Da dificuldade de ser Coco


Por André Bazin

Esta história real saiu em Carrefour, a 17 de março de 1954.

Desde que eu soube ter sido convidado ao festival de São Paulo, pareceu-me evidente que deveria voltar com um papagaio. Entre a ideia de Brasil e a de papagaio existe uma relação que se impõe ao espírito como aquela da bestice com Cambrai ou do Calvados com a Normandia. Dir-me-eis que, eliminadas as malcheirosas antas, o tamanduá difícil de alimentar, as diferentes variedades de serpentes antipáticas e a espécie de pantera do tamanho de um gatão que aterroriza a floresta virgem, tinha eu também o jacaré. Antes de tudo, o crocodilo não é típico da América do Sul. Encontramo-lo mesmo na Índia e, de resto, já tenho um que comprei prosaicamente de meu passareiro habitual, praça Jucieu. Notai que gosto muito dele, mas um só basta. Como não há ninguém além de mim na família com a manha de agarrá-lo pela nuca sem me deixar impressionar por seu fole de ferreiro e suas lamentações [1] enquanto lhe trocamos a água, e que tal operação se renova a cada oito dias (independente de acidentes com o aquecimento central que vos obrigam a traficar o termostato ao alcance da bocarra), é uma grande preocupação nas férias. De resto, ele engorda. Discretamente. Mas engorda, e já ultrapassa os cinquenta centímetros. Em seis meses, o aquário que lhe fiz sob medida estará muito estreito para seus arroubos e vou ter que, sem dúvida, oferecer meu crocodilo ao Museu das Colônias, onde iremos vê-lo de tempos em tempos. De todo modo, Janine jamais se lhe habituou, diz que é estúpido e que está sempre pronto a vos arrancar um dedo.

Estive pensando também em um pequeno macaco, mas diz-se que aqueles da América do Sul são particularmente frágeis e Michel Simon, que eu tive a chance de consultar quando nossas gripes mútuas nos detiveram no hotel Esplanade, confirmou o meu receio. Então, será que ele se familiarizaria com meu filho, mesmo supondo que se entenderia com o cão e o gato? Não: o macaco, nós vamos reconsiderá-lo quando eu tiver um apartamento de mais de três cômodos. Todas as alternativas consideradas, apenas o papagaio se impôs. Primeiro, por associação de idéias. Segundo, por seus bem conhecidos traços de higiene e sociabilidade. E enfim, por sua conversa aprazível.

Poderia adicionar que tinha um sentimento, um projeto em formação, de reparar simbolicamente uma injustiça? Verdade seja dita, o mais humano dos pássaros foi acometido por uma maldição jurídica na França por cerca de vinte e cinco anos. Por causa da psitacose, o papagaio chegou à nossa casa não apenas como espécime raríssimo, mas também como um irregular e fraudulento objeto de contrabando. Ele só sobrevive em cativeiros clandestinos porque é proibido de entrar legalmente. A longevidade atingida por esse pássaro nos permite invocar uma origem longínqua, anterior à obrigação da carteira de identidade ou da biometria. Ainda por cima, eles são caros. Dificilmente encontra-se papagaios por menos de vinte e cinco mil francos, e isso sem contar com o adestramento apropriado, pois um papagaio que fala não tem preço. Além disso, eu não me daria ao direito de desviar tal montante do bem-estar familiar, seria sentimentalmente repugnante arranjar-me animais a preço de ouro. A sua posse parece-me prioritariamente um fruto de amizade, ou respalda a necessidade da lembrança, que é outra forma de amizade. Por exemplo, no ano passado em Verona, Janine e eu descobrimos, horrorizados, que no mercado da adorável piazza dei signori vendiam passarinhos massacrados em redes, aos milhares. Lembrai-vos quando vos servirem na Itália uma codorna com polenta: seria isto aquele infeliz pardal ou pintassilgo abatido à beira do lago de Garda? De repente, percebi sob a tenda de um desses açougueiros que do céu piscaram grandes olhos dourados: Era uma dúzia de corujinhas vivazes apinhadas numa gaiola e prometidas a não sei qual especialidade gastronômica local. Poderia eu fazer o gesto mínimo de salvar ao menos uma? Depois de uma breve discussão franco-italiana da qual eu não discernia muito bem se se tratava de como acomodá-la ou de como alimentá-la, levei minha coruja, que nós chamamos de Juliette. Eu não vou bancar mais o Axel Munthe: meu amor pelos bichos é egoísta, eu esperava retornar com ela para Paris. Juliette parecia forte o suficiente para suportar a viagem mas morreu na noite seguinte ao nosso regresso. Seu túmulo jaz no jardim ao lado de um gaio que nós havíamos enterrado três anos atrás. O amor nem sempre é menos perigoso que a cozinha.

