Neo-barroco



Quando voam as cegonhas (Mikhail Kalatozov, 1957)

Por Éric Rohmer

Nós sabíamos bem que o cinema russo estava evoluindo. Mas, desta vez, é uma mutação brusca. Pela primeira vez a originalidade de um filme soviético não se definiu mais por aquilo a que ele se recusa (o uniforme apertado do realismo socialista, ou o traje não menos gasto do neorrealismo, padrão caro às democracias satélites), mas por aquilo que ele admite: ouçam todas as conquistas do cinema ocidental em seus anos mais recentes. A quem pretendesse negar que não se passou nada de novo sob o sol desde o começo do falado, vou propor duas visões respectivas não de, digamos, O delator e Um rosto na multidão, mas de The grasshopper de Samsonov, apesar de ter sido julgado ousado na sua época, e de Cegonhas: trinta anos de história do cinema separam estas duas obras, realizadas com três anos de intervalo.

Encontramos tudo aqui: a profundade de campo e os tetos de Orson Welles, os travellings acrobáticos de Ophuls, o gosto viscontiano do ornamento, o estilo de interpretação do Actor’s Studio. Que não falemos de “formalismo”, pois ao culto da forma os compatriotas de Eisenstein sempre, embora eles o tenham, pagaram largamente a sua contribuição. O que importa, não é que neste filme a expressão tenha a primazia sobre o conteúdo, mas que ele se exprima numa língua que, do outro lado do Elba, não conhecíamos, ainda há pouco, o abc. O importante, aqui, não é que um cineasta russo tenha escolhido a estética em detrimento da ideologia, mas uma certa estética, escolha que não tem talvez mais importância que aquela, por exemplo, dos alfaiates moscovitas decidindo um belo dia encurtar em dez centímetros a barra da calça: mas não é menos importante. Admitir a existência de uma moda universal, é dar um grande, um enorme passo.



Notemos que nesta empresa de ajuste do vestuário, a U.R.S.S. se mostra infinitamente mais à vontade que certa nação menor da Europa burguesa: nenhum traço em Kalatozov da rusticidade de um Bardem ou de um Cacoyannis ensaiando copiar o modelo italiano ou hollywoodiano. A Rússia é uma nação forte, à qual não falta nem dinheiro, nem critério; basta que ela concentre na profundidade o que ela desperdiçava antigamente na superfície, que ela arranje sobre dez metros um movimento de grua que ela estendia anteriormente sobre cem, que no lugar de nos oferecer o espetáculo de um milhão de homens, ela nos mostre algumas dezenas, mas preocupados com a mesma precisão, animados pelo mesmo fervor que os protagonistas. A Rússia é uma nação velha, rica em uma das mais gloriosas tradições teatrais: se Tatyana Samoylova nos parece às vezes guiada pela batuta de Kazan, a pátria de Stanislavski não faz, em suma, mais do que retomar o que lhe pertence. A própria cintilação de certas montagens rápidas assume antes a forma resultante de um moderno gosto pelo barroco que de um resíduo do impressionismo pudovkiniano.

Tal é o alcance deste filme. Qual é agora o seu valor? Digamos segundo a fórmula consagrada, que “só o futuro poderá julgar” e aprovar ou não a decisão de um júri que o preferiu ao Tati ou ao Bergman. Pacientes exegetas conseguirão sem dúvida decidir se a paternidade da obra deve ser imputada ao diretor Mikhail Kalatozov – cujo Amigos verdadeiros não permitia em nada prever uma tal explosão , ou ao fotógrafo Urussevski que foi aquele de O quadragésimo primeiro e se mostra, ao contrário de seus colegas ocidentais, muito mais moderno na utilização do preto e branco que na da cor – na verdade o quão ingrata, sobre a terna e frágil paleta do Sovcolor.



Da minha parte, fui alternando: agitado pela novidade do tom; irritado pela vontade sistemática e um pouco anárquica de brilhar, deslumbrado, ainda assim, pelo brilho dos ornamentos na cena das despedidas perdidas, na do bombardeio ou naquela da morte de Boris; tocado, mas não muito, pelo trágico saroyanesco de um mal-entendido muito literário; emocionado, apesar de tudo, pelo que me seduz em muitos filmes russos, stalinistas ou não, a exaltação da coragem, da fidelidade, do sacrifício e outros valores espiritualistas, apesar da mise en scène em si implicar uma visão do homem muito mais fenomenológica: mas a cena final do buquê de flores é de um lirismo e de uma beleza fotográfica em que forma e conteúdo alcançam uma conciliação por muito tempo esperada.

O salto foi dado: tomemos nota. Qualquer retrocesso é daqui pra frente proibido. Mas se o caminho no qual ele se engaja não é necessariamente semeado de rosas, o cinema soviético, vistas as mesquinhas vantagens de seu esplêndido isolamento de ontem, não tem nada a perder e tudo a ganhar votando pela sua integração total e definitiva no sistema ocidental.

Néo-baroque foi publicado originalmente na revista Arts nº 675 em 18 de junho de 1958 e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe.Tradução: Miguel Haoni.


Huston e Bresson

Moby Dick (John Huston, 1956) e Um condenado à morte escapou (Robert Bresson, 1956)

Por Éric Rohmer

É uma empresa temerária levar às telas uma grande obra romanesca. Será por azar ou pelo efeito de uma lei nada simples de se superar que tantas obras-primas literárias, uma vez colocadas em imagens, se encontrem menos profundas, menos poéticas, menos ricas em sutilezas psicológicas que um filme tirado de uma peça de boulevard ou de um romance policial ruim? A verdade é, via de regra, que esse tipo de empresa atrai menos os cineastas de talento que os medíocres e os hábeis, desejosos de emprestar a seu modelo uma glória que não podem extrair de si mesmos.

Que não se pense, contudo, que eu pregue pelo filme de “autor". A direção é uma arte por demais difícil para que um espírito original e respeitoso (um não exclui o outro) possa nela dar toda a medida de seu gênio. Mas esse gênio se arrisca ser esmagado pela sombra daquele sob o qual se abriga. John Huston, que começou como roteirista, é um homem de gosto, a julgar pela lista de temas de que tratou. A ele a honra de ter levado à tela, sem trair seu espírito, um dos melhores romances policiais que existem: O Falcão Maltês, de Dashiell Hammett. Além do mais podemos, através de seus temas favoritos, descobrir uma constante: a ideia do absurdo do mundo e da fragilidade do esforço humano, do "fracasso", como adoram dizer seus comentadores. Eis uma filosofia, aparentemente, mais sedutora que esse otimismo beato que se adorava denunciar ainda há pouco nos filmes hollywoodianos. Se a cota dos valores cor-de-rosa abaixa na América, é a Huston e a alguns outros que se deve o mérito.

