Giotto di Bondone


"Às raias dos anos dois mil, que venham talvez defrontar-se com terrores maiores que aqueles dos anos mil, esse medir-se às escuras com a unidade ética e poética de toda a idade média - e segundo o exemplo tangível de Giotto: do Giotto lírico de Assis ao trágico de Pádua - é uma profunda lição, talvez um convite à salvação. Nosso tempo e, mais ainda, o novo milênio que está por nascer desta atual dor planetária parece anunciar-se mais medieval que clássico ou renascentista. Nem Joyce nem Klee, para dar dois altos exemplos, são heróis humanistas: aquela que é em ambos a absoluta 'modernidade' é, em cada um, a absoluta 'espiritualidade' e o comum 'primitivismo', também sob as diversas investiduras intelectualistas; e seria o mais grave erro classificar-lhes como inovadores unicamente na forma ou na técnica.

Não quero contestar os valores, corretivos ou também depurativos, da crítica formalista; é óbvio que tudo aquilo que um artista faz, não vale se não se encarna numa forma, não se estrutura numa linguagem e num estilo; mas não se obtém uma unidade técnica e formal, se não preexiste uma ação (ao menos, uma vontade) de unidade de sangue e de ideias. A ética vem sempre antes da poética; e em Giotto, como em todos os artistas da Idade Média, essa precedência era natural, vinha à comum passo com o coração e o intelecto,  respiravam-na no ar: e todo o resto era um cruzamento, sublime e normal ao mesmo tempo, entre a Graça e o ofício, entre a Arte e o artesanato. Como explicar de outro modo o fato que num mesmo 'atelier' medieval o trabalho do mestre arriscava por vezes não se distinguir daquele do estudante, senão levando em conta que entre estes, mais que uma uniformidade de escola e de técnica, havia o vínculo de uma comum unidade de fé, de doutrina, de visão de mundo?

Sem acertar e aceitar a visão religiosa de Giotto - acontece o mesmo com Dante - não se pode interpretar à fundo sua realização artística. A idade média, se se recordam os super-renascentistas, dentro de apenas cinquenta anos e somente na Itália produziu três 'summae', a filosófica de Tomás de Aquino, a poética de Dante e a pictórica de Giotto; e talvez fosse mais justo dizer uma única 'summa' de três desmesuradas medidas.

Também a idade moderna, no merit
ável jogo perpétuo da pesquisa e da crise, já produziu mais de uma 'summa', dessacralizada talvez, mas reintegrante. Porém se, até ontem, éramos capazes apenas de uma 'summa' somente unívoca e unilateral, que apontava, isto é, em direção a valores ainda isolados, talvez amanhã - como Giotto - tornaremos a estar propensos e prontos a nos dar, e a dar, uma 'summa' novamente unitária e plena."

Giancarlo Vigorelli, Giotto e o Convite à Unidade

 "Imaginai o contrário de Duccio e tereis Giotto. Duccio imaginava o mundo inteiro entrelaçado numa fina pérgola que desenha os ramos no céu embaciado pelo sol; Giotto é todo convicção plástica e espacial. O espaço inclui as formas, as formas por sua vez determinam exatamente um compacto volume de espaço: espaço e forma sustentam-se mutuamente, são a mesma coisa.

Se recordeis o que vos disse - e vos mostrei - a respeito da bruta maciça encorpada escultura românica podeis acreditar que Giotto não faz mais que  transportar para a pintura o ideal dos escultores românicos, mais talvez que voltar-se à tradição plástica, já muito enfraquecida, do mosaico romano.

"Eis uma primeira observação que vos pode iluminar: Giotto raramente se volta aos polípticos amados pelos Seneses; às lunetas, aos triângulos que enquadram os arcos preferidos ainda pelos Seneses prefere as paredes longas da nave. Simone - o herdeiro da linha de Duccio - decora em Assis uma capela alta e fina, dividida verticalmente - paredes e abóbada - pelas nervaturas arquitetônicas góticas; Giotto decora a metade inferior da nave segmentando-a em quadros retangulares. Compreendeis?

Em Padova divide ainda as paredes nuas da nave única românica em muitas casinhas retangulares, e compreendei que esses retângulos para a pintura valem como para a arquitetura vale uma planta organizada num retângulo. Dentro daqueles espaços ordena-se inexoravelmente uma composição sólida maciça de massas que se equilibram nos lados ou se recolhem pesando no centro; age uma humanidade gorducha grosseira e todavia solene e grave, de gestos e vestes simples e robustos, demorando-se sob edifícios simples.

