O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Breve Mas Verídica História da Pintura Italiana #3



"Suponho que me perguntareis se tudo aquilo de que falei - linha forma cor - não seja porventura técnica, e não arte. Mas a técnica começa e termina quando as cores são compradas na mercearia, quando a cola já está pronta, quando o bloco de mármore foi medido. Já vos falei talvez da beleza das cores minerais comparadas às vegetais? Seria falar de técnica.

Mas logo depois começa a arte, e com a arte o prazer artístico.

Pois dizei-mo, podemos usufruir da linha da cor da massa da coluna independentemente do fato representado, ou do fim prático ao qual um edifício quer destinar-se? Que valor lírico, que valor espiritual pode existir nestes elementos?

Se mesmo assim não o haveis compreendido nas entrelinhas de minha explicação esquemática, esperai ainda uma demonstração a mais.

Cada estilo figurativo contém em si o dom essencialmente estético, primordialmente lírico de restaurar o contato do nosso espírito com a realidade visível corpórea com a qual o hábito cotidiano nos fizera perder a simpatia e a comunhão. Quando, por via filosófica, chegamos à convicção da existência do mundo, a ferrugem da vida metódica já nos fez perder a primeira convicção: a convicção plástica.

O sentido tão puro intenso e verdadeiro da apreensão de uma realidade ambiente que tínhamos constantemente quando, criancinhas, iniciávamos nossa circulação no espaço; que nos fazia tocar tudo e pesar tudo, e pela qual mirávamos irritados a aresta aguda que se encontrava numa trombada à altura da face - aquele sentido, digo, que nos fornecia a convicção da existência das coisas e de nós mesmos se entorpece bem rápido, uma vez adquirida a pequena bagagem de cognições espaciais e plásticas indispensáveis ao nosso comportamento decoroso na vida. Uma vez apreendidas as poucas frases obrigatórias do manual internacional de conversação plástica com as coisas e com o espaço - subir e descer, virar à direita e à esquerda, ficar parado, sobretudo ficar parado - cremos já possuir o suficiente. E eis que a cerca avara e curta da vida prática nos fecha sem saída para a vida: em pouco tempo nos tornamos autômatos, assim que não pensaremos jamais em poder tirar alegria rudimentarmente estética do fato simples de nossa colocação no espaço, do fato ainda mais simples e profundo de nossa existência real. Depois de quatro cinco meses de casa-escola escola-casa quantos de vós não vos esquecestes de haver caminhado para cumprir aquela ação de relativa importância!

Pois bem: o pintor de estilo plástico nos constringe a restaurar nosso contato com a convicção da existência corpórea. Dotado de um invencível senso plástico - qual filósofo convenceria Giotto e Masaccio da não-existência do mundo? - ele nos transporta à realidade superior de um espaço bem-definido compacto forçoso onde estão coisas e seres, incorruptivelmente. Lá devemos passear prosseguir deslocar-nos evitar contornar o obstáculo retroceder saltar as vacuidades, ou preenche-las, abraçar, em uma palavra, a vida como pura significação plástica. Significação, naturalmente, espiritual. De fato, todos compreendem qual senso de solidez moral, de vida durável emana de um mundo assim imaginado; qual senso de aceitação profunda e resoluta do grave peso da existência.

A mesma ferrugem cotidiana que nos fez perder o sentido primordial - e exatamente por isso intimamente espiritual - de nossa existência, nos faz esquecer ainda de um símbolo mais profundo de nossa energia: do movimento que se exprime com a linha. Que desatenção fatal a vossa defronte o movimento, defronte à linha! - diz agora o pintor linear. Ei-lo que se aplica a dotar-vos daquela nova profunda convicção visível por meio da expressão linear. A qual difere naturalmente da interpretação que da realidade deu o plástico, antes, se lhe opõe: não acrediteis demais - diz ela - no assentamento inexorável das coisas no solo: há, no entanto, uma vitória de cada forma sobre o peso, que se exprime em seu contorno. O corpo vence, aqui, o senso da gravitação; o centro articulado se desvincula e sobe, cada corpo, vós mesmos podeis pular saltar lançar-vos transitar livres e leves no espaço; sois chama e vôo : ao vento vossas vestes flamularão, para o alto, sem trégua como de uma haste fina de estandarte, os cabelos incendiar-se-ão como um arbusto sob o sol de agosto.


E cada coisa - não só vosso corpo nobilíssimo de linhagem - se move vive e age e vós o havíeis esquecido. O caule curva-se, a alga se insinua, as nuvens caprichosamente fazem renda de suas bordas ajourés, a própria terra vive e se move no distante perfil avalado dos horizontes intermináveis.
 
Assim cada objeto - por meio da linha - exalta primeiro sua vibrátil energia individual; depois, sem se dar conta, liga as próprias linhas à outras linhas distantes, num ritmo. Este ritmo é o artista a descobri-lo. Quantas vezes vós mesmos - não vos assusteis - sem saber fizestes decoração, linear, enquanto pensáveis em outra coisa qualquer! Destes a mão ao companheiro, trocada uma palavra sobre o Ésquilo das quatro e meia, e vos distanciastes em direções opostas, despedindo-vos no centro da arcada. Lá, eretos, falando, bem éreis um motivo estatutário colocado exatamente no vão, e agora, alcançando simultaneamente os umbrais, as duas extremidades do arco caindo sobre vossas cabeças - não faz mal, é arte - unindo-vos ainda numa deliciosa composição de luneta.

E não acrediteis, uma vez saídos do respiro do arco, ter reentrado na realidade bruta e impossível de interpretar artisticamente. Volta e meia tudo é artístico e nada é artístico. Cessado aquele ritmo reduzir-me-ei a apreciar o ritmo leve e pendular dos passos levemente detidos, a reevocar mentalmente a elasticidade vibrante e mole do contorno de um corpo elegante. Que energia aureolada se difunde, como líquido polveroso, do sutil riacho dum arabesco marginal de corpo!

E se num instante terminasse o motivo de movimento e de linha, bem poderia entrar de novo em campo o pintor plástico. Se, por exemplo, fugísseis da vista do linearista depois de lhe terdes fornecido um último motivo admirável correndo, contra o vento, de modo a saltar no último bonde, formais agora a alegria do plástico que, vendo-vos espremidos na plataforma onde batia inutilmente a plaqueta dizendo "lotado", não dá atenção ao cansaço corpóreo daquela massa humana bloqueada, calcada, exalante, antes pensa já em interpretá-la em sua essência voluminosa depois de ter em seu coração dado graças à vós que chegastes murando o último interstício. Compreendeis vagamente, agora, qual seja o passeio do pintor, como distinto daquele do poeta que escruta a fronte dos homens e das coisas para descobrir-lhes uma deixa lírica ou uma trama dramática?


Ainda mais primordial é o valor estético do estilo colorístico. É inútil objetar: a cor tem em si uma força expressiva, independente da forma à qual está unida, até o ponto, antes, de não mais ser vista como forma mas, de fato, como cor.

Explicar porque uma cor é bela é impossível, creio; todavia, pode-se procurar a razão disto, na possibilidade de acordo desta com outras cores e na possibilidade que tem de dar-nos um sentido de substância única e igualmente difusa.

No primeiro caso vale como tinta e como justaposição de tintas (composição colorística) no segundo como matéria pictórica.

Ver o mundo como acorde sinfônico de zonas variegadas é, sem dúvida, um belo sonho - e é a realidade do colorista. O valor tônico exaltante ou calmante de certas tintas plácidas e distesas é comparável somente ao efeito estético da música e exatamente por isso eu disse: "acordo sinfônico da cor". Assim a música como a cor não nos exprimem um sentimento por demais específico, mas somente a polaridade essencial do proprio sentimento. Em direção  à alegria - ou o oposto desta; não uma particular alegria, uma dor particular.

