Saquê para as crianças



por Serge Daney



Escolhei uma máquina de venda automática, ao acaso. Metei 200 ienes. Esperai o som surdo de um objeto que tomba. Ouvi a máquina que, bem-criada, vos agradece. Domo arigato gozaimasu! (muito obrigado). Voltai-vos ao objeto escolhido: um maço de cigarros, uma lata de cerveja ou uma revista. Abri-a: é uma coletânea de mangá? Estais no coração do problema: vossa investigação sobre o "look japonês" pode começar.

O que é, pois, o mangá? Quadrinhos, HQs mal impressas sobre inqualificável papel colorido. Os mangás estão por toda parte: vendidos nas bancas e nas livrarias, em oferta nos livreiros de Kanda, abandonados sobre as mesas dos cafés ou nos banhos públicos. Pouco conhecido no estrangeiro, mal estudado por alguns niponistas franceses mais ou menos tatamisados (Thierry Lagarde em Tóquio, Jacques Lalloz em Quioto), o mangá é um fenômeno de todo considerável.

Um a cada quatro japoneses lê mangá regularmente. Trinta milhões de exemplares são publicados a cada semana, cada mês e quinzenalmente. Como tudo que diz respeito à mídia japonesa, o centro é forte e a periferia, nula. Cinco grandes editores de Tóquio partilham o essencial do mercado e um só título (Big Comic, criado em 1968) vende um milhão de exemplares. Cada editor divide seu alvo segundo a idade e o sexo. Criancinhas, rapazes e moças, homens adultos e mulheres casadas são atingidos segundo velocidades variáveis.

A cada semana saem 6.600.000 compilações-mangá para rapazes e 1.500.000 para moças. Baseball e samurais contra água de rosas. As moças leem mais devagar que os rapazes pois, a cada mês, a proporção se inverte: 6.400.000 para elas e 1.500.000 para eles. A cada quinze dias, 2.500.000 exemplares são adquiridos, lidos e deitados fora por adultos "velhos demais". Sobre o total, avalia-se a dez por cento a percentagem irrepreensível dos eromangás, ou três milhões de exemplares vendidos transformados imediatamente em fantasias sexuais. De resto, além de Garo, publicação para mangáfilos esclarecidos, contam-se pelo menos 300 pequenas revistas, próximas do fanzine, mas com tiragem, mesmo assim, entre 5.000 e 30.000 exemplares. O mangá é mais que uma voga e bem mais que uma onda: é um maremoto.

Os leitores de mangá constituem um dos espetáculos deveras curiosos da rua toquiana. Nenhuma lei lhes impede de se esconder no fundo de uma livraria para tomar ali conhecimento dos lançamentos da semana. É a prática do tachiyomi (“ler na vitrine”). Fregueses ou não, se reúnem em silêncio para se perder (ou se reencontrar) nessas imagens de pelúcia a dois centavos onde o Japão se delira por si mesmo. Ao contrário deste outro jogo solitário que é o pachinko, não é a exasperante bolinha de aço que o adepto do tachiyomi persegue, mas seu próprio olhar que lhe impele de imagem em imagem, da direita pra esquerda, de cima pra baixo e de página em página, em velocidade desconcertante. “Leitor”, ele o é mais no sentido tecnológico do termo: ele não lê efetivamente, mas procede uma espécie de varredura eletrônica da página, ele a “escaneia”. Mais tarde, no metrô, entreter-se-á entre duas sonecas, excitar-se-á entre duas estações, segundo seja o mangá engraçado ou erótico. Em massa e em segredo, o japonês está em casa nessas imagens. E inclinar-se nelas (esquecendo toda prudência) é também reencontrar-se, nela.

