Rolos de primavera



Por Serge Daney

Maio 1982. Sempre essa tentação de passar os intervalos comerciais pela peneira da crítica de cinema. 

A cena se passa dentro de uma loja. Há a vendedora e há uma cliente. O que vendem? Tecidos em rolos arranjados em armários baixos ou afixados em um manequim assexuado sobre um balcão antiquado? Não temos certeza. Tudo se funde em uma decoração pastel e borrada: malva, rosa, verde. As duas mulheres estão vestidas austeramente. A vendedora é moderna, florescente, olhos brilhantes: ela poderia figurar em um pôster político de esquerda. A cliente é uma burguesa de bom tom, ociosa e atrevida: é dessas que se põem a dançar ex abrupto nas comédias musicais americanas. Entre elas, uma diferença de vinte anos, pelo menos. A vitrine da loja dá para uma rua abstrata e pouco movimentada. Um barbudo pensativo passa. A ação começa. 

- O que deseja? (um travelling pivotante, totalmente sirkiano período Universal, acompanha a cliente pelo balcão). 

- Eu gostaria de ver aquele... oh e depois mostre-me todos (a cliente é bem móvel, ela começa uma espécie de dança da sedução sob os olhos da vendedora, a qual não deixará jamais seu balcão). 

- Cada um tem seu perfume... O rosa: a rosa – O malva (inserção de um close-up da vendedora): a lavanda – O verde: capim-limão, eu diria (a cliente devaneia sonhadoramente)... Vou ver o malva na luz (ela sai do campo, pela direita). 

- Dupla espessura, madame! (de longe, a vendedora sobe o tom). 

- E eles estão disponíveis em quais larguras? (plano geral da loja vista por trás do balcão, em primeiro plano a vendedora e ao fundo a cliente coquete). 

- Oh. Uma só! (plano aberto novamente). É claramente o bastante (Desconforto). 

- Hum! (um tempo). Oh! Realmente, não sei qual escolher. Você não poderia me dar uma amostra de cada? (Aqui, o jogo de cena é muito bem resolvido: um plano de corte súbito captura três quartos do corpo contorcido da vendedora como se este corpo dissesse “eu não aguento mais, eu dou minha mão à palmatória, eu cedo, eu me rendo a você” e se desarticula perigosamente para se recuperar em um movimento que a traz de volta, radiante e jovial, em seu balcão). 

- Certamente. Com prazer. (close-up da vendedora que martela estas palavras quaisquer com um brilho no olhar e acentuando a palavra “prazer”). 

Tudo isso dura trinta segundos e doze planos. O leitor terá compreendido: trata-se de um comercial e trata-se de prazer. O objeto à venda não é seda nem renda [1], mas elegantes rolos de papel higiênico de marca Trèfle. Um plano final, o décimo quarto, mostra os rolos multicoloridos enquanto uma voz em off arrulha: “O Trèfle em quatro perfumes: uma belíssima coleção”. Há tantas razões para amar e para analisar este anúncio anal e um pouco banal às quais eu não resisto ao prazer de relatar duas ou três aos cine-teléfilos.

Vender papel higiênico come se fosse uma coleção de tecidos raros e sem preço, é uma primeira idéia. Imaginar uma loja que venda apenas isso, é a segunda idéia (muito onírica). Fazer a cena rolar entre duas mulheres é uma terceira. Nas publicidades higiênicas “normais”, partimos geralmente de uma triste constatação de sujeira para fazer surgir um ideal de limpeza miraculosa (lembremos do imundo Monsieur Propre). Enquanto aqui, é o contrário. É porque toda a cena banha-se em uma limpeza de um sonho pastel que a evocação da sujeira perde todo o seu peso. E que se trate de um face a face entre duas mulheres que introduz um inegável horizonte perverso. 

Esta pequena obra-prima de decupagem clássica poderia servir para familiarizar nossas caras cabecinhas saídas de escolas de cinema sobre coisas importantes como o campo e o contracampo, o plano de corte e a profundidade de campo. Através da evidente referência a Jacques Demy, toda a tradição da comédia americana revive sob nossos olhos. De McCarey a Cukor. A proibição de mostrar certas coisas (baixas) os obrigou a inventar uma mise en scène astuta. Quanto mais a idéia fosse suja, mais limpa seria a decupagem. Aqui também. 

Pois este pequeno filme sobre o prazer de se limpar toca evidentemente no inominável. A RFP (Régie Française de Publicité – Agência Nacional de Publicidade) não teve dúvidas. Até onde me disseram, ela teria censurado o filme. No momento em que o rolo se desenrolava formando uma espécie de cordão umbilical entre as duas mulheres, ouvimos um ruído de descarga! Este ruído, a RFP não quis. Nem este desejo. 

E contudo, é bem inutilmente que a voz do décimo quarto plano tenta nos fazer memorizar as palavras “Trèfle em quatro perfumes”. O mal já está feito: é o penúltimo plano, o décimo terceiro, com o misterioso “Certamente. Com prazer” que fica na memória. Neste momento preciso, a vendedora faz passar uma outra mensagem, uma mensagem que produto algum deixará esquecer, algo como: qualquer que seja a sua escolha, eu posso satisfazê-la. Seu pedido estará sempre aquém do que eu posso lhe oferecer. E esta é a verdadeira mensagem da publicidade, de toda publicidade. 

13 de maio de 1982. 

[1] “... n’était pas de la soie ou du batik” no original. Batik é um tipo de tecido tingido artesanalmente, muito fino.

Link para assistir a propaganda: http://www.ina.fr/video/PUB3784060015

Rouleaux de printemps foi publicado originalmente no jornal Libération, em maio de 1982, e republicado na coletânea Ciné Journal (Volume I, 1981-1982), p. 164-167. Tradução: Giovanni Comodo.

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