"Suponho que me perguntareis se tudo aquilo de que falei - linha forma cor - não seja porventura técnica, e não arte. Mas a técnica começa e termina quando as cores são compradas na mercearia, quando a cola já está pronta, quando o bloco de mármore foi medido. Já vos falei talvez da beleza das cores minerais comparadas às vegetais? Seria falar de técnica.
Mas logo depois começa a arte, e com a arte o prazer artístico.
Pois dizei-mo, podemos usufruir da linha da cor da massa da coluna independentemente do fato representado, ou do fim prático ao qual um edifício quer destinar-se? Que valor lírico, que valor espiritual pode existir nestes elementos?
Se mesmo assim não o haveis compreendido nas entrelinhas de minha explicação esquemática, esperai ainda uma demonstração a mais.
Cada estilo figurativo contém em si o dom essencialmente estético, primordialmente lírico de restaurar o contato do nosso espírito com a realidade visível corpórea com a qual o hábito cotidiano nos fizera perder a simpatia e a comunhão. Quando, por via filosófica, chegamos à convicção da existência do mundo, a ferrugem da vida metódica já nos fez perder a primeira convicção: a convicção plástica.
O sentido tão puro intenso e verdadeiro da apreensão de uma realidade ambiente que tínhamos constantemente quando, criancinhas, iniciávamos nossa circulação no espaço; que nos fazia tocar tudo e pesar tudo, e pela qual mirávamos irritados a aresta aguda que se encontrava numa trombada à altura da face - aquele sentido, digo, que nos fornecia a convicção da existência das coisas e de nós mesmos se entorpece bem rápido, uma vez adquirida a pequena bagagem de cognições espaciais e plásticas indispensáveis ao nosso comportamento decoroso na vida. Uma vez apreendidas as poucas frases obrigatórias do manual internacional de conversação plástica com as coisas e com o espaço - subir e descer, virar à direita e à esquerda, ficar parado, sobretudo ficar parado - cremos já possuir o suficiente. E eis que a cerca avara e curta da vida prática nos fecha sem saída para a vida: em pouco tempo nos tornamos autômatos, assim que não pensaremos jamais em poder tirar alegria rudimentarmente estética do fato simples de nossa colocação no espaço, do fato ainda mais simples e profundo de nossa existência real. Depois de quatro cinco meses de casa-escola escola-casa quantos de vós não vos esquecestes de haver caminhado para cumprir aquela ação de relativa importância!
Pois bem: o pintor de estilo plástico nos constringe a restaurar nosso contato com a convicção da existência corpórea. Dotado de um invencível senso plástico - qual filósofo convenceria Giotto e Masaccio da não-existência do mundo? - ele nos transporta à realidade superior de um espaço bem-definido compacto forçoso onde estão coisas e seres, incorruptivelmente. Lá devemos passear prosseguir deslocar-nos evitar contornar o obstáculo retroceder saltar as vacuidades, ou preenche-las, abraçar, em uma palavra, a vida como pura significação plástica. Significação, naturalmente, espiritual. De fato, todos compreendem qual senso de solidez moral, de vida durável emana de um mundo assim imaginado; qual senso de aceitação profunda e resoluta do grave peso da existência.
A mesma ferrugem cotidiana que nos fez perder o sentido primordial - e exatamente por isso intimamente espiritual - de nossa existência, nos faz esquecer ainda de um símbolo mais profundo de nossa energia: do movimento que se exprime com a linha. Que desatenção fatal a vossa defronte o movimento, defronte à linha! - diz agora o pintor linear. Ei-lo que se aplica a dotar-vos daquela nova profunda convicção visível por meio da expressão linear. A qual difere naturalmente da interpretação que da realidade deu o plástico, antes, se lhe opõe: não acrediteis demais - diz ela - no assentamento inexorável das coisas no solo: há, no entanto, uma vitória de cada forma sobre o peso, que se exprime em seu contorno. O corpo vence, aqui, o senso da gravitação; o centro articulado se desvincula e sobe, cada corpo, vós mesmos podeis pular saltar lançar-vos transitar livres e leves no espaço; sois chama e vôo : ao vento vossas vestes flamularão, para o alto, sem trégua como de uma haste fina de estandarte, os cabelos incendiar-se-ão como um arbusto sob o sol de agosto.