A entonação - solar ou argentea - é aquela que unifica ainda mais o efeito da cor, tornando os acordes de cores quentes ou cores frias. Eis um outro elemento acrescentar-se ao efeito estético da cor.

Eis enfim o senso da matéria colorística ou pictórica pela qual no quadro cada coisa é de uma coerência igualmente materializada: o mito da unicidade da substância está aqui realizado, com que efeito cósmico bem compreendestes. Sentir-se por um instante - depois do qual o espectador de gosto torna-se ator - unido ao mundo pela mesma substância numa Mônada suprema. Que sentido pânico exala então desta transfiguração do mundo, como a idealizaram Giorgione Tiziano Greco Veronese!

Mais profundamente espiritual - quase às raias do prazer intelectual - é o efeito estético do estilo prospético. O caos acachapante mutável doloroso do mundo, do panorama cósmico reduzido concentrado em uma pirâmide cristalina de gelo de espaço, onde estão aprisionados, como palha num vidro, para a eternidade formas orgânicas e inorgânicas coisas e pessoas fixadas imperiosamente no sítio na pose no gesto parado, convergentes fatalmente em direção ao foco perspectivo - esta catarse da pintura! Deslocai um nadinha a mão destra suspensa da Annunciata de Antonello e tereis destruído a obra de arte, em sua essência."

"Quanto, portanto, vos disse vos terá convencido que o tema, o fato representado não possui nenhum valor na arte figurativa. Existe uma composição linear, formal, colorística que agrada independentemente do tema. Suponhamos que o tema tivesse de fato importância: seria necessário então, para sua compreensão, uma bagagem de conhecimentos históricos mitológicos etc. que não podem ter nenhuma relação com uma linguagem de formas, e não de palavras. Seria necessário então saber os precedentes do quadro para ver se foi bem feito; ao que compreendeis que, atribuindo muita importância à interpretação psicológica na pintura, querer-se-ia reduzir o artista ao dever de um hábil compositor de pantomima, de cenas mudas, de sobrepostas películas cinematográficas.

Ai por isso do pintor que muito se interessa pelo fato que se lhe ordenou representar: a composição de forma ou de cor que tendia a larguezas sintéticas despojadas de minúcias, perder-se-á pelo contrário num realismo descritivo que acumula os particulares relativos ao fato que, malgrado todo esforço, permanecerá sempre ilustrado - pois transcrito com signos - e jamais expresso artisticamente, pois o campo congênito aos meios do artista não compreendia um conteúdo psicológico, mas tão-somente um conteúdo formal e visual.

O pintor bem pode chegar a ilustrar superiormente o mundo, representando nobres personagens em nobres ambientes, mas a sua será sempre ilustração e não arte.

Eis portanto outra distinção para lembrar: entre arte figurativa e de ilustração, ou melhor, literatura figurada.

E a literatura figurada, evidentemente, não é mais literatura, digo poesia, e ainda não é arte figurativa, isto é, pintura".


Roberto Longhi, Breve Mas Verídica História da Pintura Italiana. Tradução de Eduardo Savella.

Para minha amada morta

Por Miguel Haoni 


Desde sempre, o filme brasileiro precisou lidar com uma instância, concreta e abstrata, chamada “realidade brasileira”. Em virtude do acordo ontológico entre o cinema e o real, pode-se dizer isso de qualquer filme de qualquer país, mas no caso da nossa cinematografia e de seus ciclos históricos, este dado ganha o flagrante relevo de uma ambição, um programa. Trata-se aqui de uma categoria arbitrária, escorregadia, mas que compõe invariavelmente o repertório existencial de qualquer “brasileiro”. Vivemos esta realidade, a experimentamos diariamente com a nossa percepção, sabemos o que ela é, mas não conseguimos dizê-lo. Alguns, porém, estabeleceram aproximações fascinantes: poetas, músicos e poucos - e a cada ano, mais raros - cineastas. 

Para minha amada morta (Aly Muritiba, 2015) é um exemplo sintomático da dupla traição que fundamenta os filmes brasileiros recentes: primeiro, uma traição ao cinema e às suas potencialidades expressivas; segundo, uma traição àquela porção de realidade que o filme pretendia dar a ver. 

Ausência do corpo 

O filme se ambienta no mundo adulto, mas este mundo é como que concebido por um adolescente: tão sério, tão triste, tão profundo... Testemunhamos nele a obediência cega a esta moda do cinema de festivais: vivemos num país sem-graça, povoado por autômatos castrados que falam sussurrando. Temos muita dificuldade em reconhecer este país e seus habitantes. Na criação dos personagens e na ponte que eles estabelecem com o referente material é como se houvesse uma extração arbitrária de tudo o que é verdadeiro e intenso. O que vemos na tela é um desfile de figuras destituídas de humor, tempero, vulgaridade e inteligência: as belezas invisíveis do adulto. 

Reencontramos estes personagens em uma porção de outros filmes brasileiros recentes fundamentados num arrastamento mórbido, na apresentação de afetos destituídos de carne e sangue, que nos introduzem a uma espécie sem sexo nem risco (mesmo na exploração pornográfica), conectada por relações rarefeitas. São corpos frios estes que vemos nas telas. 

Isto poderia ser um projeto dramatúrgico: o personagem sem-graça que leva uma existência sem poesia - mas carregada de um verniz de fácil efeito poético - parece uma forma de síntese decantada do olhar destes artistas sobre o real, na qual a extração de certas virtudes inerentes ajude a potencializar outras. Mas quais? 

Nestes filmes a desdramatização parece reduzida a um cacoete vazio. Para entender isso, talvez seja conveniente recorrer ao cineasta mais imitado desta geração, o português Pedro Costa. A austeridade de Ventura, protagonista de seus últimos filmes, reflete uma depuração: o ator é destituído da totalidade de seus gestos porque interessa ao filme apenas os gestos essenciais. De seu comportamento real extraem-se apenas as partes reconhecidamente vibrantes, as que garantem acesso a um ideal do gesto. Nada disso, porém, aparece aqui. A escola oferecida pelos festivais ensina a arte da diluição estética fantasiada de novidade: tomam pedras brutas como as de Pedro Costa e as esfarelam através de suas imitações. E imitações das imitações, infinitamente.

Branco sai, preto fica de Adirley Queiroz (2015) 

Pensando ainda um pouco mais no cineasta português, a sua influência se prolonga também nos tão prostituídos “processos”, quando flagramos os cineastas - edital debaixo do braço - subindo o morro ou penetrando o sertão maranhense na busca por “vivências e imersões”. Alugam um quartinho, tomam cachaça e comem buchada de bode, mas esquecem que era condição estudar este espaço com um olho de pintor. O mesmo que Costa dedicou às Fontainhas; Estabelecem uma “residência”, mas ignoram que aquilo que o português consegue extrair advém também de uma relação muito genuína com o cinema e sua história. 

Podemos pensar, por outro lado, que essa paralisia, esse acuamento dramático seja uma resposta a certa tradição de histeria no cinema de autor brasileiro. Nos filmes de Glauber Rocha e de Rogério Sganzerla os personagens gritam, filhos de um excesso radicalmente oposto ao que vemos hoje. Mas lá, eles respeitavam uma vulgaridade orgânica à realidade representada, que os atores precisavam conduzir a um limite dionisíaco de inspiração, a uma febre. Isso imprimia nos filmes uma energia de qualidade descomunal. Ouvindo os gritos de Helena Ignez nos filmes de Sganzerla ou de Antonio Pitanga nos filmes de Glauber acessamos a níveis sedimentares, primitivos do real e de um ethos brasileiro. O cansaço do ator no cinema brasileiro contemporâneo conduz tão somente a um teatro muito raso da sensibilidade de seus diretores. 