Pois trata-se de uma produção popular. Sem fôlego e preguiçosa, repetitiva e plena de imprevistos, terrivelmente desigual. Atravessar um mangá é tombar sem aviso sobre uma banda-pérola no meio de bandas-chiqueiro, é perder o caminho entre miseráveis nus fotografados, propagandas ilegíveis e jogos pueris. O mangaká de gênio caminha ao lado do amador que atamanca e do trapaceiro que desenha a partir de fotos. Mas o prazer é intenso. Pode-se descobrir seus autores, segui-los incógnito de semana em semana, fruir de uma produção que não é vigiada, ainda, pela “dignidade cultural”. No Japão, o que é popular tem vida dura. Amantes pervertidos de subculturas, saudosos do “espírito série B”, onde quer que estejam, sociólogos astuciosos e gaijins nipólatras: o mangá é para eles.


Diferente de uma televisão inepta e açucarada, forte de seis canais nacionais (mas sem tv a cabo) e de um cinema em perda de velocidade, o mangá é a linha direta que liga o japonês aos seus fantasmas. Autoanálise interminável. Aqui o inconsciente não pesa, nada se passa metaforicamente ou “em algum lugar”, os sintomas são claros. Tudo lá está, exposto em desenhos, contado sem precauções. Lá é que é preciso agarrar in vitro a fabricação do “look japonês”. Através destes milhares de corpos de tinta e papel, destes rostos mutantes que fazem por vezes duvidar do pertencimento do Japão ao continente asiático.

Roteiros sexuais deliberadamente sadomasoquistas, historietas dos bastidores do baseball ou do sumô, o brincar de médico impudente, samurais revoltados, crônicas voyeuristas da cidade grande, pequenos cartoons escatológicos, esperas aos príncipes encantados, science-fiction e mitos inabaláveis: tudo pode ser reciclado pelo mangá. Sua relação com a verdade histórica é mais do que tênue, seu valor educativo fraco, sua moral insignificante. O mangá é quase sempre um roteiro delirante. Delirante e diluído.

Onde encontrar (senão na moda?) tal liberdade de estilo, invenção tão alegre, vitalidade plástica e audácia comparáveis? Ao que parece, em lugar nenhum. A arte e a maneira de decupar a página, de decompor a ação, de dividir os corpos são tão evidentemente japonesas quanto essas “páginas de comida” que são os pratos preparados e os postiços expostos nas vitrines dos restaurantes. E este gosto excessivo pelo ângulo impossível, o detalhe obsceno ou o espaço esvaziado, nós também o reconhecemos. Ele fez a grandeza de fogo do “cinema japonês”. Teria se refugiado no mangá?

Uma noite, sem mais me segurar, visitei o professor Yoshiya Soeda. Autor de três livros sobre o mangá, o homem é uma autoridade. Em seu pequeno estúdio de Shinkoenji, recheado de livros eruditos, respondeu de bom grado minhas questões. Sim, o mangá continua hoje em dia o estilo cinematográfico, a seu modo. Para isso há excelentes razões: no decurso do século XX, o velho mangá (não vimos aquele de Hokusai em Paris recentemente?) e o jovem cinema fizeram uma boa parte do caminho juntos. Esses companheiros de estrada têm uma bela história comum. Flash-back para os anos trinta.

Imaginai agora a rua japonesa. As projeções do cinema mudo são animadas por um benshi 1. O benshi é um homem (de carne e osso) que empresta sua voz, barulhos e comentários às ações do filme. Diante desse mangá animado que é o filme, o benshi aprendeu a colocar seu texto e suas onomatopeias como balõezinhos sonoros sobre uma imagem não mais capaz disso. O público de sábado à noite, durassiano avant la lettre, vê as imagens para escutar seu benshi favorito. Em sua autobiografia 2, Kurosawa evoca a figura romântica de seu irmão mais velho, Heigo, líder do sindicato dos benshis de Tokyo no momento da chegada do falado (1931) – que se suicida. O benshi foi a grande vítima do falado.

Imaginai novamente a rua japonesa. Lá, para um público de crianças reunidas, desenrola-se o kamishibai, ou “teatro de papel”. Os bonequeiros de HQs gigantes edificam as massas. Ora, os desenhistas do kamishibai viam filmes e influenciavam-se pela “linguagem cinematográfica”, então em plena agitação. Muito por serem de esquerda, adaptavam os truques da montagem soviética para fazer agitprop na rua. Malgrado o sucesso do cinema falado e a requisição dos desenhistas para as necessidades da propaganda imperial, o kamishibai não morreu de pronto. O professor Soeda evoca mesmo a data de 1957 e nomeia a responsável pelo golpe de misericórdia: a televisão.