E cada coisa - não só vosso corpo nobilíssimo de linhagem - se move vive e age e vós o havíeis esquecido. O caule curva-se, a alga se insinua, as nuvens caprichosamente fazem renda de suas bordas ajourés, a própria terra vive e se move no distante perfil avalado dos horizontes intermináveis.
Assim cada objeto - por meio da linha - exalta primeiro sua vibrátil energia individual; depois, sem se dar conta, liga as próprias linhas à outras linhas distantes, num ritmo. Este ritmo é o artista a descobri-lo. Quantas vezes vós mesmos - não vos assusteis - sem saber fizestes decoração, linear, enquanto pensáveis em outra coisa qualquer! Destes a mão ao companheiro, trocada uma palavra sobre o Ésquilo das quatro e meia, e vos distanciastes em direções opostas, despedindo-vos no centro da arcada. Lá, eretos, falando, bem éreis um motivo estatutário colocado exatamente no vão, e agora, alcançando simultaneamente os umbrais, as duas extremidades do arco caindo sobre vossas cabeças - não faz mal, é arte - unindo-vos ainda numa deliciosa composição de luneta.
E não acrediteis, uma vez saídos do respiro do arco, ter reentrado na realidade bruta e impossível de interpretar artisticamente. Volta e meia tudo é artístico e nada é artístico. Cessado aquele ritmo reduzir-me-ei a apreciar o ritmo leve e pendular dos passos levemente detidos, a reevocar mentalmente a elasticidade vibrante e mole do contorno de um corpo elegante. Que energia aureolada se difunde, como líquido polveroso, do sutil riacho dum arabesco marginal de corpo!
E se num instante terminasse o motivo de movimento e de linha, bem poderia entrar de novo em campo o pintor plástico. Se, por exemplo, fugísseis da vista do linearista depois de lhe terdes fornecido um último motivo admirável correndo, contra o vento, de modo a saltar no último bonde, formais agora a alegria do plástico que, vendo-vos espremidos na plataforma onde batia inutilmente a plaqueta dizendo "lotado", não dá atenção ao cansaço corpóreo daquela massa humana bloqueada, calcada, exalante, antes pensa já em interpretá-la em sua essência voluminosa depois de ter em seu coração dado graças à vós que chegastes murando o último interstício. Compreendeis vagamente, agora, qual seja o passeio do pintor, como distinto daquele do poeta que escruta a fronte dos homens e das coisas para descobrir-lhes uma deixa lírica ou uma trama dramática?
Ainda mais primordial é o valor estético do estilo colorístico. É inútil objetar: a cor tem em si uma força expressiva, independente da forma à qual está unida, até o ponto, antes, de não mais ser vista como forma mas, de fato, como cor.
Explicar porque uma cor é bela é impossível, creio; todavia, pode-se procurar a razão disto, na possibilidade de acordo desta com outras cores e na possibilidade que tem de dar-nos um sentido de substância única e igualmente difusa.
No primeiro caso vale como tinta e como justaposição de tintas (composição colorística) no segundo como matéria pictórica.
Ver o mundo como acorde sinfônico de zonas variegadas é, sem dúvida, um belo sonho - e é a realidade do colorista. O valor tônico exaltante ou calmante de certas tintas plácidas e distesas é comparável somente ao efeito estético da música e exatamente por isso eu disse: "acordo sinfônico da cor". Assim a música como a cor não nos exprimem um sentimento por demais específico, mas somente a polaridade essencial do proprio sentimento. Em direção à alegria - ou o oposto desta; não uma particular alegria, uma dor particular.
A entonação - solar ou argentea - é aquela que unifica ainda mais o efeito da cor, tornando os acordes de cores quentes ou cores frias. Eis um outro elemento acrescentar-se ao efeito estético da cor.
Eis enfim o senso da matéria colorística ou pictórica pela qual no quadro cada coisa é de uma coerência igualmente materializada: o mito da unicidade da substância está aqui realizado, com que efeito cósmico bem compreendestes. Sentir-se por um instante - depois do qual o espectador de gosto torna-se ator - unido ao mundo pela mesma substância numa Mônada suprema. Que sentido pânico exala então desta transfiguração do mundo, como a idealizaram Giorgione Tiziano Greco Veronese!
Mais profundamente espiritual - quase às raias do prazer intelectual - é o efeito estético do estilo prospético. O caos acachapante mutável doloroso do mundo, do panorama cósmico reduzido concentrado em uma pirâmide cristalina de gelo de espaço, onde estão aprisionados, como palha num vidro, para a eternidade formas orgânicas e inorgânicas coisas e pessoas fixadas imperiosamente no sítio na pose no gesto parado, convergentes fatalmente em direção ao foco perspectivo - esta catarse da pintura! Deslocai um nadinha a mão destra suspensa da Annunciata de Antonello e tereis destruído a obra de arte, em sua essência."
E não acrediteis, uma vez saídos do respiro do arco, ter reentrado na realidade bruta e impossível de interpretar artisticamente. Volta e meia tudo é artístico e nada é artístico. Cessado aquele ritmo reduzir-me-ei a apreciar o ritmo leve e pendular dos passos levemente detidos, a reevocar mentalmente a elasticidade vibrante e mole do contorno de um corpo elegante. Que energia aureolada se difunde, como líquido polveroso, do sutil riacho dum arabesco marginal de corpo!
E se num instante terminasse o motivo de movimento e de linha, bem poderia entrar de novo em campo o pintor plástico. Se, por exemplo, fugísseis da vista do linearista depois de lhe terdes fornecido um último motivo admirável correndo, contra o vento, de modo a saltar no último bonde, formais agora a alegria do plástico que, vendo-vos espremidos na plataforma onde batia inutilmente a plaqueta dizendo "lotado", não dá atenção ao cansaço corpóreo daquela massa humana bloqueada, calcada, exalante, antes pensa já em interpretá-la em sua essência voluminosa depois de ter em seu coração dado graças à vós que chegastes murando o último interstício. Compreendeis vagamente, agora, qual seja o passeio do pintor, como distinto daquele do poeta que escruta a fronte dos homens e das coisas para descobrir-lhes uma deixa lírica ou uma trama dramática?
Ainda mais primordial é o valor estético do estilo colorístico. É inútil objetar: a cor tem em si uma força expressiva, independente da forma à qual está unida, até o ponto, antes, de não mais ser vista como forma mas, de fato, como cor.
Explicar porque uma cor é bela é impossível, creio; todavia, pode-se procurar a razão disto, na possibilidade de acordo desta com outras cores e na possibilidade que tem de dar-nos um sentido de substância única e igualmente difusa.
No primeiro caso vale como tinta e como justaposição de tintas (composição colorística) no segundo como matéria pictórica.
Ver o mundo como acorde sinfônico de zonas variegadas é, sem dúvida, um belo sonho - e é a realidade do colorista. O valor tônico exaltante ou calmante de certas tintas plácidas e distesas é comparável somente ao efeito estético da música e exatamente por isso eu disse: "acordo sinfônico da cor". Assim a música como a cor não nos exprimem um sentimento por demais específico, mas somente a polaridade essencial do proprio sentimento. Em direção à alegria - ou o oposto desta; não uma particular alegria, uma dor particular.
A entonação - solar ou argentea - é aquela que unifica ainda mais o efeito da cor, tornando os acordes de cores quentes ou cores frias. Eis um outro elemento acrescentar-se ao efeito estético da cor.