Moby Dick pode assim aparecer como uma das obras mais apropriadas a inspirar a imaginação de um cineasta. O símbolo que representa a luta do capitão Ahab contra o monstruoso cachalote branco nós o reencontramos, em estado embrionário, em numerosos westerns, filmes policiais e documentários de todos os tipos. Mas, por uma amarga ironia do destino esse mito, que sob a pluma de Melville nos abrira todos os seus tesouros, resseca-se assim que tocado pela objetiva. Não resta senão uma grande maquinaria de ópera, precisamente digna de um conto de "ficção científica". Seria preciso concluir disso que o filme não pode lutar contra o romance com armas iguais e, no caso presente, que o luxo da metáfora que constitui o valor do próprio modelo lhe é proibido para sempre? Reparemos que se o escritor usa a comparação, é para tornar mais presente aos nossos olhos o que não pode evocar senão com a ajuda das palavras que são todas, em certa medida, mentira. O poeta suscita o verdadeiro com a ajuda do falso, enquanto que o cineasta, escravo da aparência, pode somente sugerir, a partir do verdadeiro, uma infinidade de metáforas latentes. Convém ainda que essa verdade seja mostrada sem truques ou, pelo menos, já que a arte não pode prescindir de certa trucagem, que o cineasta saiba esconder-se com a modéstia necessária para fazer brilhar o que mostra com todo o seu fulgor natural. E se esta poesia é, penso, impossível de conquistar de imediato, talvez ela tivesse surgido de uma descrição rigorosamente precisa, talvez ela tivesse sido dada como acréscimo a quem, mesmo tão seco e pouco lírico como Huston, não tivesse ignorado o peso de um harpão, confundido com a plácida baleia o fogoso cachalote.



A quem duvida, o último filme de Robert Bresson, Um Condenado à morte escapou (ou O vento sopra onde quer) vem oportunamente nos dar a resposta. Baseado nas memórias do comandante Devigny, evadido do forte de Montluc durante a ocupação, o filme tem, na precisão do comentário e da imagem, a secura de um manual. O caráter documentário e didático é aos meus olhos seu primeiro mérito, aquele do qual nascerão os outros, erronea ou corretamente mais estimados. Falou-se bastante da ascese bressoniana. O autor de As Damas do Bois de Boulogne poda de tudo que é supérfluo sua proposta, que não é necessariamente a de um esteta, de um puro formalista. Todas as artes tiveram, no decurso das eras que chamamos clássicas, uma boa relação com seu tempo. Tal retrato ou tal quadro de batalha do século XVI ou XVII é um documento, sem por isso deixar de ser uma obra, enquanto que Guernica nos ensina mais sobre Picasso que sobre a guerra da Espanha, qualquer que seja o pintor. Um Condenado à morte escapou é portanto não somente um dos mais belos filmes inspirados pela última guerra, mas uma das raras grandes obras advindas num tempo onde a reportagem se arroga uma função outrora atribuída à arte.

Ao rodar Diário de um pároco de aldeia, Bresson enriqueceu o patrimônio do cinema. Ele lograva onde Huston acaba de falhar, mas cometia o mesmo erro de intenção: não se trata de um empréstimo das outras artes que enriqueça o cinema, mas sim de que o cinema enriqueça a arte inteira. Se nos nossos dias muitos romances empalidecem ao lado da reportagem, é que a pluma do romancista perdeu a ciência de fazer, como nos tempos de Daniel Defoe, de uma aventura vivida a matéria de uma obra durável; e frustrados em nossa sede de absoluto, preferimos a areia do hebdomadário ou do jornal diário ao mármore do livro. É da areia, pelo contrário, essa experiência, depois de outras mil, nos ensina, que o cinema tira seu mármore mais puro.

Bresson, não tendo mais por patrão um autor mas os próprios fatos, serve-se deles como garantias de um verdadeiro que pode, assim, deixar de ser verossímil. Ele se omite de nos mostrar todos, ainda que o modo com que Fontaine se desembaraça da sentinela alemã fizesse parte da própria técnica da evasão; ele substitui ao efeito que teria tido a cena do combate este outro efeito que é sua elipse mas, de todo modo, em favor da continuidade musical de um filme em que a banda sonora tem, de certa forma, prioridade de passagem. A estética, e isto é legítimo, tem a última palavra em relação ao documento: volto à minha comparação com as pinturas de batalhas. Pouco importa que o belo se afirme, eventualmente, em detrimento da clareza científica: o essencial é que ele não se sirva senão da ciência, no caso a da evasão, sua origem.


Semelhante ao Robinson em sua ilha, o tenente Fontaine refaz a primeira e mais nobre conquista do homem: a da ferramenta. O "milagre dos objetos" é obra da vontade ou de uma atenta Providência? Podemos encontrar ainda essa referência à intervenção divina, tanto no filme como na obra de Defoe, da qual Bresson retoma curiosamente a filosofia. Mas essa filosofia não é outra senão aquela do famoso "paralelismo" leibniziano ao qual se refere implicitamente toda a arte do Ocidente desde a Renascença.

Creio que Bresson - homem do século XVII - esteja tão bem, senão mais a vontade nesse caso moderno quanto com A Princesa de Clèves, que ele pretendia rodar há três anos. Amo demais o cinema para não preferir aquelas dentre suas obras que nos propõem um tipo de beleza de que não encontramos nenhum exemplo em outro lugar. A pintura de uma vontade vitoriosa, no "papel", parece a alguns menos profunda, menos trágica, sem dúvida menos moderna, que a do absurdo e do fracasso, tirada por Huston de Melville. Seria honrar-lhe em demasia atribuir somente à sua filosofia, nascida da admiração literária mais que das próprias coisas, a mediocridade do filme Moby Dick. Mas creio que o cinema ainda não tirou de uma concepção de mundo otimista, ingênua, clássica todas as ilustrações que esta comporta. Quer eu esteja ou não errado, o fato é que o romance de Melville, retirando seu sentido da coisa vista e sua forma da poesia antiga, é mais um exemplo a seguir que uma matéria bruta a pilhar. Que o cineasta aprenda a voltar às fontes, ou seja, às atualidades, à literatura de circunstância sem com isso, como gostariam alguns, por prevenção ou excesso de amor, pactuar com o melodrama. Louvemos sobretudo Bresson, o mais refinado, o mais cultivado autor de filmes por ter, a julgar pelo favorecimento unânime que encontrou esta última obra, reconciliado as pessoas de bom gosto com o cinema, cinema para quem, bem a contragosto, não podemos amiúde declarar senão "culpado". Se o filme de John Huston vem enriquecer o dossiê da acusação, cem vezes mais precioso é o aporte de Bresson ao da defesa.

Huston et Bresson foi publicado originalmente na revista La Parisienne nº 40 em janeiro de 1957 e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe.Tradução: Eduardo Savella.


Convenção, rotina intelectual e preguiça na escolha dos “doze melhores filmes de todos os tempos” em Bruxelas



Por Éric Rohmer

No último 18 de setembro, a Cinemateca belga tornou pública a lista dos doze melhores filmes de todos os tempos.