O mangá moderno (ainda que tenha existido desde os anos vinte) é o herdeiro direto do “teatro de papel” cinéfilo do pré-guerra. Sua primeira idade de ouro coincide com os anos cinquenta. Viu-se então uma nova geração de mangakás se curvar a formatos (menores) e a velocidades diferentes (mais velozes). Viu-se um público de crianças mais velhas continuar lendo mangá. A infantilização começou. Osamu Tezuka, Shirato Sampei, Ishimori Shotaro, Tsuge Yoshiharu, Takita You e vários outros transformaram o mangá feirante e marginal em mídia próspera.

Aspecto reprimido, seus mangás eram de bom grado épicos e morais, com bons sentimentos e uma espécie de escotismo humanista, que é o traço dominante da época. Essa candura das “boas resoluções” do pós-guerra pouco a pouco se perdeu face ao cinismo e a indiferença, mas os mangáfilos de hoje dela sentem falta: ela lhes lembra da infância (como para nós Hergé ou Jacques Martin).

Por outro lado, a invenção plástica jorrava sem cessar e as narrativas “continuam...” interminavelmente. Durante alguns anos, Sampei compilou seus admiráveis Ninja Bogeichyo (“Cadernos de Artes Marciais Ninja”). Justo retorno das coisas, Oshima levou-os à tela em 1967, contentando-se em filmar as pranchas de desenho tais quais. Tezuka, o mais conhecido de todos, com sua boina e jovialidade osakiana, não cessou de inventar pequenos personagens portadores de mensagens, dos quais alguns (como Tetsuwan-Atom, transformado em Atom-Boy nos EUA [e Astro Boy em português]) fizeram a volta ao mundo. Em 1951, depois da morte do filho, criou Astro Boy, cujas aventuras seguiram-se durante dezessete anos! A sensibilidade tezukiana é humanista e mesmo ecológica: Astro Boy se levanta contra a utilização militar do átomo e luta de antemão contra o racismo anti-robô. Hoje, numa outra série-rio, Tezuka lança suas personagens em busca de um pássaro mítico, nada menos que a Fênix (Hinotori).


Mesmo que envolvida num respeito afetuoso (está-se em vias de reedição “todo o Tezuka”), tal geração de mangakás está defasada. Para além dos anos setenta, o mangá conheceu um segundo boom. Ele soube gerir seu público, segui-lo em seu crescimento, seu enriquecimento relativo, sua cultura de novo-rico, sua despolitização. Os anos sessenta viram o triunfo do mangá hebdomadário e o retorno do eromangá para adultos. Durante os anos setenta, o público de moças foi ganho e hoje são as mulheres que estão em vias de serem seduzidas.

Ao diversificar seu público-alvo e feminizando seu público, o mangá perdeu seu caráter heroico. Alguns, incluindo justamente Tezuka, se lamentam: o mangá kawai lhes entristece. Encaminha-se para histórias tiradas da vida de todos os dias, pés-no-chão, mesmo regionalistas. Não se colocam mais grandes questões, mas contam-se cruamente pequenas histórias. Ou então, retorna-se a um estoque de histórias universais, gênero “Três Mosqueteiros” ou essa tira de Ryoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, cujo sucesso foi tal que o produtor aventureiro Mataichiro Yamamoto e os produtos de beleza Shiseido encomendaram uma versão filmada a Jacques Demy (que virou Lady Oscar, 1978).


Agora, a quê parece hoje em dia um mangaká bem-sucedido? A Mizushima Shinji. Um dia, descobrimos que ele expõe em Ueno, no último andar das grandes lojas Matsuzakaya. Lá vamos nós. É boa publicidade para ele (“um aperto de mão igual a dez exemplares vendidos”, diz-me) e boa imagem para a loja, pois Shinji é um dos mangakás mais ricos e célebres do Japão. A exposição, de resto, tem bela aparência, com pranchas originais sob vidro, cartões prontos para ser autografados, carimbos com a efígie das personagens inventadas por Shinji. Em vermelho, verde, azul, todo um pequeno mundo de jogadores de baseball de uniforme, do bruto de olhos redondos ao moleque hirsuto e tagarela. Um mundo votado a um eterno “nós-ga-nha-mos”, que delicia os escolares.