Mas voltemos ao meu papagaio. Esta digressão talvez tenha feito compreender porque eu não podia voltar de mãos vazias. Não sendo bobo, sabia perfeitamente que o lobo do mar desembarcando em Bordéus, o saco de marinheiro num ombro e o papagaio desbocado noutro, procede desde muito tempo da mitologia, através de gravuras românticas. Mas deveria ao menos existir um serviço ministerial capaz de entreabrir a cortina de ferro dos papagaios.

Devo dizer, ademais, que tive do ministério da agricultura, serviço veterinário, setor de importação de animais, a mais compreensiva acolhida. Não me impuseram nenhuma dificuldade para me conceder uma derrogação de importação para um papagaio proveniente do Brasil. Derrogação entretanto sujeita a duas condições: emissão, na chegada, de um certificado veterinário brasileiro atestando a boa saúde do animal, e que o território de onde proveio está indene de psitacose por mais de seis semanas. Tal certificado, para ser válido, devia ter, no máximo, três dias. A duração da viagem de avião sendo de trinta horas, a observação desta cláusula constituía, evidentemente, uma proeza e condenava em todo caso a importação por água. A segunda condição era que o animal fosse recebido na chegada pelo veterinário do serviço aduaneiro, e julgado uma segunda vez livre de perigos para a população francesa.

Na especial constelação que constituía a delegação francesa do festival, obtive um pequeno sucesso proclamando minha intenção. Alguns, vagamente inteirados, me preveniram contra as dificuldades do retorno. Outros simploriamente declararam me imitar. Minha derrogação especial causou grande impressão. Eu era o único membro da delegação francesa capaz de voltar com um papagaio! Pelo menos era o que eu achava, pois ainda ignorava que seria menos presunçoso de minha parte pretender retornar com um rebanho de lhamas da cordilheira dos Andes ou com todas as variedades de serpentes venenosas do instituto Butantã, mesmo entregar-me ao tráfico, que tencionar trazer à minha esposa o mais comum dos papagaios. Pois que jamais o teria conseguido sem a ajuda de amigos devotados, perseverantes e influentes, aos quais dedico estas páginas, em grata homenagem. Como iria imaginar que seria ainda mais complicado sair com meu pássaro do Brasil que fazê-lo entrar na França?

Antes de tudo, eu devia constatar a ausência aparente de qualquer psitáceo em São Paulo. Essa metrópole onde os arranha-céus crescem tão rápido que seus ascensores não lhes alcançam utiliza bem o papagaio, ou mais exatamente, a arara, em seu simbolismo turístico; mas o animal em carne e osso é tão raro ali quanto o galo gaulês nas ruas de Paris.

Felizmente eu devia encontrar, sob recomendação de Albert Béguin, o Reverendo Benvenuto de Santa Cruz, um jovem dominicano que dirige por lá Economia e Humanismo, com quem tive conversas mais sérias que as que me levaram finalmente a torná-lo parte de minha desilusão. Senso de humor ou caridade cristã, assegurou-me: não seria em vão que Economia e Humanismo ter-se-ia entregue ao estudo aprofundado da geografia humana de São Paulo: alguns telefonemas o fariam capaz de me indicar os raros lugares da cidade onde se vendiam papagaios.