Essa lista, elaborada durante dez meses, é o resultado dos votos de cento e dezessete historiadores de cinema designados pelo Bureau international de la recherche historique cinématographique, provenientes de 26 países. Eis os doze filmes eleitos:

1. O encouraçado Potemkim (Bronenossets “Potiomkine”),
S. M. Eisenstein, U.R.S.S., 1925, 100 votos de 117.

2. A corrida do ouro (The Gold Rush),
Charles Chaplin, U.S.A., 1925, 85 votos.

3. Ladrões de Bicicleta (Ladri di biciclette),
V. de Sica, Itália, 1948, 85 votos.

4. A paixão de Joana d’Arc (La passion de Jeanne d’Arc),
Carl Dreyer, França, 1928, 78 votos.

5. A grande ilusão (La grande illusion),
Jean Renoir, França, 1937, 72 votos.

6. Ouro e maldição (Greed),
Erich von Stroheim, U.S.A., 1924, 71 votos.

7. Intolerância (Intolerance),
D. W. Griffith, U.S.A., 1916, 61 votos.

8. A mãe (Mat),
Vsevolod Pudovkin, U.R.S.S., 1926, 54 votos.

9. Cidadão Kane (Citizen Kane),
Orson Welles, U.S.A., 1941, 50 votos.

10. Terra (Zemlya),
Aleksandr Dovzhenko, U.R.S.S., 1930, 47 votos.

11. A última gargalhada (Der letzte Mann),
F. W. Murnau, Alemanha, 1924, 45 votos.

12. O gabinete do doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari),
Robert Wiene, Alemanha, 1919, 43 votos.

Esses doze filmes serão projetados na Exposição de 12 a 18 de outubro, dois filmes por dia.

Um júri, tido como júri de segundo grau, composto de sete jovens cineastas de reputação internacional, terá como missão classificar esses filmes de acordo com seu valor atual. Aceitaram, até o presente momento, fazer parte desse júri: Robert Aldrich (Estados Unidos), Michelangelo Antonioni (Itália), Alexandre Astruc (França) e Juan Antonio Bardem (Espanha).

Essa última cláusula denota, nos organizadores desse douto divertimento – o qual não vale nem mais nem menos do que todos nossos jogos modernos de erudição que estão em vias de tomar o lugar do bridge ou do pigeon-vole – uma modéstia e uma prudência louváveis. Assim como, talvez, uma parca confiança no modo de votação empregado, que eu desaprovaria não por trair alguma verdade de princípio, mas por refletir mal a opinião geral dos votantes. Não teria sido mais sábio primeiramente levar em conta a noção de autor, e designar então a obra mais popular de cada cineasta eleito? Isso teria, pelo menos, corrigido a discordância entre a lista oficial por obra e esta, não-oficial, por autor, que nos revelam em apêndice:

1. Charles Chaplin, 250 votos; 2. S. M. Eisenstein, 168 votos; 3. René Clair, 135 votos; 4. Vittorio de Sica, 125 votos; 5. D. W. Griffith, 123 votos; 6. John Ford, 107 votos; 7. Jean Renoir, 105 votos; 8. Carl Dreyer, 99 votos; 9. Erich von Stroheim, 93 votos; 10. Vsevolod Pudovkin, 91 votos; 11. F. W. Murnau, 90 votos; 12. Robert Flaherty, 82 votos. 


Nota-se que os nomes de Orson Welles, de Dovzhenko, de Robert Wiene não são mencionados na segunda, ao passo que a primeira não comporta nenhuma obra nem de Clair, nem de Ford, nem de Flaherty. Em qual lista acreditar então? Nem em uma nem em outra, nem em um compromisso entre as duas. Produziu-se esta coisa paradoxal de que os cineastas mais fecundos foram prejudicados por sua própria fecundidade. Se Einsenstein tivesse realizado um filme que disputasse em glória – legítima ou não – com o Potemkim, o Potemkim não teria sido o primeiro. O que diriam de uma lista de melhores romances franceses em que Dominique, ou mesmo La princesse de Clèves, viessem à frente do estudo mais popular da Comédia humana?

Esse método falho pode explicar também o desequilíbrio entre o número de filmes mudos coroados e o de falados: nove contra três. Acredito que a proporção de filmes recentes, em cada lista individual, era mais forte, mas entra-se mais facilmente em acordo a respeito de certos títulos da época muda, decantados pela idade, do que da falada, rica em tentações diversas.



Mas aceitemos a regra do jogo e, ainda que por um breve momento, curvemo-nos à decisão do concílio. Há uma cor comum, que pende fortemente ao cinza, a todas as obras da lista. Não digo isso por conta da falta de filmes coloridos ali. Essas obras são não apenas sérias, mas austeras (e mesmo Carlitos acabou perdendo seu brilho ao passar pela lupa sociológica ou metafísica). É muito mais questão de “grandes interesses” (ambição, destino das coletividades, política) do que de amores passageiros – enquanto que poderíamos encontrar as mais belas obras ocupadas na pintura de paixões. Não me queixarei disso, e irei usá-lo, pelo contrário, como argumento contra quem insiste em tachar de frívola a sétima arte. Esse catálogo evoca um pouco mais o dia filtrado do museu do que, sem dúvida, desejavam aqueles que participaram de sua elaboração. Mas, ainda assim, não resmunguemos: é como manda o figurino.

Outra particularidade a inscrever no rol desse florilégio: a maior parte das escolas cinematográficas tem ali seu representante: a americana dos pioneiros com Griffith e Chaplin, a alemã dos expressionistas e do Kammerspiel com Murnau e Wiene, a russa com Eisenstein, Pudovkin e Dovzhenko, a escandinava com Dreyer, o realismo francês com Renoir, a revolução americana com Orson Welles, o neorrealismo italiano com De Sica, e enfim Stroheim que é sozinho uma escola, posto que quase não há cineasta que não o reinvindique, mais ou menos. Nenhuma grande corrente, eu creio, foi esquecida, como é esperado numa empreitada de historiadores. À exceção – e essa ausência é muito lamentável – da escola documentarista e seu mestre inconteste, Robert Flaherty, mencionado no final da classificação por autores.

À luz de hoje, a lista faz aparecer seu principal defeito de proporção: atribuir três assentos à escola russa é ser-lhe, eu creio, apesar de tudo que se possa pensar de bom a seu respeito, demasiado generoso. Enquanto a glória de Eisenstein se manteve sob os ataques do tempo, a de Pudovkin está claramente em baixa, e seria bom ver o reconhecimento desse declínio. Quanto a Terra, de Dovzhenko, os cinéfilos de nossa geração não conseguem de fato compreender como essa obra afetada e sem fôlego pôde ser tida, por um tempo, junto de muitos espíritos sensatos, o “nec plus ultra” da arte cinematográfica. E, enquanto Eisenstein nunca pôs um centímetro de sua ambição à venda, as últimas produções de nossos dois compadres, O retorno de Vassily Bortnikov e Michurin, que rivalizam na insignificância, nos dissuadem de admiti-los num tão augusto areópago. Teríamos rapidamente encontrado seus substitutos: Nanook, o esquimó, ou mesmo O homem de Aran, de Flaherty, no lugar de Terra, e, no lugar do acadêmico A mãe, por que não este filme que, exibido recentemente na Cinemateca, fez com que toda a plateia, sem nenhum tipo de ensaio, dissesse: “É sem dúvida um dos doze maiores filmes da história do cinema”, já que seu caráter de obra-prima parecia inscrito em filigrana sob cada uma de suas imagens: Contos da lua vaga, do japonês (o primeiro país produtor de filmes do mundo não teria também direito a seu embaixador?) Kenji Mizoguchi?

Tendo arrancado dois títulos, eu teria ainda menos escrúpulo a eliminar um terceiro. E aqui eu não apenas me surpreendo mas me indigno ao ver que foram necessários quarenta e três especialistas para incluir na lista das listas o tristemente célebre Caligari, pai execrável de todos os estetismos. É de se pensar que eles não o reveem há trinta anos! Se é necessário – e sem dúvida o é – designar uma obra “à margem”, coberta de lirismo e magia, como teria sido mais satisfatória a presença do sempre jovem Atalante, de Jean Vigo!




Acredito que, depois desses retoques, a lista não está mais com uma cara tão ruim. Talvez ainda me seja possível livrá-la de alguns outros grãos de poeira livresca, sem contudo invocar meus gostos pessoais. Dentro de dez anos, tenho certeza que o genial Paisà, de Rossellini, terá substituído o cansado Ladrões de bicicleta. Garanto igualmente que F. W. Murnau, penúltimo em ambas as listas, terá subido alguns degraus. Mas não exijamos demais: há não muito tempo, esse cineasta que nossa geração unânime considera como o grande entres os grandes estava menos cotado, não somente do que um Lang, mas do que um Pabst ou Lupu Pick. É fato que A última gargalhada não é, de suas obras, a mais apta a revelar, se não a profundidade, pelo menos a universalidade de seu gênio: mas eu não hesitaria em inscrever Aurora, ou Tabu, como primeiro de minha lista.

A mesma observação poderia ser feita sobre A grande ilusão, de Jean Renoir. Aqui ainda, nossos historiadores se pronunciaram em favor do Renoir mais público, em detrimento do mais secreto – secreto como, aliás, deixa de sê-lo a cada dia. Seria ótimo que a tal lista proclamasse a promoção de A regra do jogo, que alguns imbecis ainda maldizem, e que, sendo a obra mais bem-sucedida, até hoje, do cinema falado, forneceria, assim como os dois Murnau, um forte e defensável candidato ao primeiro lugar.

Quem não é frequentador das cinematecas poderá talvez me acusar de discutir bobagens. Sim, eu sei, um de meus colegas escreveu, na semana passada, que essa lista não significava nada e que ele próprio poderia propor outros duzentos filmes. Entretanto, mesmo que se trate de um jogo, não é assim tão inofensivo como um leigo poderia pensar. No círculo, que cresce a cada dia, dos cineclubes, uma bolsa de valores cinematográficos sempre soube se manter presente. Não é inútil que, de tempos em tempos, uma sanção oficial seja fornecida, assim como se publica a classificação dos melhores boxeadores ou tenistas. E é sobre o solo instável dessa perpétua feira de obras-primas que se constrói a base da verdadeira história do cinema a qual, assim como a de cada uma das outras artes, só pode se fundar sobre a ideia de valor, de hierarquia.

Muitos bons espíritos se ofendem ao ver os pedantes que talham a carne viva de um cinema por muito tempo considerado, de acordo com as palavras de René Clair, como a “arte do presente” [1]. Mas enfim, se já o foi, não o é mais, hoje quando florescem em toda parte os cineclubes, as reprises e as retrospectivas, quando, mesmo na América, a televisão pôde assentar parte de seu privilégio sobre um tanto de filmes antigos, cedidos a preços baixos pelos grandes estúdios, coisa de que agora se arrependem amargamente. Pois não seria uma das características mais modernas de nosso século esse furioso interesse que ele concede a tudo que remete ao passado, a serviço do qual estão, em grande parte, empregadas as novas armas da edição, da reprodução fotográfica ou do disco e, recém-chegada, da TV?

[1] Cf. Films, novembro de 1922.

Convention, routine intellectuelle et paresse dans le choix des “douze meilleurs films de tous les temps” à Bruxelles foi publicado originalmente na revista Arts nº 690 em 1º de outubro de 1958 e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe.Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.

O filme e os três planos do discurso: indireto/direto/hiperdireto



Por Éric Rohmer

Antigamente, a pior censura que podíamos fazer a um filme era: “Isto é teatro”. Hoje, seria: “Isto é cinema”.

O cinema moderno deveria temer mais seus próprios chavões do que uma influência externa, como a do teatro. E esta influência, seria ela tão maléfica? Assim dizíamos nos tempos de Pagnol e de Guitry, hoje semi reabilitados. Ela foi, sob o jugo de todos, benéfica nos anos quarenta, quando vinha de Orson Welles e – em menor parte – de Jean Cocteau. Ela desapareceu nos anos sessenta, sufocada pela influência do “cinema-verdade”. E eis que ela reaparece. Nestes anos setenta, eu lhes digo sem adulação, que filmes, na França ou mesmo no exterior, fazem o cinema seguir em frente, mais que os de Maguerite Duras?

Contudo, eu acredito na distinção dos gêneros e de suas especificidades. Que o cinema possa explorar sem perigo o domínio do teatro, não prova que “teatro e cinema, são a mesma coisa”, segundo o gracejo de André Bazin, mas que o último é demasiado maduro para afrontar o primeiro de igual para igual. As diferenças subsistem, na concepção clássica e, mais sutilmente, na concepção moderna de um e de outro. São aquelas que já requentamos mil vezes. Talvez seja em vão procurar outras. Tentaremos de todo modo.

Nós partiremos do texto, e não da forma – mais ou menos frouxa ou culta, cotidiana ou literária – que pode ser assumida aqui e ali, mas do seu conteúdo e, mais precisamente, da quantidade de informação que ele entrega.

A resposta é clara: é o texto de teatro que é o mais rico, pela razão de ser o único, durante a representação, que pode nos ensinar, enquanto os outros elementos do espetáculo, ditos de “mise en scène”, trazem apenas uma ínfima massa de informações em relação à sua. Uma peça lida ou ouvida no rádio perde frequentemente muito de seu charme e de seu impacto, mas pouco de sua clareza, enquanto que a “banda-falada” de um filme é, em geral, insuficiente para permitir que sigamos a história: as imagens e seu encadeamento servem de condutor ao texto e complementam suas informações.

Conhecemos a distinção aristotélica entre o “verossímil” e o “necessário”. Corneille a expôs em seus Discursos e coloca-a em ação, não sem extrapolar. Extrapolando-a nós mesmos, nos permitiremos aplicá-la ao texto e diremos: “É necessário tudo o que, neste, é indispensável à clareza da intriga. É verossímil aquilo que os personagens poderiam dizer entre eles, na situação, sem a preocupação de informar ao público.” Por exemplo, no primeiro verso de Andrômaca, o trecho, 

... já que eu reencontro um amigo tão fiel,

é absolutamente necessário (ele nos ensina que Orestes e Pílades são amigos e foram separados), mas muito pouco verossímil, já que o interlocutor não precisa dessa informação: ela se dirige apenas ao espectador. O “Sim” inicial, fazendo do resto do verso a continuação de uma conversa supostamente já iniciada, está lá, entre outras razões, para dar a ele esta verossimilhança que lhe falta.

Vemos, assim, que no teatro o necessário tem primazia sobre o verossímil, e que sua presença, mesmo difusa, limita sempre o campo. O diálogo de cinema, ao contrário, não utiliza, nem deve utilizar, o necessário a não ser como último recurso. A informação é apresentada aqui de maneira anódina, sob as aparências do puro verossímil. Ela afeta somente por ricochete um espectador com a guarda alta, no qual a vigilância cresce na mesma medida em que ele se “educa”. Os diálogos de filmes antes dos anos 60 nos pareciam congestionados de um necessário que o cinema moderno transportou para o comentário, o monólogo, ou os sinais gráficos, com uma desenvoltura que também já começa a ficar datada.

Nada fica fora de moda mais rápido que o necessário – se este não for verossímil. Nós estamos, nestes anos setenta, um pouco cansados dos excessos desse último. Para deixá-lo com o campo livre, suprimimos o texto escrito, fizemos os atores falarem “não importa o quê”. Pensamos que desta contingência absoluta nasceria uma nova necessidade, sem referência alguma às “regras” do teatro, sempre sorrateiramente presentes: e, às vezes, isso aconteceu com alegria em Rouch, Godard ou Rivette. O verdadeiro matou o verossímil: o verossímil, tapa-buracos dos dialoguistas profissionais, havia se tornado insuportável. E cá estamos sozinhos, novamente, diante dos rigores do necessário.

O romance não tem essas dificuldades. Nele, o casamento do necessário e do verossímil sempre é feito sem problemas. É o seu forte, a sua especialidade. Ele dispõe de um tal arsenal de meios de informações que ele paga esse luxo de, segundo as épocas, renunciar a uma parte deles. Quanto ao verossímil, ele pode dispensá-lo, com esse direito à rápida remodelagem da realidade que lhe confere a escritura, sem essa assombração do verdadeiro absoluto, de suas repetições, de seu balbuciar, de seus silêncios, pelos quais o cinema deve passar, já passou, e de onde ele deverá sair.

Abstração própria da narrativa e de seus mil recursos sintáticos, a relação das palavras ditas pelos personagens operam sobre diferentes planos (no sentido mais concreto do plano de perspectiva) daquilo que tradicionalmente chamamos de “discurso”.

Um é o discurso direto, introduzido de maneira específica no gênero do romance por um sinal tipográfico, as aspas, e uma proposição inserida que designa o locutor. Esta apresentação tem a vantagem de ligar bem o discurso à narrativa [1]. Ela tem o inconveniente de não ser sempre clara, já que, para evitar a monotonia do “disse ele”, “disse alguém” – ou o ridículo dos seus sinônimos, “sobressaltou-se”, “ele gemeu”, etc -, suprime-se o inciso. Qual leitor não teve que, perdido nas réplicas, remontar uma a uma e contá-las, para saber a que personagem atribuí-las? Mas nenhum romancista ama utilizar o procedimento, tão simples do teatro, que consiste em, a cada réplica, preceder em capitais o nome de seu locutor.


Exceção feita, como sabemos, à Condessa de Ségur. Dirigindo-se às crianças, ela pretende lhes facilitar a leitura. Mas esta preocupação, talvez tipográfica na origem, cria um novo plano do discurso, situado bem antes: ela retira o personagem de nós, o isola do fundo da narrativa, confere à sua expressão uma autonomia que nenhuma necessidade intimida, lhe dá todo o tempo de se exprimir à sua maneira, com todas as suas características de linguagem, inclusive (como em Georgey, Froelichein, Cozrgbrelewski) seu sotaque: 

JEANNOT

Onde que é isso, meu senhor?

PONTOIS, rindo

Bem falado, meu amigo. O francês mais puro! Onde que é isso? Ali embaixo, no balcão.

JEANNOT

Onde que é isso, o balcão [2] ?
...

E mais pra frente: 

... Ele senta-se em uma pequena mesa e chama:
Garçom!
Um garçom se apressa em acorrer.
Não, não é você, meu amigo, que eu peço; eu quero ser servido por Simon.
O garçom se afasta um pouco surpreso, e avisa Simon que um senhor o chama.

SIMON

O senhor me chama? O que temos para servir ao senhor?

ESTRANGEIRO

Sim, Simon, é você que eu pedi; traga-me duas costeletas ao espinafre e um ovo fresco.

No segundo exemplo, no início, a verossimilhança se une às necessidades de uma narrativa em que a duração é bastante contraída. Em um momento ela se constringe ao extremo – voltaremos a isso – e, após a fala de Simon, se dilata subitamente. O que precede era apenas a introdução. Estamos no coração da cena. Tudo tem seu lugar, mesmo o que é inútil. O pedido do estrangeiro, “duas costeletas ao espinafre…”, não esclarece nem a história nem os modos do personagem. É um puro tributo pago à verossimilhança [3], que faz saltar, quase hiperrealisticamente, o personagem para fora da tela.

Um outro interesse dessa passagem é quando aparece, mesmo que fugazmente, um terceiro tipo de discurso neste momento assinalado, quando o garçom “avisa Simon que um senhor o chama”. É o “discurso indireto”, excepcional nos textos da Condessa, pois muito abstrato para seu público infantil. Ele integra a palavra inteiramente à narrativa e em seu tempo, e permite que ela permaneça no plano de fundo, já que ela não nos interessa em si, mas como veículo de informação. E o texto, do início ao fim, pode ser apenas “necessário”, sem chocar a verossimilhança.

Desses três planos do discurso, o teatro e o cinema só tem o segundo mencionado, o “hiperdireto”, e é uma pena.

Passa então no palco, onde reina, ao que parece [4], um eterno presente sem nuances. Mas essas nuances são essenciais ao filme, e é incômodo integrar a uma ação que se desenrola, quando é o caso, no passado (às vezes até mesmo o passado do ensaio) um diálogo que, no tempo em que é dito, nos traz de volta inevitavelmente ao presente. O cinema mudo estava mais à vontade: as passagens de “atalhos” nos filmes falados se inspiram ainda em suas lições – e tornam-se datadas.

Contudo, um exame um pouco mais atento revelaria, em todo filme, a existência discreta, mas certa, dos três tipos de discursos. Para vê-los, eu diria, basta acreditar, e precisamente não acreditamos, como nos mostra a maneira aberrante com que ainda escrevemos os roteiros. Eu não falo da disposição em duas colunas (imagem e som), hoje abandonada: mas apresentar a palavra, seja ela qual for, esteja ela onde estiver, sempre como no “teatro”, não corresponde à variedade de impressões que recebe o espectador durante a projeção de algo filmado. 



É muito natural que a tentação atinja o roteirista, para melhor fechar a realidade definitiva do filme, de usar em certas passagens artifícios “romanescos”, como as aspas ou o estilo indireto. Tentação à qual eu, de minha parte, cedi ao preparar os meus Contos Morais. Eu não o fiz por preguiça, deixando para mais tarde a preocupação de desenvolver uma cena que “me aborrecia” – se me aborrecia desenvolvê-la, era porque ela não tinha lugar enquanto cena, e era necessário então deixá-la com o seu papel e aparência de junção. Cheguei mesmo a rabiscar em estilo direto certas sequências de exposição ou transição, e constatar que o tom e a duração que elas teriam “de maneira verossimilhante” na vida ultrapassavam os limites das suas funções estritas, no interior da economia da narrativa. Para eliminar o acessório com maior segurança, eu tive que apelar para o estilo indireto, e me contentei, no dia da filmagem, em colocar a passagem em “direto”. Assim, no prólogo de Amor à Tarde, encontramos no “papel”:

Quando Fabienne, uma das duas secretárias, chega, estou instalado na máquina batendo uma carta urgente. Ela se desculpa por estar atrasada, mas falo que sou eu que estou adiantado. Ela propõe me substituir. Eu respondo que ainda não tenho o texto definido na cabeça, e que deixarei ela bater de novo, se a datilografia estiver ruim. E que é melhor ela procurar um documento nos arquivos.