Voltando, enfim, ao Para minha amada morta acompanhamos em sua extrema contenção dramática a promessa permanente de uma explosão. Promessa frustrada, concentrada nas expressões imutáveis dos rostos dos personagens. O protagonista do filme, Fernando, não possui nuance nenhuma: veste uma máscara única e seu corpo é reduzido à função de sustentá-la. 

Essa ausência do corpo encontra a culminância na deserotização do nu frontal. O close genital não incendeia. Ao contrário, reforça a experiência emasculada do filme. Não existe a menor provocação nestas imagens, elas apenas flutuam, como as outras, na piscina de letargia em que bóia o filme. 

Reflexo também de uma visão ultraconservadora, ao sexo é impresso um caráter negativo, maligno. Segundo o filme não existe prazer, alegria ou beleza no ato sexual e sua energia revolucionária é sufocada por uma culpa burguesa. A este sentimento, por sua vez, é recusada uma possível abertura a um pathos incandescente à maneira de Nelson Rodrigues. 

A insuficiência na “dinâmica” câmera-corpo-mundo atua também nesta espécie de jogo das decapitações, copiado da cineasta argentina Lucrecia Martel. Os quadros organizam impecavelmente todos os dados da fotografia e da direção de arte, mas subordinam o fator humano ao seu preciosismo: na tela, ou temos um rosto em cena ou um corpo sem cabeça.  


Ausência do espaço 

Esta ausência humana encontra eco em outra lacuna: a do mundo. As imagens prometem nos pôr em presença de um organismo urbano extraído da matéria sensível que compõe e conecta periferia e centro. Mas a linguagem adotada no filme bloqueia esse acesso. A periferia curitibana, que o filme pretende dar a ver, é reduzida a uma abstração: um pano de fundo difuso, informe, um espaço ausente, destituído da espessura e densidade da realidade. Não se trata apenas do desprezo pelos sentidos sócio-políticos exigidos por certo realismo crítico, mas pela pura e simples experiência bruta e pulsante da vida - que o filme parece desconhecer. A periferia aparece como um imenso portfólio para o diretor de fotografia, e esta “poética” da lente de foco curto. Tratamento oposto ao que vimos em outros tempos no cinema brasileiro, que sempre tomou a periferia das grandes cidades como espaço privilegiado para as suas imagens. Em Para minha amada morta não acompanhamos um olhar inspirado sobre o mundo, mas o mundo tomado como discurso. Neste regime a periferia vira um conceito de periferia. 


O mundo é recusado como dado empírico e o ar que sopra no filme é o ar viciado destas grandes vitrines de uma vida de plástico, oferecidas pelos festivais. Ali é como se os filmes a serem feitos não mais estivessem em potência nas coisas do mundo, mas na letra fria dos pitchings e mesas de negócios. 

Derivado “com grana” do cinema universitário, Para minha amada morta profissionaliza seus vícios. Apresenta uma atualização do “filme de apartamento” - o filme sem mundo por excelência. Um plano frustra em especial: quando no retorno do culto evangélico, Salvador e Estela, pai e filha discutem ao fundo, fora de foco, entregando uma cena sólida, a câmera escolhe reter-se em Fernando no primeiro plano, no gesto pseudo-poético de fumar na janela. O filme recusa deliberadamente a transpiração em troca da mais desgastada imagem de drama existencial infanto-juvenil. 


Quando o espaço urbano consegue enfim aparecer na tela, causa a impressão de não ser habitado. No filme ecoa o desaparecimento das cidades vivas, tão recorrente no cinema brasileiro recente. Quando o filme vai ao espaço público, em vez de tomá-lo de assalto, como os cineastas faziam desde os irmãos Lumière, ele escolhe seguir as lições dos professores da faculdade de cinema: fechar o espaço, esvaziá-lo e substituir as pessoas por figurantes. Pelo menos é isso o que nos dizem as imagens. 

Essa ausência talvez seja explicada pelo fato de que pelo menos nos últimos vinte anos o cinema foi tomado por equipes de publicidade. Profissionais “vacinados” nos macetes dos direitos de imagem insuflaram nos nossos cineastas-empresários um pânico jurídico que os coage a extirpar as pessoas reais de seus planos. Com a burocratização, o filme brasileiro não pode mostrar os brasileiros e na ausência de uma escola de figurantes, os filmes ganham este pano de fundo de telenovela. São filmes paralisados pelo medo de ir à realidade. 


Não que seja uma obrigação a captura direta do espaço real. Por muito tempo filmou-se em estúdio na Alemanha, nos EUA, na Itália e em muitos outros países, e aquelas reconstruções foram essenciais para a investigação de alguns estratos do real. A mentira é uma das formas mais interessantes de dizer a verdade. Pensemos em Vincente Minnelli e o vigor com que a vida flui na saturação de suas construções. Ou, para não irmos muito longe, pensemos nos últimos documentários de entrevista de Eduardo Coutinho em que o depoente é isolado em um fundo quase neutro, de estratégica simplicidade, para que toda uma experiência de mundo se desdobre com a sua fala. Da mesma forma que nos trabalhos mais interessantes de desdramatização do ator, a redução espacial abre um novo campo de experiência sensível. O que, novamente, não é o caso. 

Para minha amada morta é “cinema da idéia”: idéia pronta, protocolar, sufocada pelas certezas. Por exemplo, a família que representa o lado mal, traidor e hipócrita do filme é também evangélica. Um dado gratuito, superficial, concebido como que para atender a fúria das retóricas engajadas de sua clientela. Que cineasta é esse que consegue ir aos cultos evangélicos da periferia e não nos trazer rigorosamente nada do seu sentido e da sua beleza, nada além daquilo que já “sabia”, que já havia concebido e testado em labs de roteiro? Pensando a maneira do crítico André Bazin, a virtude mais bela do cineasta talvez seja, ainda, a humildade. No trato com o real, falar menos e ouvir mais. 

Neste sentido, parafraseando Tom Zé, o cineasta brasileiro está, cada vez mais, “parecido com um machado, que fere o sândalo e ainda quer sair perfumado”. Desrespeita como pode a matéria do filme, mas sempre a usa como blindagem discursiva: neste caso, reduz o morador de periferia a uma caricatura grosseira enquanto se pretende a “voz do povo”. 

Para minha amada morta é concebido como puro enunciado. Não convida, em momento algum, o espectador a jogar com ele, por mais que se trate de um thriller com a pretensão de dialogar com a tradição do gênero. O filme não equilibra as energias na sua duração, não articula o encadeamento dramático no tempo: emite uma única voz, numa única intensidade. A vida, em sua complexidade inerente, não é convidada a penetrar nessas imagens. O diretor não é mais um observador, mas o rígido executor de uma ordem do dia que vai ao mundo com o filme pré-fabricado, e converte o imprevisto, que, historicamente, foi o maior aliado dos cinemas pobres, em seu inimigo. 