Franzino afastado dos estádios malgrado sua paixão pelo baseball, Shinji vingou-se desenhando e declara a cifra de 240 milhões de ienes de rendimento anual. O bastante para assalariar vários assistentes (150.000 por mês durante sete anos: depois, voam com as próprias asas) e posar esportivamente com eles. Detrás de uma vitrine, sob os olhos estupefatos de um público de todas as idades, os assistentes fazem uma demonstração do trabalho de atelier. Verdadeira tradição japonesa, essa: um trabalha sobre os detalhes, outro se ocupa das sombras, um terceiro arma a trama.

Interrogado, Mizushima Shinji não brilha por modéstia. Não se interessa (diz ele) nem pela arte moderna ocidental, nem pela arte japonesa tradicional, nem mesmo pelo mangá dos outros. Não ama senão o que faz (e que já faz há dez anos, sem se renovar). “Meu mangá é bastante agradável”, e dele fala como de uma droga doce. Seu mangá é “saquê para as crianças”.

Evidentemente ele exagera, o sucesso o aturdiu. Mas se é verdade que o mangá é o suave delírio cotidiano “made in Japan”, seu uso parece irremediavelmente interno. Universalmente conhecidos no Japão, Tezuka, Sampei e os outros são quase ignorados alhures. Não se queixam (salvo Tezuka, que prepara uma estreia na França). Tanto quanto a moda abre o Japão para o exterior (o que quer dizer, para o Ocidente), o mangá é a expressão de um microcosmo fechado.

Estranho arquipélago, o Japão? Livre de todo desejo de falar ao resto do mundo, tendo tudo a lhe vender, nada a lhe contar. Ativo e vazio. A anti-América, sim. Um estranho pressentimento assalta o viajante. Aquele de uma cultura muito antiga e provincial ao mesmo tempo, que alcança o século XXI no pelotão de frente, mas sem imagem de si mesma, sonâmbula em seu pragmatismo, exposta à gafe (cf. o episódio da reescrita dos manuais escolares) ou a um desarmante candor chauvinista (“somos japoneses, logo, incompreensíveis”). 4

O camponês eletrônico do século XXI será japonês? Está ele já num mundo que confunde informação (rápida, muito rápida) e comunicação (lenta, muito lenta)? Não tem mais necessidade de imagens para se comunicar com quem não o é? Não, isso não é possível.

15 de dezembro de 1982.



1. Sobre o benshi, ver o livro recente de Noël Burch, Pour un observateur lontain, página 79 (Gallimard/Cahiers du Cinéma).


2. Comme une autobiographie. Akira Kurosawa, Ed. Cahiers Cinema.

3. As únicas narrativas japonesas vendidas no estrangeiro são os desenhos animados. Sua estratégia única visa as crianças pequenas. Muitos mangakás são cineastas malogrados. Tezuka, a partir dos anos sessenta, realizou numerosos longa-metragens de animação (“animeshon” como se diz no Japão), por vezes distribuídos nos EUA (Vampire Cleopatre, As Mil e Uma Noites, Phoenix 2772). Além de tratar-se de outro aspecto do “look” japonês, está claro que, para o amador de mangá, a passagem para a animação equivale à morte de tudo aquilo que ama na arte descontínua da história em quadrinhos.

4. Uma anedota circula. Philippe Pons, entre outros, reporta-a em seu pequeno livro (Japon, Ed. du Seuil). “Assim que o estrangeiro fala japonês, é olhado com surpresa e, de partida, lhe responderão com um inglês aproximativo ou por mímica, significando que não se lhe compreende.” – o que ficou para ser demonstrado.

Retirado do livro Ciné journal – Volume I 1981-1982, p. 32-35. Tradução: Eduardo Savella. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário