Noites, Phoenix 2772). Além de tratar-se de outro aspecto do “look” japonês, está claro que, para o amador de mangá, a passagem para a animação equivale à morte de tudo aquilo que ama na arte descontínua da história em quadrinhos.

4. Uma anedota circula. Philippe Pons, entre outros, reporta-a em seu pequeno livro (Japon, Ed. du Seuil). “Assim que o estrangeiro fala japonês, é olhado com surpresa e, de partida, lhe responderão com um inglês aproximativo ou por mímica, significando que não se lhe compreende.” – o que ficou para ser demonstrado.

Retirado do livro Ciné journal – Volume I 1981-1982, p. 32-35. Tradução: Eduardo Savella. 

Fritz Lang, modo de usar

Por Michel Mourlet 



Duas lembranças muito vivas, ardentes como queimaduras. Elas datam contudo de um quarto de século. 

Eu estou com amigos na Cinemateca Francesa... No programa: O Tigre de Bengala. A sala, cheia de intelectuais presunçosos, prolixos, desses que só encontramos na França e na Itália, me parece. Seguros de uma verborreia com a qual eles revestem o mundo para entregá-lo inteligível como a jiboia umedece sua presa para engoli-la. 

A todo momento, e de preferência nas cenas mais belas — as mais pungentes na sua conclusão, sua simplicidade, sua evidência — eles riem. Eles riem à vontade, ignobilmente, convencidos de assistir algum desenho animado ingênuo que está na função deles colocar no seu devido lugar. À distância que convém.

Ainda hoje, eu não vejo outro comentário para essa experiência que o verso do prólogo de Zaratustra: “Amor? Criação? Desejo? Estrela? O que é isso? — Assim pergunta o último homem, num piscar de olhos.”

A queimadura da segunda lembrança é menos penosa. É no fim dos anos 1950, no hotel George V, na suíte ocupada por Fritz Lang que estava de passagem em Paris. Ainda que eu já lhe tenha feito alusão em outro momento 1, esse episódio me parece muito significativo para que não seja inútil esse retorno.

Eu encontrava, então, Fritz Lang pela primeira vez, pouco tempo depois da estreia do Tigre e do Sepulcro Indiano. A imprensa parisiense tinha prestado contas com sua perspicácia costumeira: turquerie... indiana, roteiro absurdo, romance barato, obra alimentar, etc. Ignorando sem dúvida o detalhe que, ninguém se perguntava como, no fim de sua vida, um dos maiores cineastas do mundo teria desejado fazer assim uma obra medíocre circunstancialmente, a partir de uma história na qual pensava desde 1919, data da primeira versão do roteiro escrito em colaboração com sua esposa Thea von Harbou. 

Durante a filmagem, em resposta às questões dos jornalistas, Lang declarava: “Por que eu rodo esse filme? Para mim, algo de místico está em jogo. Um círculo se fecha: o que eu tanto desejei há quarenta anos se realiza enfim hoje, de maneira surpreendente.” E ele sublinhava: “Eu não saberia fazer um filme com desenvoltura. Eu não vejo como poderíamos conduzir com desenvoltura uma empreitada que dura cinco a seis meses e na qual pensamos todos os dias.” 

Um ano mais tarde, no hotel George V, Lang, tenso, cauteloso, monóculo encaixado na órbita, eriçado em arames farpados. Ele tomou conhecimento das críticas. Ele conhece a opinião da intelligentsia sobre O Tigre e O Sepulcro. Sua técnica é simples: minimizar sua obra, seguindo a manada. Inquieto com minha audácia, eu exprimo então, sem maquiá-la com nenhuma precaução oratória, minha admiração. Seu rosto impassível torna-se corado, o monóculo se embacia. Ele balança a cabeça. Os arames farpados caem. Dialogar seriamente, honestamente se preferirmos, se tornava possível. Um diálogo que continuou mais tarde, particularmente em Mannheim, e em companhia de Pierre Rissient. 

Se eu evoco esses instantes, é para fazer sentir o que poderia ser, há vinte anos, o deserto do amor do cinema. E mesmo em 1970, se escreviam coisas como estas, em uma monografia consagrada a Fritz Lang: “Esse script (o das duas épocas do Sepulcro Indiano) brilha pela sua estupidez, sua insignificância, sua obsolescência. Somente a renúncia final do Maharadjah, coincidindo com a sabedoria do velho cineasta, parece testemunhar um pouco de seriedade.” 

A ideia simples segundo a qual o essencial do sentido veiculado por um filme reside na própria matéria do filme, sua “mise en scène”, não tinha ainda percorrido seu caminho pelas mentes. A tal ponto que para muitos essa concepção dizia respeito a um “estetismo gratuito”, ou mesmo a uma religião esotérica. Porém, se existe uma obra a qual ela se aplica integralmente e, poderíamos dizer, sem nuance, é a de Fritz Lang, desde a origem até o fim.


Só variam, nessa obra, o estilo e o conteúdo da mise en scène, do expressionismo arquitetural até a interioridade absoluta, do cenário até a planta, evolução que eu tentei descrever em Trajetória de Fritz Lang. Mas o papel e a importância atribuídos a essa mise en scène não variam. Trata-se de dominar através de uma lógica implacável todos os elementos de um universo no qual entram histórias, temas e palavras, porque não há universo sem temporalidade, logo sem história, história sem tema, tema sem linguagem, ainda que o conteúdo desses elementos esteja englobado, assimilado, conduzido pelo movimento geral da sua organização no mundo sensível. 