Ao mesmo tempo, cava uma distância gigantesca de sua própria dramaturgia: o filme não se posiciona na trama, não arrisca uma escolha. Todas as arestas são polidas, tudo é amortecido. Não sabemos nada sobre os personagens, nada é acessível, apesar de tudo se encontrar na superfície. O enredo se cola ao protagonista, mas não existem estratégias formais para que o espectador atravesse a experiência junto com ele. Não somos conduzidos a penetrar o drama. Podemos acreditar que, já que o filme não se passa no mundo, ele deveria ao menos se passar na cabeça doentia de Fernando, mas esse regime de platitude vaporosa elimina o peso que as ações deveriam ter. No que concerne ao motor central do filme - a traição -, será mesmo que fazer o viúvo cheirar os vestidos e organizar os sapatos da falecida esposa é suficiente para nos dar a dimensão da importância dela na vida dele? Será mesmo que aquelas poucas imagens de vídeo são suficientes para que o espectador embarque numa vingança doentia? Outro problema: existe uma promessa de relação interessante entre Fernando e Estela (minha personagem predileta), mas que esbarra nesse jogo de insinuações: nasce uma amizade entre eles? Trata-se aqui de atração física? Quanto maiores as promessas, maiores as frustrações. E não se trata do cultivo da ambigüidade no sentido da riqueza e complexidade dos significantes, mas sim no sentido da pobreza, da fragilidade na condução dramática. O filme é como alguém que só se comunica por frases vagas, e comercializa uma sensação de inteligência. É uma comodidade fantasiada de desafio ao receptor. 

Hipertrofia do quadro técnico 

Em virtude desta pobreza na dramaturgia dos corpos, na ausência de um trabalho com o espaço, na falência do olhar de síntese que o cineasta lança para o mundo, o filme escolhe “compensar” com a intervenção paquidérmica de seus colaboradores. 

Reencontramos aqui a estridência da bem-feitura publicitária. O cinema do “plano bonito”, que toma a complicação cosmética do quadro como um fim em si e que dispõe de uma maquinaria sofisticada para tornar uma imagem inócua em algo interessante, rentável. O filme como fábrica de belos frames desligados de um percurso visual, destituídos de drama. 

Imagens cujo sentido é o exato oposto daquele que Jean-Luc Godard localizava em Amargo triunfo (Bitter victory, Nicholas Ray, 1957) quando escreveu: “Por que razão ficamos gelados perante as fotografias de Amargo triunfo, embora saibamos que são as fotografias do mais belo dos filmes? Porque não exprimem nada. E por boas razões... a fotografia de Curd Jurgens, perdido no deserto de Tripoli, ou de Richard Burton ridiculamente vestido com um albornoz branco, já não tem qualquer relação com Curd Jurgens ou Richard Burton na tela. Um abismo que é todo um mundo. Qual deles? O do cinema moderno.” Cada quadro em Para minha amada morta promete um filme melhor do que aquele que experimentamos na duração de sua projeção. 

Isso deriva em primeiro lugar da velha seqüestradora do cinema brasileiro: a “fotografia belíssima”. Aqui o filme tangencia a moda do “longo-plano-seqüência com câmera fixa”, alegria dos curadores internacionais. Um bolo de noiva: impressiona, mas é oco, sem substância, intragável. No lugar da luz, o look; e no lugar do mundo, a direção de arte, cuja disposição dos objetos em vez de oferecer um acesso profundo ao universo dos personagens atende perfeitamente às ambições de perfumaria do filme. 

Enfim, a nova estrela do cinema nacional: o design de som; cuja colaboração atua como uma grande muleta para o acuamento das cenas. Destaco pelo menos duas intervenções de desmedida agressividade: a apresentação de Fernando no culto evangélico, em que a cena é interrompida por uma mistura de turbina de avião com liquidificador; e o primeiro longo plano-sequencia em que se desenrola mais um dos muitos diálogos esvaziados (nos quais pesa esta distância entre cada linha do texto, como se a máxima distensão garantisse densidade ao recito). Os personagens dialogam, a câmera se concentra no rosto de Fernando e antevemos mais uma promessa de transbordamento das tensões. A ação física é então transportada para o som: o ator em primeiro plano remove pedras com uma pá, mas em vez de mostrar o jogo que este corpo vai desenhar com a ação no espaço (lugar essencial no cinema), ele transfere esta responsabilidade. No alcance insuficiente do olhar do diretor, os ruídos se encarregam à função de imprimir drama e intensidade ao filme. O resultado é a cristalização do refrão tão comum no cinema universitário: um filme nitidamente “resolvido na pós”. 



Sabemos que é preciso generosidade com os jovens cineastas brasileiros. O incentivo e o apoio são fundamentais para que este cinema possa se fortalecer. Mas não a qualquer preço. Pelo menos, não ao preço da desonestidade. Não me parece saudável a unanimidade em torno da promoção deste assassínio da sensibilidade e da inteligência no nosso cinema. Por mais que se pense estrategicamente, que da quantidade virá a qualidade, à maneira dos cinemas industriais e dos mercados já consolidados, não é justo ignorar que a falta de talento senta no trono do cinema brasileiro há pelo menos 20 anos. Desde a “retomada” celebramos filmes ruins na espera que os bons apareçam. A algum tempo o curto-circuito da mediocridade, atrelado ao grande circuito internacional, se consolida como um poder no nosso meio cultural. Para minha amada morta é apenas uma face deste processo. 

Enfim, cinema não se faz com a técnica (com muito ou pouco dinheiro). Cinema se faz com a alma. E no caso do cinema brasileiro, com a realidade brasileira. 

Pelo menos se fazia.

Breve mas Verídica História da Pintura Italiana #2

"Há uma bela página sobre a pintura toscana em Noces de Camus, a propósito de uma viagem em nosso país. O pintor toscano não pinta um sorriso efêmero ou um pudor fugaz, não pinta a saudade ou a espera, mas relevo de osso e calor de sangue. Destas faces coaguladas em linhas eternas, some para sempre a maldição da alma. 'As custas da esperança. Porque o corpo ignora a esperança, este não conhece senão o pulsar do sangue. A eternidade que lhe é propria é feita de indiferença. Como aquela Flagelação de Piero della Francesca na qual, num pátio recém-lavado, o Cristo justiçado e o carnífice de grossos membros deixam surpreender o mesmo destacamento. Este suplício, de fato, não tem séquito. E sua lição se detém na moldura da tela. Porque comover-se por quem não espera o amanhã?' Esta impassibilidade e esta grandeza do homem sem esperança é justamente o que previdentes teólogos chamaram de inferno. 'E o inferno, como todos sabem, é também sofrimento da carne. Nesta carne detém-se os toscanos, não em seu destino...'. São os dias em que Camus prova o tom de seu Estrangeiro, e é sobretudo tocante que um dos mais aclamados escritores do nosso tempo queira ver um romance existencialista, seu primeiro romance existencialista, na estupenda pala de Urbino. Um trecho sugestivo, dirão, mas que ao menos a propósito de Piero, depois de haver entrevisto grande parte da verdade, continua em direção do equívoco. Como ao equívoco termina por tender, mesmo se o princípio polêmico é legítimo, o impulso que Berenson comenta no último diário, Sunset and Twilight: "Faz alguns dias me veio a feliz ideia de escrever sobre o favor popular do qual usufrui neste momento Piero della Francesca e de explicar essa sua popularidade. Eu pretendia descartar vários esnobismos intelectuais que estão na base da compacta admiração por ele, muito devida, na minha opinião, à necessidade de justificar um culto análogo por Cézanne...". É o impulso que leva Berenson a compor o seu Piero della Francesca ou da arte não eloquente, um elegante, fascinante discurso que se perde um pouco no vazio, na tentativa de chegar à questão considerada fundamental que, além das qualidades técnicas, seja sobretudo a falta de sentimento de Piero, a falta de expressão de suas personagens a impressionar. 'Suas figuras se contentam em existir. Existem e basta. Não se dão nenhum trabalho de explicar, de justificar sua presença, de causar a simpatia, o interesse do espectador. Faz cem anos Jacob Burckhardt, falando de certas palas de altar do último Bellini, as chamava de Existenzbilder, quadros de existência. Eu hoje quase não ouso servir-me deste termo pelo medo que venha a ser confundido com o existencialismo, ou melhor, com uma filosofia que não entendo. E no entanto são assim as grandes artes figurativas...'. Também Berenson aferra grande parte da verdade, mas depois procura chegar a uma conclusão que lhe é distante. A Madonna com o Menino na pala de Brera, a cujo encanto Berenson está sujeito, é feita nem mais nem menos como a Flagelação de Urbino, não com a falta de sentimento de Piero, mas sim com sua extraordinária capacidade de sentir, a integrissíssima fé nas regras da execução pictórica como regras morais. Entre romance existencialista e quadro de existência, cabe procurar um ponto intermediário. Os temas que de vez em vez Piero escolhe, uma flagelação ou uma Madonna, a celebração de um tirano ou uma ressurreição, é sempre superado pelo férvido transmutar-se da ciência em arte, uma arte que eternize a beleza, a completude, a harmonia do criado."