Na banda-falada do filme, isso se torna:

Eu: Bom dia, Fabienne.
Fabienne: Estou atrasada?
Eu: Não, sou eu que estou adiantado.
Fabienne: Você quer que eu bata?
Eu: Não, obrigado, eu mesmo faço. Se tiver muitos erros, você bate de novo.
Fabienne: Bom, então vou terminar o dossiê do 20.

A transposição, eu sei, está longe de ser fiel. O segundo texto é mais concreto (“Você quer que eu bata?”), mais escasso de informações (“Eu respondo que ainda não tenho o texto definido na cabeça” desaparece), mais rico de um verossímil sem necessidade (“o dossiê do 20” é homólogo do “duas costeletas ao espinafre” do Sr. Abel).

Mas a passagem pelo indireto permitiu dar ao filme um tom que, na visualização, correspondia mais àquele do primeiro texto que do segundo. Coisa normal, o primeiro sendo feito para leitura, e o segundo para ser entendido em um contexto fílmico que falta aqui.



Nas novelas de Kleist, a parte do estilo indireto é enorme. Todas as pessoas, na Alemanha, que eu conversava a respeito do meu projeto de filmar A Marquesa d’O..., livro em mãos, sem outro roteiro que o próprio texto, numa preocupação com o respeito absoluto [5], levantavam os braços ao céu e me diziam: “Mas o que você fará com o estilo indireto?” Ao que eu respondia que eu me contentaria em remover os subjuntivos, que, em alemão, o caracteriza. Meus interlocutores, então, me explicavam com condescendência, que existe, entre os dois estilos, muito mais que uma diferença de modo verbal, que as palavras utilizadas, a forma das frases, de pensar, não eram as mesmas. Eu replicava que isso também valia para o francês, e não havia me impedido de escrever certas partes dos Contos em estilo indireto, para transcrevê-las em seguida, como eu tinha feito aqui, “Sim, eles diziam, mas Kleist, se ele utiliza o indirekte Rede, é porque tinha suas razões.”- “É por isso que eu tenho as minhas razões para não mudar nada. É precisamente porque ela contém muito discurso indireto que esta história é interessante e fácil de filmar, pois ela própria é um roteiro avant la lettre. Tudo em estilo direto, seria “teatro”. E os diálogos mais difíceis de falar, já que são mais ou menos teatrais, são, certamente, os diretos.


A filmagem confirmou minhas previsões, além do que eu esperava. As passagens em estilo indireto, mais sóbrias, menos marcadas pelas apóstrofes e metáforas da época, pareciam um verdadeiro diálogo de filme. Às vezes, é verdade, a frase, pelo seu comprimento, tomava um caminho que poderia parecer exageradamente literário. Aquela, por exemplo, do anúncio da falsa morte do conde:

O mensageiro que trazia a nova o viu, por seus próprios olhos, mortalmente ferido no peito, transportado para uma aldeia de onde sabemos, por fonte segura, que no mesmo instante em que aqueles que o carregavam o deixaram, ele morreu. 

Cortar a frase seria se aventurar no natural, um natural de dois séculos atrás, que me era desconhecido e que eu não sabia manipular. Ao contrário, a continuidade do texto, que, em parte fora-de-campo, corre sobre toda a cena, dá a ela seu valor de cena de transição. E depois, é tão inverossímil que nesta circunstância grave, um soldado, um mensageiro, se exprima com a concisão de um relato?

No entanto, sobre uma passagem feita de pequenas frases vivas, os atores, até então magníficos, subitamente tropeçavam. É o momento em que a mãe e a filha, de volta do campo, observam a chegada do pai que vem fazer uma reparação honorável:

Uma hora depois, ela retorna, a face em chamas: “Não, é um verdadeiro São Tomás, diz ela com um ar de satisfação interior, um verdadeiro São Tomás incrédulo! Não precisei de uma hora de relógio para o convencer!? Mas agora ele está sentado chorando. – Quem? pergunta a marquesa. – Ele, responde a mãe. Quem, senão aquele que tem os maiores motivos? – Não o papai? exclamou a marquesa. – Como uma criança, replicou a mãe, se bem que, se eu não tivesse que limpar as lágrimas dos meus olhos, eu teria rido assim que eu tivesse atravessado a porta. – E isso por minha causa? perguntou a marquesa. E ela levantou-se. - E eu continuo aqui?... – Não nos moveremos, disse Mme de G.”, etc.

Na medida em que o ensaio seguia seu curso, nós ficávamos cada vez mais empacados nesse trecho. Eu sabia que a evocação de uma ação situada fora do campo cênico, e a aparição esperada do pai pela porta do fundo, não era suficiente para criar esta atmosfera sufocante... De repente, entendi: “É o estilo direto! Aí está porque é tão difícil de falar!” Não aquele estilo direto dos grandes discursos patéticos, coloridos de uma eloquência sempre atual, mas o de uma busca do verossímil tal como o compreendemos na cena dos anos 1800, e que hoje nos parece ingênuo. Mas eu tinha resolvido usar todo o texto. Esse “natural” deveria ser efetivo com o público, como o artificial havia sido em outras sequências. Era mais difícil, mas conseguimos, eu creio, ao recusar cair em suas armadilhas: através de uma dicção mais sensível à música das palavras que ao seu sentido, e que reestabelecia, nesta cena falsamente coloquial, a majestade do estilo culto.



Meu próximo filme, O Romance de Perceval, de Chrétien de Troyes, também pretendo fazer com o “livro nas mãos”. Aqui, pouco de discurso indireto, mas muito de direto, ligado por uma narrativa na qual nenhuma imagem, nenhuma montagem cinematográfica podem substituir o sabor. Eu o conservarei como tal, e o farei ser dito não somente pelos recitadores, mas também pelos protagonistas – que falarão deles mesmos na terceira pessoa, e serão incumbidos, de vez em quando, desse “disse ele” que não tem espaço tanto no cinema quanto no teatro. Mas, de qualquer forma, que sabemos nós?

PERCEVAL
Faz-me cavaleiro, disse ele
Senhor rei, pois partir eu quero.