Recordai algumas composições entre as maiores, de Giotto. Em Padova: Joaquim entre os pastores, a Apresentação da Virgem ao templo, os Pretendentes à espera do milagre dos ramos, a Anunciação,  a Deposição de Cristo. Em Florença: a Morte de São Francisco.

No Joaquim entre os pastores podeis habituar-vos ao senso da paisagem criada por um pintor plástico: rochosa por excelência, desolada e como que  invernal, se bem que algum áspero tufo rompa da terra, alguma árvore grossa, cortando o solo, cresça uns poucos palmos lançando um punho compacto de fronde espessa.


No pastor à esquerda eis a atitude plástica e pesada em apoiar a axila no cajado, e em Joaquim a função admirável das vestes a fazer do corpo um bloco, sem lhe tolher contudo a convicção da relativa posição dos membros.

"A Apresentação da Virgem ao Templo. Como dar a necessária e sólida sensação de robusteza corpórea também à Virgem criança? Para Giotto a questão está logo resolvida; não se trata de submeter-se realisticamente à moleza e a magreza dos membros infantis, mas de imaginar um corpo que em pequena escala nos dê uma sensação monumental esquadrada. Eis porque a virgem criança é já uma pequena matrona.


"A Deposição de Cristo: Uma massa distesa pesante: o corpo de Cristo, sobre o qual dobram-se oscilando as massas circundantes das mãos e dos apóstolos. Vede em torno do morto aquele envolvimento maciço das mulheres acuadas, vede, em cima, que gravitação inexorável das vestes no abandono moral dos corpos! Quando podeis provar, por exemplo, da grandeza do motivo do manto pesado que, no curvar-se de improviso e no empedrar-se do corpo, recai gravemente do torso e dos braços de João?

"Agora quero que penseis vós mesmos o que Giotto não seria capaz de exprimir. Vós de certo sentistes emanar da firmeza dos corpos um senso de energia moral, porquanto bruta e primordial. Ora o que aconteceria quando Giotto tivesse a mão forçada pela imposição do tema a exprimir tudo que na vida é espiritualidade refinada, gentileza,  graça,  fineza afetiva? Evidentemente tudo isso não poderia sair-lhe bem, ao passo que poderia ser bem melhor simbolizado pela agudeza linear, pela incorporeidade das finíssimas formas de Duccio, isto é, com a linha floreada."





"Deveis reportar-vos àquilo que vos disse sobre a impossibilidade do pintor em ensaiar demais o contraste e a fineza psicológicas. O caráter que diz respeito à literatura, uma vez buscado pelo pintor, lhe induz inevitavelmente a contínuas variações formais, de observação corpórea, de tipos, etc. Em suma, para exprimir bem a psicologia de uma cena dramática Giotto deveria fazer pessoas todas diferentes; e no entanto sabeis que para fazer grande pintura ela não podia senão fazê-las todas iguais.

Eis portanto outra prova da independência entre assunto e arte figurativa.

Pode-se ulteriormente pensar numa afortunada coincidência da psicologia de um assunto com o símbolo emanado da forma. Não nego. Então se pensarmos no espírito refinado espiritual incorpóreo da lenda franciscana poderíamos crer que este fosse passível de coincidência formal, por obra de Giotto? É evidente que não.

Vede por exemplo em Santa Croce a representação do pai de Francisco, Pietro Bernardone, que se lança irado contra o filho que foi despojado de roupas seculares e está para ser revestido pelo bispo. Inevitavelmente, todas pessoas compactas robustas; e isto psicologicamente pode ficar bem para a grossura espiritual do pai de Francisco: mas o que de espiritualmente fino poderá alguma dia exprimir o corpo nu do poverello, sólido maciço, filho, em suma, de seu pai? decerto, nada. Mas artisticamente qual é o valor da representação? Altíssimo, absoluto. Como pode ser? Simplesmente porque, repito ainda, Giotto como pintor, nós como espectadores, podemos muito bem ficar contentes com algo que construa e que renda como arte visual - isto é, como disposição de massa, como entrelaçado linear, como justaposição de cores; tudo independente do fato representado, e nem por isso menos capaz de exaltar variegadamente o nosso espírito."

Roberto Longhi, Breve Mas Verídica História da Pintura Italiana. Tradução de Eduardo Savella.

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