Oreste del Buono, La Luce del Presente.

"Ou vede a Ressurreição de Cristo, em Borgo San Sepolcro, a pátria do grande pintor. Pensai o que teriam feito Botticelli ou Sassetta. O Cristo volejaria no ar curvando-se flexível com o auxílio das asas dos drapejos flamulantes; os quatro guerreiros fugiriam ritmicamente em pares pelos dois lados do quadro com quatro manteletos esvoaçantes. Aqui, pelo contrário, o intento é o de assentar diante de vós no espaço uma construção de corpos humanos imóveis, isto é, em relação arquitetônica, e de planos. O Cristo e os guardiões formam juntos uma composição piramidal intangível. Olha se o Cristo continuasse sua ascensão ou se um só guardião despertasse! A relação estética seria perdida e vós ali deveis por conseguinte comprazer-vos na unidade deste volume inalterável. E, se desejais desfrutar de algum particular, observai a canelura arquitetônica no torso de Cristo - eixo da composição - e os guerreiros ligados pelos pés ao centro da pirâmide, revoltos como quatro pétalas abertas de um volume recolhido, como quatro gomos de um fruto redondo ligados ainda por um filamento na base. E a cor? O seguinte: a pirâmide se torna triângulo variegado de zonas de discos de placas onde as cores se correspondem misteriosamente. O intento colorístico, de resto, se revela na perspectiva sobre-elevada das colinas escuras, concebida para fornecer alvura colorística oportuna ao corpo de Cristo - marfim envolto de drapejos cor-de-rosa - que de outro modo não teria destaque sobre o céu, no qual retornam os tons claros de azul estagnado de nuvens estriadas de violeta sufocado e de rosa!

Mas criações ainda mais absolutas Piero nos deixou nas histórias da Verdadeira Cruz, que transmutaram as paredes do coro da Igreja de São Francisco de Arezzo em imensas tapeçarias placida e largamente variegadas, abrindo no próprio tempo visões amplíssimas e seguras de distâncias ensolaradas. Lá, quando a arte figurativa for para vós qualquer coisa de ativo e de substancial, podereis receber as sensações mais altas que as de qualquer outra criação pictórica, antiga ou moderna.
  
Na Derrota de Cosroé deveis de imediato sentir o espaço murado pelas infinitas intersecções do movimento humano, movimento, bem entendido, não da ação, o que significaria dizer linha funcional, mas movimento partido deslocado angular, tal qual foi criado por Paolo Uccello na Batalha de Santo Egídio; aquilo que dá a esta composição colorística o aspecto de uma muralha ciclópica de maços poligonais de grandeza e de cor diversas, aplacada somente no alto no marfim da lança que se imerge no leite da nuvem, à esquerda, e à direita no estandarte largamente cruzenfaixado e naquele de Cosroé no qual o negro da figura mouresca imprime-se sobre o branco com efeito de cor ao menos tão moderno - quanto vós, infelizmente, não sois, pardon, ainda capazes de compreender.

Eis o Sonho de Constantino, uma das maiores criações do gênio italiano. Eixo da composição é o mastro liso da tenda que se expande num cone amarelo avermelhado variado de poucas pregas cilíndricas: enquanto em baixo se entrevê a massa enquadrada - cobertor vermelho lençol branco - do leito, e despontam cândidos bulbos de metal sobre as cabeças dos guardiões: massas de cor, de forma, planos de luz, coincidem numa liberdade superior de geometria não-euclidiana."

"E, de um só golpe, tudo se transmuta em vastitude de composição colorística. Assim a monumentalidade se torna superfície: o cavalo escorçado se expande num largo disco claríssimo; sobre os grandes espelhamentos marmóreos estendem-se os damascos dourados, as vestes violeta ou marrom, listradas de arminho, enquanto à esquerda nas bacias compreendidas entre as encostas inclinadas de duas cervizes humanas versa-se o líquido verde de uma colina tão distante - como forma, tão próxima - como cor!

A obra-prima absoluta é, todavia, a Derrota de Magêncio. Se haveis compreendido que alegrias nos possa dar a cor distendida em largas superfícies de repouso - 'o repouso da cor' - se vós mesmos agora sabeis repousar sobre estas pradarias de tintas várias como as estações podeis compreender a Derrota de Magêncio seguindo a equivalência verbal que tentei alhures e que repito-vos aqui, não sem medo de parecer algébrico (se a álgebra é difícil): 'Lenta irrigação segura dos arrozais da pintura. Estesura de homens e de animais esplanados na achatada colorística quase sem saliências. Escorços rematados, troncos aplanados, joelhos partidos, tamancos torneados, branco e preto numa silenciosa partida de xadrez. Poços redondos de forma soldam-se, tapam-se colinas raspadas e manchadas, hastes e lanças que irrigam à esquerda de leite de âmbar e de ébano líquido o prado azul do céu que nuvens bordadas de luz reparam, enquanto à direita estende-se à secar a desconfinada pétala rosa do estandarte vitorioso do derrotado, e as incorruptíveis esferas de marfim pálido procedem movediças sobre os elmos metálicos até que na luz abaciada tornem-se sobre o peito cerúleo do céu, medalhas - de valor colorístico!'. Quando fordes capazes de dar sentido a cada palavra desta restituição literária de uma obra pictórica poderei crer que tereis finalmente compreendido o que precisamente seja o encanto mágico da síntese prospética de formacor."

Roberto Longhi, Breve mas Verídica História da Pintura Italiana. Tradução de Eduardo Savella.

Faux Raccords



Por Alain Bergala 

De tanto repetir as grandes sentenças de Rossellini contra a montagem (“as coisas estão aí, por que manipulá-las?”), quase acabamos por acreditar na sua palavra e por fazer dele um campeão do plano-sequência e da recusa da montagem, o que a maioria dos seus filmes, até a sua época-televisão, contradizem formalmente. Seu primeiro curta-metragem, Fantasia Sottomarina, é o mais anti-baziniano dos pseudo-documentários: uma montagem de pura manipulação associada a um comentário antropomorfista esforça-se para transformar em drama, o amor contrariado de um ignóbil polvo, esses planos de pacíficos peixes filmados em um aquário de salão. Uma cena como aquela de Europa 51 onde Ingrid Bergman descobre na usina a realidade física do trabalho na linha de montagem decorre de um uso frenético e demonstrativo da montagem, um efeito de abstração e de aceleração, que deve mais ao cinema russo dos anos 20-30 que ao cinema dos anos 50. Trata-se aí certamente de dois casos extremos, mas ao se observar mais atentamente, por exemplo, os quatro grandes Bergman-filmes dos anos 50, é perfeitamente claro que eles empregam todas as figuras da montagem clássica e que um filme como Viagem, com os seus 465 planos, é igualmente fragmentado, de igual duração, que qualquer filme da época, enquanto que ele tem um programa narrativo muito menos carregado. 