[1] E dar a ela esta dimensão que nós chamamos “épica”. Como a epopeia da qual ela descende, o romance é uma arte da expressão oral. Não tem muito tempo nós fazíamos ainda, entre adultos, a leitura em voz alta.
[2] João que chora e João que ri
[3] O que é mais irritante para um diretor, durante a filmagem de uma cena de café, que a necessidade que encontra, de ter que servir, por “verossimilhança”, bebidas precisas a seus personagens, com todo o seu cortejo de conotações para as quais não há cura e que o farão ser acusado de pagar tributo à publicidade clandestina. No cinema, a verossimilhança se torna uma necessidade, a primeira de todas, e portanto uma servidão, em que é natural querer libertar-se de seu jugo.
[4] Mencionemos no entanto o discurso lírico, que se manifesta de maneira sensivelmente diferente no coro da tragédia antiga – em que corresponde a uma suspensão do tempo entre as peripécias do drama, e possui uma certa função informativa, ao mesmo tempo que uma verossimilhança de princípio - , e a ária da ópera, que é estagnação, hipertrofia do instante nos pontos fortes da ação, em que o poder da informação e a verossimilhança podem ser tomados por nulos. Surge a necessidade, nos dois casos, de uma outra ordem que aquela da comunicação: o encantamento.
O lirismo também tem, como sabemos, o seu lugar no cinema, ainda que restrito e frequentemente contestado em nome da “pureza”. De qualquer forma ele está, muito mais que no teatro, ligado ao movimento e à dança.
Alguns autores de teatro tentaram variar o discurso através do emprego de diferentes “métricas”. As estrofes de Cid ou de Polyeucte correspodiam simultaneamente a uma suspensão e a um alongamento lírico do tempo. Em La petite Catherine de Heilbronn, Kleist alterna prosa e verso, contrariamente àquilo que podíamos esperar, o verso é empregado para as cenas mais movimentadas, em que o diálogo é mais fragmentado, mais cotidiano, e a prosa para os discursos de um vôo quase lírico.
[5] Na verdade meu roteiro, redigido por razões de ordem diplomática (base de discussão com os produtores e os técnicos), continha, colado atrás de cada folha, a página correspondente do romance: Só ela me serviu.

Le film et les trois plans du discours: indirect/direct/hyperdirect foi publicado originalmente na revista Cahiers Renaud-Barrault nº 96 em outubro de 1977 e republicado na coletânea Le goût de la beuté, organizada por Jean Narboni. Tradução: Cauby Monteiro.

À altura das suas ambições


Por Éric Rohmer


O homem errado
, Alfred Hitchcock, 1956.

François Truffaut lhes expôs, na semana passada
[1], o tema do último filme de Alfred Hitchcock e assinalou sua extrema importância. O homem errado vem satisfazer nossos desejos, para além do que nós ousávamos esperar. O tipo de incompreensão que ele encontrará será, mesmo, das mais lisonjeiras. “É idiota, isso não se parece com nada”, escutávamos aqui, ali, na saída da primeira sessão. Frases desse gênero, qual Manet, qual Matisse, qual Stravinsky não pode se vangloriar de tê-las suscitado?

Depois de ter suportado, bem injustamente, o desprezo com o qual oprimimos os autores ditos “comerciais”, Hitchcock se junta assim ao grupo dos cineastas malditos. Sim, é verdade, isso não se parece com nada, ou, antes, isso se parece estranhamente com o que o cinema, na sua história, produziu de mais ambicioso. Truffaut evocava Bresson. Nós poderíamos adicionar Rossellini ou Orson Welles. Esses metteurs en scène, ou antes, esses autores, dos quais ninguém questiona a intransigência, não se contentam em nos propor um equivalente cinematográfico do romance ou do teatro. Eles criaram um verdadeiro gênero novo que casa, como o faz O homem errado, as virtudes opostas do documento e da fábula. São, cada um à sua maneira, apólogos que comportam uma moral, são contos pouco preocupados com a superficial verossimilhança. Mas essa moral não tem nada de didática, mas essas histórias extraordinárias se pagam o luxo de serem inspiradas em fatos reais. Essa anedota é a mais inverossímil que Hitchcock nos contou, mas como dizia, mais ou menos, Corneille, “ela é possível já que ela foi”.

O extraordinário então não é mais aqui, como nas obras precedentes do nosso cineasta, um meio, um pretexto para desenvolvimentos brilhantes. Ele nos é proposto como tal, como um objeto de estudo. E, refletindo sobre, nós percebemos que ele não é talvez tão extraordinário quanto ele parecia. Nós não seriamos vítimas da mesma ilusão do contrabaixista do Stork Club e de sua mulher, que acreditam que tudo conspira contra eles? O erro de Balestrero, que aposta nas corridas no seu tempo livre, não seria de acreditar muito na sua boa ou má estrela? Há mesmo um verdadeiro milagre? Nada permite negá-lo ou afirmá-lo. O que é certo é que, milagre ou não, não está nas intenções de Hitchcock (não mais que em O homem que sabia demais, sobre o qual eis agora lançadas luzes singulares), a de ridicularizar a ideia da Providência: o que ele zomba, são – segundo o próprio espírito desse cristianismo que impregna profundamente sua obra – os dois pecados teologais da presunção e do desespero.



Visto que a obra solicita essa interpretação teológica, é importante precisar bem as intenções do autor. Elas não são em nada confusas, mas complexas, como é a própria ideia da graça que nos preferimos enormemente, pela nossa parte, a esse Destino literário, calcado na antiguidade, no qual tropeçam cineastas menos originais. Não é tanto o que nos dizem que é preciso considerar, mas o que nos mostram. E as imagens são suficientemente eloquentes. Não há dúvida: esse falso culpado é na realidade um falso inocente, assumindo a culpabilidade, não só de seu sósia, mas da humanidade por completo, compreenda aí o pecado original. Isso, Hitchcock expressa na primeira parte do filme com uma força própria a desencorajar todos aqueles que nutriam a ambição de levar às telas O processo, de Kafka. Contemple o cerimonial, apressado ou meticuloso, desdenhoso ou deferente, abjeto ou solene da justiça, as confrontações através das quais, sob o olhar das testemunhas, o acusado começa a compreender que ele é apenas mais uma coisa entre as outras, esses interrogatórios polidos, mas que lhe tiram toda a veleidade de protestar sua inocência, a lenta comparação das caligrafias, a coleta das impressões digitais, a vergonha da passagem das algemas e do encarceramento. Todas essas imagens nos sopram que esse acusado é um símbolo, símbolo da condição humana, símbolo da Redenção, como o rosto e as atitudes crísticas de Fonda o manifestam claramente. Se houvesse aí apenas cromos sulpicianos, nós teríamos direito de rir. O mérito dessas alegorias é de se mascarar nas aparências modestas do documento. Esse gosto do detalhe verdadeiro, que ia se afirmando desde Janela Indiscreta, encontra um campo ideal. Hitchcock acompanha a evolução exatamente inversa daquela de Rossellini e, curiosamente, aqui seus caminhos se cruzam. Ao tempo trucado do “suspense” se substitui a duração real. Assim como o prisioneiro, nós não sabemos o que o instante seguinte nos reserva. Tudo pode acontecer e é por isso que tudo, mesmo o milagre, acontece.

Hitchcock então, ainda que ele tenha escolhido aqui como roteirista um autor tão estimado quanto Maxwell Anderson, concede mais confiança à mise en scène que às palavras. O gênero alegórico é aquele que comporta mais armadilhas. 
Só são autorizados a usar “figuras”, os cineastas que são, como esses que evocamos, verdadeiros criadores de formas. Sim, claro, Hitchcock é um “formalista”, mas essa palavra não deve de maneira alguma ser levada a mal. Ele o é assim como eram Vinci ou Edgar Poe. É a forma que, nele, está cheia de uma metafísica, visto que existe efetivamente metafísica (ou, senão, ela também não existe em Kafka). É ela que, como ele ama dizer, contém a “mensagem”.