No dia seguinte, pois, à hora marcada, o clérigo passou me pegar no hotel, com vistas na operação-papagaio. O carro nos levou antes por longos desvios até uma pequena praça onde dois passareiros tinham loja. Ali se vendia sobretudo poleiros para papagaios e os pequenos periquitos verdes que se acham facilmente nos cais de Paris, mas somente quatro ou cinco papagaios, de triste aspecto. Foi preciso seguir para outro bairro para encontrar, enfim, à entrada de um grande mercado, alguns papagaios em bom estado. Eu almejava que meu papagaio falasse, mas não o português. Por intermédio do Reverendo, aprendi do passareiro que me era necessário escolher um papagaio da Bahia, ou seja, o bravo papagaio clássico, verde com algumas plumas vermelhas, faces amarelas e fronte azul. É o único papagaio sul-americano que fala. A magnífica arara, colorida como um oficial de opereta, grita muito alto mas não dá um pio. De resto, eu começava a suspeitar das dificuldades do retorno e recear seu tamanho. Uma arara chega facilmente aos 75 centímetros, ao seu transporte faltaria discrição. Eu devia, ademais, escolher um animal jovem, não tendo ainda frequentado a escola e disposto a aprender o francês. Garantiram-me um espécime de seis meses, pouco domesticado e que preenchia incontinente a rua de protestos. Por 400 cruzeiros, cerca de 3000 francos, consegui meu papagaio. Retornando imediatamente, instalei-o no banheiro, sobre o porta-toalhas, à guisa de poleiro, com uma boa ração de sementes de girassol. Restavam-me quatro dias para conseguir seus papéis, que eu supunha resumirem-se no certificado veterinário pedido pela aduana francesa. Foi então que os verdadeiros problemas começaram.

Que me permitam aqui um parêntese que terá ao menos o mérito de lançar alguma luz sobre o caráter brasileiro e o clima sob o qual se desenrolou o festival.

Não avexarei meus amigos paulistas revelando que seu festival não foi um modelo de organização; mas jamais saberei dizer o bastante sobre a maravilha de sua hospitalidade, e particularmente em relação à francesa. Fomos acolhidos numa amável e suntuosa desordem, mas com uma gentileza, ou melhor, uma generosidade na cortesia cuja lembrança ainda me assombra. Conscientes de suas fraquezas administrativas, em todo caso se esforçaram, por todos os meios a seu alcance, em evitar-nos pessoalmente os inconvenientes.

Foi assim que, tendo um dia cometido a imprudência de me fiar no programa oficial, que anunciava uma conferência de Jean Painlevé, lá o encontrei, mas entre os ouvintes, escutando pacientemente um de seus colegas brasileiros. Saí bem a tempo de receber o pé-d’água cotidiano. Raramente chove mais de uma hora em São Paulo, mas o que chove é o suficiente para justificar o guarda-chuva que levam a maior parte dos pedestres: ficais em alguns segundos encharcados até os ossos. Cheguei ao hotel furioso e o fiz notar a um organizador. Esta desventura valeu-me, além de uma sólida bronquite, a disposição, a partir do dia seguinte, de uma espécie de secretária particular - o que chamam por lá de uma "hôtesse" - encarregada, não somente de advertir-me cotidianamente de todas as mudanças de programa - o que já era uma proeza - e de facilitar meu trabalho de jornalista, mas, de modo geral, de ajudar-me em todos os esforços que minha ignorância do português e da vida brasileira podiam se me tornar complicados.

Minha hôtesse particular se chamava Sofia. Ela era uma estudante loura e rosa-bebê, que falava perfeitamente o francês. Jamais saberei dizer o bastante sobre o que foram, não somente sua paciência e devotamento à causa do papagaio, mas a eficácia decisiva de suas intervenções.

Obtive, mais facilmente que aquela de um passareiro, a indicação de um veterinário por Mme. Sermaize, esposa do organizador francês do festival, que precisava, por sua vez, de certificados para levar consigo um pequeno cãozinho, com o qual travara amizade. O bravo animalzinho fazia desde oito dias companhia a Eric von Stroheim, igualmente afetado pelo clima local, e que quase não saia, a não ser para rijas e altaneiras aparições à projeção de seus filmes. Encaminhamo-nos, os dois, para uma espécie de pequeno hospital veterinário, apresentar nossos animais. Dão ao infeliz filhote uma injeção antirrábica, tomam sua temperatura, examinam no microscópio o que ficou no termômetro e entornam-lhe um vermífugo. Ao que o homem de arte, que pouco fala o francês mais que nós o português, esforça-se em explicar à dona que ela ainda precisa se dirigir ao ministério da Agricultura onde, com seu certificado, lhe darão um outro papel... assim que infligissem ao cão um último exame destinado a livrá-lo de seus... - aqui, um termo em português para o qual o veterinário busca em vão o equivalente em francês: "Sabem, maior que maior...". Exauri os superlativos: "muito", "um grande número", "enormemente". Terminamos por nos entender: trata-se de carrapatos, parasitas efetivamente "maiores que pulgas". Tanta complicação por um pobre cãozinho de apartamento muito me faz temer por meu papagaio; mas se contentam em inspecionar suas narinas e examinar seus dejetos, após o que obtenho um certificado devidamente timbrado, onde creio discernir que o animal aparenta ter boa saúde.

Foi aqui que se manifestou o primeiro mal-entendido que ameaçou tudo comprometer. Eu acreditava, em minha tola presunção, possuir o certificado necessário e suficiente, tanto para a saída de meu papagaio do país, quanto para sua importação. Grande erro. No Brasil, os certificados de médicos e de veterinários não têm nenhum valor legal. Este tipo de papel deve ser emitido, ou pelo menos autenticado, pelos ministérios competentes, no caso, da Saúde ou da Agricultura.

Voltei ao hotel, persuadido de que estava tudo em ordem, para minha vez de medir a temperatura e de me deitar, com uma boa gripe. Ainda bem que Sofia não estava longe! Perguntei-lhe timidamente se não seria muito expandir suas funções de hôtesse para lhe pedir que fosse, no dia seguinte, à companhia aérea brasileira onde eu reservara minha passagem de volta, a fim de preparar a partida.

Voltou com notícias alarmantes. O regulamento dessa companhia interditava o transporte de animais, pelo menos acompanhando os passageiros. Entretanto, tinham-na pedido para esperar até... amanhã. No dia seguinte, Sofia, a quem uma temporada de vários anos na França dera um senso prático e cartesiano, não se deixou enganar e não sossegou até elucidar completamente a questão. Acabou descobrindo, depois de uma manhã de pesquisa nos arquivos da companhia, em que condições poderia ser concedida, excepcionalmente, uma autorização para transporte de pequenos animais. Um capítulo particular, minucioso e draconiano, consagrava-se aos papagaios, distintos dos outros pássaros. Ele previa a dimensão e o material da gaiola (madeira, nem pensar), a distância entre as barras, a quantidade de alimento e de água. Sofia descobriu também que meu certificado veterinário não tinha nenhum valor e que aquele que obtive do ministério da Agricultura deveria ser, ainda por cima, examinado pelo consulado da França. Sem tudo isso, nada de papagaio no avião.

A perspectiva destes novos procedimentos teria sido desagradável mas, graças ao devotamento de Sofia, não de todo catastrófica, se todas estas complicações não nos tivessem levado ao sábado, véspera de Carnaval, que suspende, durante quatro dias, toda vida profissional e administrativa. Ao menos no Rio de Janeiro. Por sorte, em São Paulo, a observação do feriado é menos rigorosa e, com um pouco de sorte, talvez encontrássemos na manhã de segunda-feira, entre as nove da manhã e o meio-dia, (eu partia de tarde), aberto o Ministério da Agricultura. Mas o Consulado da França estava irremediavelmente fechado.

Entretanto havia sorte, era evidente, em meus infortúnios: o acaso me fez encontrar no bar do hotel um dos vice-cônsules da França, M. Ben Simon, que prometeu me acompanhar pessoalmente segunda de manhã ao consulado para aditar ele mesmo o selo aos papéis brasileiros. Papéis que eu não mais podia obter senão a partir do início da manhã de segunda-feira.

Não falarei de meu domingo. Sofia, que partia em viagem, precisou me abandonar.

Felizmente, o festival havia terminado desde a tarde de sexta-feira. Paulo Emílio Sales Gomes, que dirigia o setor cultural do evento, seu adjunto e o Sr. Almeida Sales, crítico brasileiro, outro responsável pelo festival, colocaram-se à disposição do papagaio. Entrementes, alguns gramas de estreptomicina haviam felizmente derrotado meus últimos décimos de febre. Na segunda-feira, às 9 horas da manhã, partimos num taxi, em busca de um serviço competente e em atividade.

Primeiro xeque, o ministério federal estava fechado. Mas o vigia nos indicou, a alguns quilômetros dali, um "serviço animal". Lá fomos nós para descobrir, em meio de recipientes com órgãos bovinos mergulhados em álcool, que ali se ocupavam apenas de animais mortos. Para os vivos, ainda era alhures. Mas, aos "animais vivos", disseram-nos que o certificado deveria nos ser emitido pelo próprio ministério. Felizmente ao senso administrativo dos brasileiros não falta jamais piedade, e aceitaram, em face das circunstâncias, reexaminar o pássaro e emitir-lhe um passaporte quase em ordem.

Nosso taxi nos levou em seguida à casa do vice-cônsul, depois ao subúrbio, onde ficava a casa da secretária que detinha as chaves do armário com os carimbos, e finalmente ao consulado. O Consulado Francês fica num arranha-céu que abriga apenas escritórios, deixado nesta manhã de carnaval sob a guarda tão-somente de um zelador que passara a noite, evidentemente, dançando através dos eflúvios de éter perfumado. Ele não tinha nada de mais urgente, depois de nos receber, que voltar a dormir em seu décimo terceiro andar, fazendo-nos prisioneiros do interior do imóvel vazio e sonoro, cujo elevador estava quebrado. Foi preciso meia hora para nos fazermos lembrados pelo nosso porteiro. Era meio-dia e o taxímetro marcava 400 cruzeiros; mas eu detinha os papéis do meu papagaio.

Uma nova aventura começava. Munido de papéis ou não, eu estava entregue à discrição dos serviços administrativos da companhia aérea e da aduana. Apenas um funcionário temeroso ou ignorante, amedrontado pelas responsabilidades, que se recusasse a colocar os pássaros pequenos com os grandes, e eu deveria abandonar, in extremis, minha criaturinha sobre o concreto engordurado do aeródromo. Deveras Sofia, em sua sabedoria previdente, teve o cuidado de telefonar ao comandante do aeroporto para lhe anunciar a presença de um papagaio no avião das 20 horas de segunda-feira, mas eu temia que este importante personagem tivesse coisa melhor para fazer. No último minuto, tudo arriscava se complicar. O avião que eu devia tomar, vindo de Buenos Aires, renunciou, por causa do mau tempo, à escala em São Paulo. Era preciso alcançá-lo pelo avião de uma linha secundária. O que supunha dois embarques e, sobretudo, a reavaliação, no Rio, de tudo o que já havia sido previsto e preparado para o embarque em São paulo.

A relativa facilidade com a qual se desenrolaram tais operações ainda será, espero, para meus netos, objeto de maravilhamento. Pediram-me, decerto, toda vez, os papéis do papagaio, mas tão naturalmente quanto os meus próprios, sem qualquer surpresa aparente.

Foi no Rio, entretanto, o ápice do drama. No momento em que passaríamos para a pista, o comandante de bordo em pessoa veio informar Mme. Sermaize que seu cãozinho não podia lhe acompanhar. Levariam-no, no máximo, com a bagagem, mas não com os passageiros. Bastava ver o pobre filhote, cuja cabeça minúscula saia de uma caixa de chapéu, para compreender que não sobreviveria a semelhante provação. A comoção ganhou reforços. M. Jauffre, gerente financeiro do cinema francês, France Roche, os Gance esforçaram-se por comover o comandante num francês que ele, aliás, não compreendia. Propus a greve geral de embarque até chegarmos num acordo com o adversário, considerando que, se procuravam pelo cão, munido de três vezes mais papéis sanitários que meu papagaio, tal querela tardia e inesperada poderia muito bem colocar em dúvida meus privilégios. Mme. Sermaize agiu finalmente como se lhe impunha, e chorou. O comandante não era insensível a mulheres formosas: depois de um conciliábulo com a aeromoça, o soberano após Deus cedeu.