Eis enfim o senso da matéria colorística ou pictórica pela qual no quadro cada coisa é de uma coerência igualmente materializada: o mito da unicidade da substância está aqui realizado, com que efeito cósmico bem compreendestes. Sentir-se por um instante - depois do qual o espectador de gosto torna-se ator - unido ao mundo pela mesma substância numa Mônada suprema. Que sentido pânico exala então desta transfiguração do mundo, como a idealizaram Giorgione Tiziano Greco Veronese!
Mais profundamente espiritual - quase às raias do prazer intelectual - é o efeito estético do estilo prospético. O caos acachapante mutável doloroso do mundo, do panorama cósmico reduzido concentrado em uma pirâmide cristalina de gelo de espaço, onde estão aprisionados, como palha num vidro, para a eternidade formas orgânicas e inorgânicas coisas e pessoas fixadas imperiosamente no sítio na pose no gesto parado, convergentes fatalmente em direção ao foco perspectivo - esta catarse da pintura! Deslocai um nadinha a mão destra suspensa da Annunciata de Antonello e tereis destruído a obra de arte, em sua essência."
"Quanto, portanto, vos disse vos terá convencido que o tema, o fato representado não possui nenhum valor na arte figurativa. Existe uma composição linear, formal, colorística que agrada independentemente do tema. Suponhamos que o tema tivesse de fato importância: seria necessário então, para sua compreensão, uma bagagem de conhecimentos históricos mitológicos etc. que não podem ter nenhuma relação com uma linguagem de formas, e não de palavras. Seria necessário então saber os precedentes do quadro para ver se foi bem feito; ao que compreendeis que, atribuindo muita importância à interpretação psicológica na pintura, querer-se-ia reduzir o artista ao dever de um hábil compositor de pantomima, de cenas mudas, de sobrepostas películas cinematográficas.
Ai por isso do pintor que muito se interessa pelo fato que se lhe ordenou representar: a composição de forma ou de cor que tendia a larguezas sintéticas despojadas de minúcias, perder-se-á pelo contrário num realismo descritivo que acumula os particulares relativos ao fato que, malgrado todo esforço, permanecerá sempre ilustrado - pois transcrito com signos - e jamais expresso artisticamente, pois o campo congênito aos meios do artista não compreendia um conteúdo psicológico, mas tão-somente um conteúdo formal e visual.
O pintor bem pode chegar a ilustrar superiormente o mundo, representando nobres personagens em nobres ambientes, mas a sua será sempre ilustração e não arte.
Eis portanto outra distinção para lembrar: entre arte figurativa e de ilustração, ou melhor, literatura figurada.
E a literatura figurada, evidentemente, não é mais literatura, digo poesia, e ainda não é arte figurativa, isto é, pintura".
Roberto Longhi, Breve Mas Verídica História da Pintura Italiana. Tradução de Eduardo Savella.
Ai por isso do pintor que muito se interessa pelo fato que se lhe ordenou representar: a composição de forma ou de cor que tendia a larguezas sintéticas despojadas de minúcias, perder-se-á pelo contrário num realismo descritivo que acumula os particulares relativos ao fato que, malgrado todo esforço, permanecerá sempre ilustrado - pois transcrito com signos - e jamais expresso artisticamente, pois o campo congênito aos meios do artista não compreendia um conteúdo psicológico, mas tão-somente um conteúdo formal e visual.
O pintor bem pode chegar a ilustrar superiormente o mundo, representando nobres personagens em nobres ambientes, mas a sua será sempre ilustração e não arte.
Eis portanto outra distinção para lembrar: entre arte figurativa e de ilustração, ou melhor, literatura figurada.
E a literatura figurada, evidentemente, não é mais literatura, digo poesia, e ainda não é arte figurativa, isto é, pintura".
Roberto Longhi, Breve Mas Verídica História da Pintura Italiana. Tradução de Eduardo Savella.