Rossellini, na verdade, não só não se opõe mais a montagem como ele nunca recusou nada do lado da “manipulação” do real (transparências, trucagens ópticas, cenários falsos, efeitos de zoom,) cada vez que ele julgava que essa era a boa maneira, e a mais direta, para o filme que ele estava a fazer, de ir ao que era para ele, nesse momento, o essencial. O cinema de Rossellini é um cinema que pode assimilar tudo, plano-sequência e montagem de efeitos, profundidade de campo e planificação das lentes de longa distância focal, imagem real e imagem trucada, sem perder no entanto a sua linha e sua identidade. A moral de Rossellini nunca foi aquela do meio: é simplesmente, para ele, o que dá do mundo, em um momento preciso, uma visão e uma consciência justas. Se, na sequência da usina de Europa 51, ele pensa que é uma hipermontagem ao estilo russo que traduzirá melhor a tomada de consciência de Irène do horror do trabalho na linha de montagem, essa montagem acelerada, mesmo já muito retro, será para ele nesse momento o bom meio. Inversamente, é com a mesma soberana indiferença no que diz respeito às utilizações e às modas em matéria de linguagem cinematográfica que ele inventará, se necessário, uma nova forma, mesmo que ela seja chocante, para ir até o fim do seu projeto, se ele sente que as figuras em vigor arriscam levá-lo, através das representações do mundo que elas comprometem enquanto formas de linguagem, a trair a própria essência do novo modelo que ele tenta construir. Nos anos 50, com os Bergman-filmes, fora esse o caso do faux raccord.

Observando de mais perto, na realidade, não é a montagem em si que o desagrada — acontece frequentemente dela o agradar — é a dupla obrigação que ele encontra de utilizar o raccord no sentido da narração (como figura de base da ligação entre dois planos) e neste da sutura imaginária (como figura que permite acrescentar um fragmento do real à visão subjetiva de um personagem). Não há bom raccord, nesse começo dos anos 50, senão aquele que vai no sentido da homogeneidade do universo ficcional. Pois Rossellini está em vias de conceber uma outra relação com o mundo de suas criaturas, um universo em que a consciência do personagem, nestas circunstâncias, uma mulher, quatro vezes interpretada por Ingrid Bergman, é confrontada a duas instâncias opacas no seu imaginário mas que são, provavelmente, partes relacionadas, sem que ela saiba, para conduzi-la in extremis à ascensão imprevisível da sua verdade. Por um lado, blocos de realidade muito brutos, muito confusos, ilegíveis (mais frequentemente caóticos, que brotam, ou que estão em fusão) aos quais, apesar dos seus esforços, ela não consegue dar sentido, em que ela sente claramente que algo lhe acena, mas dos quais ela é incapaz de decifrar o enigma. Por outro lado, algo que a olha e a espera, sem jamais guiá-la nem tranquilizá-la de seus sofrimentos, uma instância da qual o espectador pode sentir de longe a presença supra-humana, mas da qual ela nem sequer suspeita. 


Para que essa heterogeneidade constitutiva não seja desnaturada pela homogeneização inerente à montagem como ligação e sutura, seria preciso que sua irredutibilidade se manifeste até na própria enunciação. Ou seja, ele precisava inventar o faux raccord como não-raccord ontológico. Talvez pela primeira vez na história do cinema, o raccord iria indicar a heterogeneidade fundamental de dois planos de realidade que ele colocava lado a lado para mostrar a desunião, o hiato, a irredutível heterogeneidade, a não-suturabilidade ontológica. Como um enxerto que designaria a incompatibilidade do “oeil” e do “sujet”, para utilizar os nomes que damos na botânica para o garfo e a planta que recebe o enxerto. É provavelmente a chegada tão improvável quanto inesperada de Ingrid Bergman na sua vida e no seu cinema que lhe dará a ideia, o modelo e a audácia, nesse começo dos anos 50, de se recusar radicalmente a suturar o que deve permanecer insuturável entre essa grande estrangeira vinda de um duplo alhures (o Norte e o cinema hollywoodiano) e o que ela vê ou atravessa sem poder o compreender: tal como o fragmento da rua napolitana em Viagem, a pesca de atuns em Stromboli, o trabalho na linha de montagem em Europa 51, etc.

Essa questão do raccord é ainda mais decisiva para compreender a revolução do cinema rosselliano, ligada ao seu tema fundamental, que sempre foi aquele da alteridade. O questionamento do raccord nunca foi nele (não mais que em Godard hoje) uma pura questão formal, mas o motor de seu trabalho de cineasta e de suas contradições de homem. Desde Paisà, grande parte dos roteiros rossellinianos giram em todos os sentidos em torno dessa questão: como raccordar o que é outro? 

Na sua vertente humanista, generosa, ecumênica, pedagógica, Rossellini não cessou de pregar a crença no bom raccord, com a possibilidade de uma total identificação com o outro, com a reversibilidade de posturas e de sentimentos que deve permitir se colocar no seu lugar, de compreendê-lo e, por conseguinte, de convencê-lo. Dos seus filmes de guerra até as séries televisivas, uma grande fascinação pela reversibilidade atravessa toda a obra de Rossellini. Em Un pilota ritorna, o mesmo piloto que, no começo do filme, bombardeia o território inimigo se encontra mais tarde no solo, bombardeado, por sua vez, pelos aviões do Eixo e compartilhando as angústias e os sofrimentos das formigas, as mesmas que ele sem dúvida provocou outrora, quando o formigueiro humano era, para ele, somente um alvo. Todos os grandes “persuasivos” dos filmes televisivos do fim de sua obra, de Agostinho de Hipona aos Apóstolos, passando por Pascal, começam por se colocar no lugar do outro, a adotar seu ponto de vista para melhor convencê-lo no final. Entre os dois, é preciso citar a maioria de roteiros rossellinianos trespassados por esses grupos de homens em marcha que trabalham com a identificação com o semelhante. Da parte da crença de Rossellini no bom raccord, eu isolaria somente um filme, De crápula a herói, cujo roteiro constitui uma verdadeira pedagogia do raccord: Emmanuele Bardone, pequeno vigarista sem talento, se encontra confinado em uma prisão onde os outros prisioneiros o tomam por um herói da resistência. De raccord pontual a raccord pontual com os outros segmentos dessa imagem do outro que lhe remetem seus companheiros de cativeiro, ele vai acabar por ser absorvido totalmente, escolhendo viver literalmente a morte do outro, numa identificação definitiva à imagem desse General della Rovere a quem tudo, no início, parecia lhe opor.