Assim, Suplício de uma alma é uma história policial que questiona a justiça e mesmo, por que não, a pena de morte. Mas se nos detemos nesse nível de significação, nos colocamos exatamente na mesma postura do erotômano que cobre suas paredes de mulheres nuas, porque elas estão nuas e não porque elas são pintadas. As peripécias e o resultado da batalha de Vitória não fazem parte, para muitos, do interesse que temos pela obra de Beethoven coroada com esse título, que, contudo, se impulsionou na vitória de Welligton. Entretanto, em 1956, em 1970, ainda hoje sem dúvida, há “especialistas” para definir Suplício de uma alma como um questionamento da justiça, o que não é absolutamente, ainda que Lang quisesse talvez questionar a justiça e que, de qualquer maneira, esse era o ponto de partida, conexo à intriga. 

O ponto de chegada está em outro lugar, como é evidente depois de um percurso. (Não refletimos muito sobre essas evidências.) Está em outro lugar também, depois do trajeto de Maharadjah, do roteiro do casal Thea e Fritz até as imagens cristalizadas do senhor emotivo que se liberta brutalmente, sem avisar, do peso da sua fúria contida, de sua amarga serenidade. 

O ponto de chegada, o resultado sinfônico do processo de integração de todos os elementos de base, a obra enfim, está nos gestos, nos olhares, nas entonações dos atores, os contatos das suas sensibilidades com o cenário, está na trama de sons, no claro e no escuro, e mesmo no choque ou na harmonia das cores, na posição da câmera, na dinâmica do encadeamento dos fatos e dos planos, na definição desses últimos, o universo sentido, contemplado, denunciado por toda a experiência de uma vida. Eis o “texto” de Lang que devemos decifrar. O que não impede de maneira alguma de apreciar a história, a anedota, o conto, esqueleto indispensável à formação e à sustentação dessa carne, o conjunto — indissociável — constituindo uma narrativa, fim último de todo empreendimento narrativo, como deve ser. 

Façamos um resumo. O primeiro nível de leitura é a anedota narrada; o segundo, o tema ou os temas que a subentendem; o terceiro, a mise en scène, os temas que ela implica, que se encontram nos outros filmes do cineasta e que são a parte menos consciente, a mais reveladora das obsessões (ou, em um cineasta medíocre, das ausências). O erro, certamente, consistiria em crer que só esse terceiro nível importa, da mesma maneira que se pretende, às vezes, que em um grande romance a intriga é secundária ou que os libretos de ópera são negligenciáveis. O que esperamos de uma narrativa ou de um espetáculo são personagens face aos quais podemos nos mensurar, que se confrontam eles mesmos com acontecimentos que nós vivemos, ou amaríamos, ou que tememos viver.
  
Mas ainda é preciso, para crê-lo, para que ele abale sentimentos e ideias em nós, que a atrelagem pessoas-acontecimentos seja a mais rica possível, a mais carregada de conotações e implicações. Essas terminam, algumas vezes, por prevalecer sobre o enredo. É o caso em Fritz Lang. Mas sem enredo, sem coluna vertebral, elas não teriam a mínima chance de existir, como constatamos nos filmes, nos romances, nas obras de teatro que se recusam a fazer sair “a marquesa às cinco horas”. 

Isto posto, se a carne exige a ossatura, ela não deixa de ser a carne que tocamos e que nos comove. Ela é também o que mais se esquiva da análise. “O que há de mais profundo é a pele”, afirmava Valéry. 

O que há de mais profundo nos filmes de Lang é uma certa maneira de olhar de muito longe, como do fundo da morte, os homens, as mulheres, o homicídio e a fatalidade. Nos seus quatro ou cinco últimos filmes, não distinguimos mais que isso. Se não percebemos esse tom de eternidade, não percebemos mais nada. O silêncio e o vazio. Enredo, personagens desaparecem atrás de algo muito monstruoso que se assemelha a um desprezo tingido de ódio, global, exaustivo e fúnebre, entre os homens, do mundo para os humanos, de Lang pelo universo. Um desejo insaciável de dominação total, legível nos olhares, se resolve no assassinato, ou na contração. O Lang das profundezas: um “grande alucinado pelo poder absoluto”, como disse Jean Parvulesco. Ele encontra um exutório no controle maníaco de todos os detalhes de um filme. Governa o tempo para fazer dele um rolo compressor. Assassino por meio de atores interpostos 2. Traz consigo, durante quarenta anos, o personagem de Mabuse e o ressuscita para suprimi-lo em sua última mensagem, depois de ter realizado graças à técnica moderna sua vontade de domínio e de possessão pelos olhos. 

Assim coincidem exemplarmente, em Die Tausend Augen des Dr Mabuse, a estrutura de um roteiro e a obsessão permanente de uma mise en scène, fundada ora sobre a possessão à distância, ora sobre a distância que separa da possessão. 

_________

1 N.R.F., especial Henry de Montherlant, fevereiro de 1973. Texto reproduzido in L’Éléphant dans la porcelaine (La Table Ronde, Paris, 1976). 

“É possível que cada um de meus filmes em que o crime é representado com o máximo de horror representa, da minha parte, um assassinato virtual. (...) Às vezes isso me tortura, mas por vezes também diverte-me pensar que eu sou um assassino em potencial” Fritz Lang, Los Angeles Herald Express, 1947. (Citado por Alfred Eibel in Fritz Lang, Éd. Présence du cinéma, Paris, 1964.)


Fritz Lang, mode d'emploi foi publicado em Sur un art ignoré - La mise en scène comme langage, Henri Veyrier, 1987. Tradução: Letícia Weber Jarek.