O karma das imagens

Por Serge Daney

O Festival de Cannes é um rito. Era também uma festa. A crítica internacional descobria a cada ano com o que se parecia o mapa geopolítico do mundo (das imagens) através de uma seleção de filmes inéditos (na França, ao menos): ela tinha as primícias destes filmes. Havia o frescor e talvez um arrepio a percorria, aquele de ser o “primeiro público” do filme, de ter para com ele os direitos e os deveres. Aquele de descrever o que ela tinha visto, de criar o desejo de ver o que ela tinha amado, de falar mal do que a decepcionou – e mesmo chocou (o escândalo de A aventura em 1960!). Eu não conheci esta época, da qual tudo me indica sua existência.

Mas no correr dos anos, o que se passou? Mais imagens foram consumidas por menos gente cada vez mais depressa. O mundo do cinema (a rotação dos filmes, das novidades, das idéias, das modas e das pessoas) se acelerou e, então, se entusiasmou completamente.
Todo o rito que ele é (e que ainda lhe resta), o Festival de Cannes representa menos, para os filmes, um batismo de fogo ou uma passagem da linha que uma forma de teste ou de confirmação, de repescagem ou de revanche (eu falo da Seleção oficial, evidentemente). Os americanos lhe enviam filmes que já perderam os Oscars e que, devido sua estranheza, seduzirão, talvez, o gosto europeu (Coppola, Cimino, este ano Leone), enquanto que os grandes distribuidores matam a galinha e os ovos de ouro, “lançando” o filme ao mesmo tempo que o Festival, ou logo após, transformando a noite de gala em preview mundana. Resumindo, o freqüentador de festival perde o seu privilégio cinefílico, este de voltar à Paris, bronzeado se possível, e de responder com um ar cansado e sibilino às perguntas febris de seus amigos: “Então, como é o...?”. E quando um filme da seleção francesa (do qual sabemos o ridículo assunto de Estado (dentro do estado) que ele representa a cada ano)foi lançado nas salas, vamos para um “efeito César” do festival: o rito hesita entre a redenção e a obstinação terapêutica.

É preciso ser cinéfilo para sentir estas coisas, mas teria de ser burro para pensar que elas dizem respeito apenas ao mundo do cinema. Esta perda do sentimento do presente é evidentemente o grande fenômeno das mídias. Nós não estamos mais diante das coisas, mas sua imagem nos prega na pele como uma simpática cola ontológica. A urgência de ver um filme é menor e produz talvez, a prazo, uma urgência menor de fazê-los. Nós entramos completamente na era da reciclagem. O karma das imagens é renascer. Elas enterrarão a nós todos.


O que acontece com o jornalista de cinema que volta, tarde e trêmulo de cansaço, ao seu quart(inh)o de hotel? Que, por reflexo, ele ligue a televisão. E que ele veja – ô alegria! – que além do fim dos programas e do vergonhoso “boa noite crianças!” com que as apresentadoras mandaram deitar o bom povo (trabalhador) da França, há ainda a imagem! Não em todos os casos, sem dúvida, mas sobre os mil receptores que difundem, após a meia-noite, o programa “Star 84” da Sygma. E lá, desprezando todo o bom senso, apesar dos neurônios em pedaços e da retina em fogo, o jornalista continua a olhar! Por que depois da meia-noite na Sygma, tem o “cineclube Gaumont”, tem ainda um filme.

Experiência estranha (e secretamente revoltante) esta que consiste em ver, quando é preciso dormir, longas passagens, a granel, de Cidade das mulheres ou de Identificação de uma mulher. Flutuação espantosa aonde velhos encontros vem alimentar nosso sono paradoxal. Últimos reflexos do crítico (será que o filme resiste?), restos diurnos de lucidez, estranha gratidão por estas imagens sobre as quais ele não terá nem que escrever nem que se pronunciar no dia seguinte. É assim que, a cada noite, são as imagens que nos curam das imagens.

Esta perda do sentimento do presente provoca imediatamente uma indiferença pelo futuro e um esquecimento do passado. Todas as imagens subitamente são iguais. Os contadores da reciclagem são zerados. Anteontem, olhando com um olho mais verdadeiramente humano Identificação de uma mulher, tive que fazer um esforço para me lembrar que o filme estava em competição, aqui mesmo em 1982 e que foi necessário lutar (por ele e mesmo para vê-lo, entrar na sala de projeção, convencer aqueles que lhe tiraram as esperanças, improvisar duas páginas no jornal). Era isso que era verdadeiro ou o retorno discreto do filme, dois anos mais tarde, já objeto de cineclube?

Fica mais difícil a cada dia nos identificar com os filmes. Por que nós não os encontramos mais (como as estrelas cadentes), mas por que são eles que se aparentam conosco: reservados, em K7, à espera, sob a grade, vagamente presentes e sempre prontos. 

17 de maio de 1984

Le karma des images foi publicado no livro Ciné Journal (Volume II), p. 109-111. Tradução: Miguel Haoni

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