Eu não penso que os filmes fundados sob essa crença no bom raccord, se eles são mais homogêneos e bem-pensantes que os outros, contam hoje entre as obras mais vivas de Rossellini. O grande cinema de Rossellini, aquele que procura e encontra os novos modelos, inéditos, os novos ritmos, puramente cinematográficos, para falar a partir de uma nova relação com o mundo, aquelas dos tempos modernos nascidos da experiência irremediável da guerra, passa pelo mau raccord, o raccord impossível. O cinema de Rossellini nunca é tão fulgurante de justeza e de modernidade que quando registra o hiato entre dois planos, a irredutibilidade dos fragmentos de realidade que cada um arrasta consigo, contudo, com o mesmo nível de convicção. A verdade, a desgraça ou a graça — que, para Rossellini, são mais ou menos a mesma coisa e que, em todo o caso, possuem o mesmo mecanismo — se encontram precisamente ao se revelar nessa fratura que abre o filme ao heterogêneo “não reconciliado”, para parafrasear um título de Straub. Karin, a estrangeira de Stromboli, passa todo o seu tempo no decorrer do filme a procurar um bom raccord, qualquer um, em qualquer lugar, em qualquer momento, com qualquer que seja nessa ilha, uma única pessoa bastaria para salvá-la da louca solidão em que está presa, mas ela não a encontrará lá onde ela a procura, horizontalmente. É atravessando a ilha para ir procurar do outro lado, sempre horizontalmente, o barco que poderá salvá-la, que ela vai encontrar sem ter procurado o bom raccord que a esperava, vertical, algo como a comunicação absoluta, o raccord perfeito. Irène, na primeira cena de Europa 51, recusa conversar com seu filho que procura desesperadamente um raccord com ela, qualquer que seja, e que se suicida se jogando no vão da escada. Na sequência desse trauma, ela vai tentar, durante todo o filme, todos os tipos de raccords heterogêneos que se mostram muito rapidamente, a cada vez, independentemente do seu amor e sua boa vontade, ineficazes e impossíveis: nenhum consegue impedir a morte ou a desgraça daqueles que ela se aproxima e que ela queria salvar. É somente no isolamento da célula psiquiátrica, quando ela terá violentamente renunciado qualquer raccord com o mundo exterior, que ela encontrará, ela também, o raccord absoluto e sua verdade: “Para estar ligada a todos, é preciso que eu não esteja ligada a nada.” É procurando um raccord impossível com Nápoles, Pompeia e seus antigos mistérios que a mesma Ingrid Bergman, que se chama dessa vez Katherine (Karin, Irène, Katherine, eis um cineasta que dá continuidade ao significante), também está, sem o saber, no caminho para reatar o laço que ela sente irremediavelmente se desfazer com seu grande inglês desengonçado, seu marido. 


Seria preciso um longo ensaio para analisar um tanto quanto seriamente essa grande questão da alteridade e do raccord em Rossellini. Eu falei até então, sobretudo, do Real (mesmo na qualidade em que esse tema está destinado a não se realizar) e do grande Outro, mas meu último exemplo introduzirá os múltiplos avatares do pequeno outro (e Deus sabe que eles existem) nos filmes de Rossellini. Eu os pegarei em dois curtas-metragens, obras consideradas “menores”, obras de divertimento onde a vigilância sendo menor, a censura o é também frequentemente. Trata-se da questão, nos dois casos, do raccord com um pequeno outro, ele também considerado menor, um animal doméstico, como revelador dos desejos e da culpabilidade dos personagens. Em A inveja, adaptado de Colette, a mulher tem ciúmes do raccord muito bom do homem com sua gata e irá cometer até uma tentativa de assassinado contra o animal. Em um longo afrontamento em tête-à-tête, em campo-contracampo, a alteridade da mulher e da gata são negadas, elas são filmadas igualmente, como semelhantes, simétricas no que diz respeito ao amor pelo homem: o ciúme nasce precisamente desse sentimento de equivalência, dessa possibilidade de identificação com o outro sem a qual não poderia haver rivalidade. A identificação da mulher com o animal que lhe assemelha, mesmo sendo de uma outra espécie, é um “mau raccord” que resulta no crime e na culpabilidade. O bom afeto, em Rossellini, só saberia se articular através da franca alteridade, aqui o homem e a gata, ou através da fusão de identidade, jamais pelo entremeio. Em Ingrid Bergman, terceiro episódio de Nós, as mulheres, um home movie incrivelmente moderno filmado por Rossellini em 1952 na vila do casal em Santa Marinella, Ingrid tem um raccord muito bom (un très bon raccord) com seu bom e corpulento cão Lajocono, que encarna para ela, visivelmente, uma figura masculina, doméstica e protetora, tranquilizadora, ela lhe fala aliás como a um companheiro. O mesmo não acontece com a galinha da vizinha, que ela acusa de devastar as suas rosas e que ela vai sequestrar, colocando-a no armário da cozinha, para poder receber tranquilamente seus convidados. A vizinha, ela própria se parecendo com uma galinha, vem reivindicar seu animal: Ingrid Bergman finge-se de inocente quando ela é traída pelo animal que começa a gritar, no momento oportuno, no armário. A vizinha indignada recupera seu bem e vai embora tratando-a como uma ladra de galinhas em frente aos seus convidados. Aí também, a alteridade radical entre a mulher e seu cão é a garantia de um bom raccord, o péssimo desejo e a culpabilidade que daí resulta ligam-se ao que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente, ou seja, a outra mulher equiparada a uma galinha. Através desses dois roteiros animalescos, bastante simples, manifesta-se claramente uma constante da problemática rosselliniana e de seu bestiário.


No cinema de Rosselini, a alteridade é ora negada pela possibilidade de uma total identificação com o outro como semelhante (por uma vontade de crer na perfeita reversibilidade das posturas e dos sentimentos), ora dada como irredutível, e nesse caso ela se torna enigma, fonte de mal-estar e de sofrimento, mas também é a causa da reflexão, de bruscos progressos da consciência, de mutações. O que permanecerá sempre mau, incompreensível, sinal de perturbação e decadência aos olhos desse homem que, contudo, tentou toda a sua vida tudo compreender, é o que vem perturbar essa separação da qual ele precisa que permaneça sempre bem definida entre o outro como alteridade e o outro como semelhante. O raccord, para Rossellini, deve manifestar claramente essa bipartição. Ele deve ser justo se ele une o semelhante, falso se ele une a alteridade. Entre os dois, não há nada a negociar nem a transigir: é sobre isso que ele não quer saber de nada. 

O texto Faux Raccords foi extraído do livro Roberto Rossellini, publicado em 1990, sob a direção de Alain Bergala e Jean Narboni. Tradução: Letícia Weber Jarek.

Breve mas Verídica História da Pintura Italiana #1


"Comecemos com a pintura. Neste ponto é necessário recordar que faço retroceder o princípio da decadência de Veneza ao ano de 1418. Ora, Giovanni Bellini nasce a 1423 e Tiziano em 1480. Giovanni Bellini e seu irmão Gentile, dois anos mais velho, fecham a série de pintores religiosos de Veneza, e o mais solene espírito de fé religiosa anima ainda todas as obras de ambos. Por outro lado, não há sombra de religião em todas as obras de Tiziano, nem traço de simpatia, seja por si mesmo ou por aqueles que pintava. Seus vastos temas sacros não são senão motivos para uma demonstração de retórica, de composição e de cor. E suas obras menores estão geralmente subordinadas à exigências retratísticas. A Madonna na Chiesa dei Frari não é senão uma figura mundana introduzida no quadro como ponto de conjunção aos retratos dos vários membros da família Pesaro que a circundam. Ora isto ocorre não porque Giovanni Bellini fosse homem religioso e Tiziano não. Tiziano e Bellini são os representantes das escolas nas quais operam, e a diferença de seus sentimentos artísticos é uma consequência da diferença, não tanto de seu caráter, quanto de sua primeira educação. Bellini crescera na fé, Tiziano no formalismo, e nos anos que correm do nascimento de um àquele do outro morre a religião vital de Veneza." 

John Ruskin, Pedras de Veneza. 