A viagem não teve nada de mais. Os Gance, que possuem há vinte anos um papagaio-do-congo vermelho e cinzento, capaz de atender o telefone, muito se ocuparam de meu papagaio, envolvendo sua gaiola a cada escala de cobertas protetoras a fim de resguardá-lo das correntes de ar. Devo-lhes uma porção de bons conselhos sobre a saúde dos papagaios, que temem o frio, comem de tudo mas carecem de uma colherada de óleo de tempos em tempos para suas boas funções intestinais. Observamos atentamente a cor do bico, barômetro da saúde dos papagaios, brilhante e negro quando tudo vai bem, manchado de bolor esbranquiçado quando algo vai mal. Coco - pois agora ele tinha um nome - parecia suportar bem as mudanças de pressão que nos reviravam as tubas auditivas mas não impediam-no de comer sementes de girassol e amendoins.

A última provação, enfim, se aproximava. Sempre previdente, eu telegrafara de Dakar a Orly para anunciar a chegada de um papagaio. Mas incomodar-se-ia um veterinário às seis da manhã? Já me via forçado a esperar horas a fio no aeroporto até que a sorte de meu animal fosse posta às claras. Dado que, não tendo eu assinado o telegrama, por economia, percebi logo que ele tomara o ar de uma denúncia anônima própria para mobilizar toda e qualquer suspeita.

Hesitantes, alguns compatriotas aludiam à eventualidade da quarentena para o papagaio, senão para todos os passageiros do avião. Quanto mais nos aproximávamos, mais a personalidade de Coco tornava-se moralmente indiscreta. Cada um, e com razão, tinha pressa em voltar para casa mas, mais ainda que pelo cãozinho de Mme. Sermaize, que ameaçou apenas faltar à decolagem, creio que até o mais egoísta se sentia um pouco responsável por meu passageiro clandestino e não me abandonaria sem peso na consciência, em dificuldades com a aduana.

Orly… no gris de um amanhecer chuvoso, a constelação se organiza sobre a pista asfaltada. Apenas aberta, a porta do avião deixa engolfar-se o vento glacial do inverno parisiense. Ontem mesmo, o forno acachapante do aeroporto do Rio, agravado, parecia, pela febre próxima do Carnaval cujas máscaras desgarradas atravessavam de vez em quando as salas de espera. Aqui, a neve derretida, as árvores sem folhas: início de março em Paris. Embrulho Coco com três voltas de um autêntico poncho e enfrento a brisa matinal. O coração batendo, eis-me diante do oficial aduaneiro que examina desconfiado a minha bagagem:

- Nada a declarar?

- Nada na bagagem, mas um papagaio que...

Mergulho no fundo de minha valise à procura dos papéis.

Quando levanto a cabeça, parece que estou sonhando, o aduaneiro já está longe, estou livre, Coco é francês.

Enquanto vos conto sua história, Coco espreita-me com seus olhos dourados, cabeça inclinada, descascando o amendoim que mantém cerimoniosamente entre os quatro dedos opositores de sua pata esquerda. Janine adorou-o, porquanto ele está muito mais familiarizado com ela, sabendo agarrar delicadamente uma semente de girassol pinçada entre seus lábios, enquanto que afeta, quando me aproximo, um medo estrondoso e visivelmente simulado. Como diz minha vizinha, admirada:

- Só falta falar.

[1] O crocodilo “lamenta”, ao que imagino as famosas lágrimas...

Republicado em Cahiers du Cinéma, nº 91, janeiro de 1959. Tradução: Eduardo Savella e Erick Moro.

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