"Examinai agora as quatro Pietà e lhas ordenai em progressão. Em cima à esquerda está a Pietà do Museo Correr, a mais antiga. Fio de ferro lento e tortuoso do contorno; rugas de carne e dos drapejos: definição da psique dolente com o meio acurado da linha. 

A Pietà do museu de Brera é quase contemporânea. O metal de Padova venceu os caracóis de lenho de São João, as lâminas dos drapejos, as bocas abertas em tomento silencioso. Mas como já se desfaz mais largamente o mármore do peito de Cristo! 

É necessário todavia passar à Pietà do Palazzo Comunale de Rimini para ver quase realizada a renovação. Eis o quadro todo ocupado de tonalidades alternadas colorísticas claras e escuras: eis os corpos tornados de uma substância mais viva e respirante, como de açúcar, onde a sombra se deposita maciíssima, eis o modelado arredondar-se como nas cabecinhas angélicas: eis a cabeleira de lenho encaracolado passar por melenas largas e fusas: eis o corpo infundir-se de âmbar e as vestes fazerem-se de rosa.

Na Pietà de Berlim a largueza é ainda maior. Uma unidade estrutural funda o coro de Cristo e dos anjos em poucos planos lentíssimos. Como se -conglobam- as três cabeças no alto, como se fundem os bracinhos aos braços do morto! Que lentidão de curvas brotadas nos ombros, nas asas: e detrás das asas o engaste denso e vibrante de um céu turquesa! - e também, inevitavelmente, que repousada dor. Pensai nisto se quiserdes compreender como o estilo figurativo é o que determina as expressões psíquicas igualmente difusas em toda a composição.

Da primeira Pietà a esta última vimos o tormento agudo lancinante transmutar-se em repouso sentimental, em calma depois da dor, em resignação pacata e lenta. Ora é a linha que desaparece para dar lugar aos planos e à cor: nada além disso. Este é o grande segredo portanto: saber fazer coincidir as grandes razões do estilo com os grandes sentimentos humanos. Só a linha pode exaltar e sublinhar o tormento: só a cor e a planificação podem dar a calma silente do espírito. Mas compreendei também o seguinte: não se pode ir além desta unificação sentimental de todas as figuras do quadro, isto é, não se pode andar em direção do drama produzido pelo contraste psicológico: isto o estilo repugnaria. Na Pietà de Brera não poderia haver uma pessoa resignada e calma (plano e cor) ao lado das que sofrem (linha): na Pietà de Berlim os anjos não poderiam mais chorar (caretas lineares). Isto vos preludia a explicação da eternamente florida calma de todos os grandes venezianos que procedem do segundo estilo de Bellini.

Uma outra obra vos mostra melhor a renovação de Bellini. É a Transfiguração de Cristo no Museu de Nápoles. Pensai de modo geral na composição toda descentrada e de perfil do Cristo no Horto, e vedes como foi transformada nesta solene -centralidade- compositiva onde o Cristo forma com os apóstolos embaixo uma pirâmide humana análoga à ressurreição de Piero no Borgo San Sepolcro. Pensai numa ordem mais alta que o antigo e que o novo modo que Bellini tem de ver o mundo. Lá dizia: para mim o monte desejará ser um organismo robustamente estudado em sua ossadura lapídea como um organismo humano: o céu, em cima, uma cavidade onde vaguearão nuvenzinhas nervosas sempre mutáveis de contorno; sobre o terreno rachado o tronco desenhar-se-á pungente em toda a esilidade aguda de suas fibras salientes enquanto, ao lado, o homem encurvar-se-á também ele em pose afilada seu contorno vivaz e articulado. Era o desenhista quem falava. Mas agora fala o colorista, o prospético: para mim o terreno será massa de húmus colorístico marrom manchado de retalhos verdastros que se achegará ao céu, não mais cavidade neutra mas faixa azul com faixas brancas de nuvens, enquanto o tronco será caractere marrom decalcado sobre marrom mais claro, e o homem dois retângulos, azul e vermelho ( está parado) dois trapézios (ele se move) estreitos ao húmus do solo e unidos com formas mais distantes por meio de suas fronteiras divisas em planos macios. Compreender estes dois solilóquios poderia bastar para fazer-vos entender a divergência de visão e de concepção entre o desenhista e o sintetista."


"Uma olhada em algumas das peças de altar do período maduro de Bellini. A Madonna com seis Santos na Academia de Veneza. A função dos vastos fundos variegados de paisagem é aqui substituída admiravelmente pela arquitetura. Estesura lenta de abside dourada - o fundo de ouro dos Seneses - o aplanar-se de lesenas cândidas, de tons alabastrinos, espelhamentos polícromos de mármore. Ali se entrevê calma em seu lugar a forma humana convergindo em dois planos em direção da Virgem e do Menino. Posições estáticas e, todavia, extáticas. Ardor benigno e flamejante de vida nos santos: sob uma colherada de neve alpina cintilante ao Sol. Os anjos sonantes, irmãos espirituais daqueles de Melozzo. E a matéria pictórica exala incensos sempre mais agudos dos campos de cor.

No famosíssimo Tríptico dei Frari: composição única de espaço convergente, única de cores de cava ardentíssima entonadas sobre ouro fervente do fundo enfaixado de correntes lisas de marrom e de candor. Mas olhai mais para dentro. Para o espaço: que tom amolado vos permite conquistá-lo com plácida segurança: é a magia, enfim, da forma em planos que escapa do manto da Virgem em deliciosos cristais de turquesa e que ampara e interrompe a pose imprevista do menino. Para a cor: como se mete deliciosamente o grupo divino na substância áurea do campo, como sem esforço os santos penduram nos breves espaços verticais seus mantos de negro fumoso manchado do candor de um livro e rematado pelo cajado ebúrneo de pastor!

Com os mesmos olhos deveis procurar usufruir a Peça de San Zaccaria: Madonna com o Menino entre Quatro Santos, ou o Batismo de Cristo em Vicenza, no qual podeis ainda comparar a centralidade compositiva que desce em linha reta do Pai Eterno, através da Pomba e da concha, ao corpo de Cristo: mas sobretudo a distância do espaço fechado de largas zonas de montes e do grande espelho de céu avermelhado e estriado de nuvens. Com os mesmos olhos a última peça de altar em São João Crisóstomo onde a perspectiva sobrelevada que fecha mais no alto a boca do quadro tem a mesma função de leito colorístico que na Ressurreição de Piero; e vos devem ficar igualmente claros de sentido os Santos recostados aos largos espelhamentos marmóreos e a curva sintética do manto de São Gerolamo no alto que se repete na faixa clara de céu e na escura do sub-arco.

Nem gostaria que esquecêsseis um quadrinho de dimensões menores, mas de mesmo período e estilo. É a alegoria das Almas do Purgatório nos Uffizi.

Ficastes embaciados! Enfim este maravilhoso espelhar-se de reflexos de claro e de escuro do alto do céu à terra. Devei aproveitá-lo como um tabuleiro mágico que deixe transparecer em intervalos em cada planura branca e preta um quadrinho de vida e natureza. Onde navegaremos? nos laguinhos polícromos do terraço estriado de faixas marmóreas: ou no lago verdadeiro? Onde repousaremos ou nos deteremos? nos rebocos escuros das florestas: ou nas casinhas de açúcar docíssimo? Uma coisa somente eu não gostaria que desejásseis, uma vez no terraço: que é o skating. Não compreendeis que o repouso da cor seria destruido? Mas segui o conselho destes atores silentes: recolhei-vos e, apartados, fazei zona simples de turquesa ou de vermelho entre duas zonas cândidas de mármore."

Roberto Longhi, Breve mas Verídica História da Pintura Italiana. Tradução de Eduardo Savella.