A preocupação dessa forma pôde tomar, em certas obras, o aspecto de um rigor geométrico, menos saliente aqui, mas facilmente discernível. O postulado formal, a figura-mãe desse filme é, naturalmente, a ideia da barreira, do muro: muro dos rostos dos policiais que cortam bruscamente o culpado do mundo exterior, divisórias estreitas dos escritórios e dos locais, lugares reais da ação, onde Hitchcock se obrigou a rodar seu filme. Os quadros são apertados, sufocantes. No furgão da polícia, Balestrero não ousa olhar o rosto daquele ao qual lhe ligam as algemas, e nós só vemos uma fileira de pés, sobre o chão do veículo. Depois, quando a porta gradeada da cela se fecha, alguns olhares para os muros ou os tetos, seguidos de um close móvel em que a câmera tomada pela vertigem efetua uma espécie de dança giratória frente o rosto do acusado, bastam para expressar de maneira sem igual e, sem dúvida, inigualável, o horror do aprisionamento. Uma vez o prisioneiro liberto, sob fiança, sua obsessão não o deixará, no entanto. Ele jogará com as potências ocultas uma espécie de partida de esconde-esconde, ora desembocando em uma mesa vazia, no albergue rural deserto, ora surpreendendo na abertura brusca de uma porta os risos de duas garotinhas que surgem como o Diabo de uma caixa ou os gnomos zombeteiros dos contos de fada. Mas sobretudo, esse filme é um filme de olhares: olhares obstinados e receosos das testemunhas, olhares profissionais dos policiais, do advogado, dos comparsas, olhares de loucura de Vera Milles, olhares de Henry Fonda. Como descrevê-los? São deles, talvez, que jorra mais claramente o significado do filme. E há outras mil belezas, essa majestade ordinária do tom, essas elipses ousadas ou essas lentidões desejadas, mas que não engendram nunca a lassidão, essa cena do espelho quebrado tão brutal e nova na sua decupagem que Hitchcock evocava
[2], nos contando recentemente, Stravinsky e Picasso. E depois, o uso que é feito dos sons, e depois a admirável partitura em duas notas de Bernard Hermann, e então a não menos admirável fotografia em preto e branco de Robert Burks, operador titular de Hitchcock...



Conhecemos a história desses alfaiates, vizinhos de rua, que tinham anunciado sucessivamente o primeiro, como o melhor alfaiate da cidade, o outro do país, um terceiro do mundo. Vem um quarto que se contenta escrever: o melhor alfaiate da rua. Deveria então ser suficiente afirmar que esse filme é o mais belo de todos aqueles que filmou Hitchcock. Mas como a causa desse, ainda que seus espectadores sejam cada vez mais numerosos, não foi ainda de todo ganha, acrescentemos por pleonasmo que ele ocupa um primeiro lugar na história do cinema, o qual, falemos novamente, por pleonasmo, ocupa o primeiro lugar na história do nosso tempo graças, precisamente, a filmes como esse.

[1] Na revista Arts n° 617, primeiro de maio de 1957.
[2]
Na revista Cahiers du cinéma, n° 62, em agosto de 1956.

O artigo A la hauteur de ses ambitions foi publicado originalmente na revista Arts, n° 618, oito de maio de 1957, e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

Público, quantos crimes…



Por Éric Rohmer

Era meia-noite. Eu passava na frente de um cinema. As pessoas saíam. Eu pego esses comentários ao vento:

“Realmente muito bom. Eu não esperava isso.
- Claro, vendo o cartaz…
- Boa surpresa. Vamos voltar.”

Passemos por cima da ingenuidade da última observação. O que me toca é a revelação de uma exigência, de um gosto, neste caso, certeiro (tratava-se de Madrugada da Traição de E.G. Ulmer), da injusta desconfiança que faz crescer em parte do público - maior do que se pensa - uma tão triste publicidade. Entre aqueles para quem a história do cinema não tem mais segredos do que, para um motorista de taxi, o mapa de uma grande cidade, e aquele a quem a visão de um ombro nu ou de um revólver apontado joga irresistivelmente em direção à bilheteria, existe todo um “meio termo”, a multidão daqueles que não sabem cozinhar mas não perdem o bom senso, a quem uma embalagem muito reluzente inspiraria antes dúvidas sobre a qualidade do conteúdo. Que ela entre num cinema por acaso, ou por hábito, que ela não leia, ou leia pouco os críticos, seria mesquinho de nossa parte lhe reprovar. O homem honesto, sabemos, se deixa vestir por seu alfaiate e ser aconselhado pelo seu livreiro. Muitas salas além disso, sem falar naquelas ditas “especializadas”, se circunscrevem numa linha precisa e próximo, talvez, esteja o tempo em que não será tão absurdo escolher um filme pela cor da porta do cinema, quanto um livro por aquela da capa.

Esta compartimentação, praticada desde sempre na livraria, será boa ou ruim? Essa é uma outra história. Eu sei que se, entre nós, a mercadoria é vendida a granel, não é sempre por falha do comerciante: não existe, no domínio do filme, entre o abacaxi e a obra-prima, divisórias análogas àquelas que se colocam entre a literatura que se pretende enquanto tal e o romance para garotinhas. O que é próprio do cinema é ser ainda uma arte popular, virtude, ou defeito, que o protegeu do esoterismo. Eu desconfio dos filmes que se propõem, desde o início, a lisonjear apenas a elite. Mas se é vão levantar, à todo preço, as barreiras, isso não é razão para embaralhar ainda mais as cartas. Nos tiraram todas as pistas pelas quais uma obra de gosto pode se revelar aos olhares não advertidos. Isso encanta os amantes de caça ao tesouro que somos, mas o bom, o honesto público, podemos imaginar que ele só tenha, nos seus fins do dia e seus fins-de-semana, uma paixão bem moderada por essas partidas de “tá quente, tá frio”.

Quantas vezes um cartaz vulgar, um título ridículo resfriou mais espectadores do que, de fato, seduziu. Eu conheço tal e tal pessoa nem puritana, nem pedante, nem presunçosa, para quem o título La Fureur de vivre [1] (em inglês Rebel Without a Cause) é uma barreira suficiente, se ela não possui outro critério. Um dos meus confrades, cuja ternura por Hollywood nunca foi muito viva, fundamentou o essencial da sua argumentação sobre a simples citação dos nomes atribuídos pelos distribuidores franceses aos filmes que ele queria demolir. Nosso amor por certas comédias americanas não é daqueles que um nome feio é suficiente para resfriar: Defender Madame porte la culotte [2] (Adam’s Rib) ou Chérie, je me sens rajeunir [3]
(Monkey Business), é se encarregar de uma deficiência que você se dispensaria de ter que voltar a insistir.







Me responderão que o que é 
próprio de uma pessoa de bom gosto é não se deixar levar pela ostentação da fachada, nem em um sentido nem no outro. A publicidade, que isso fique bem entendido, se endereça somente aos simplórios, ao rebanho vulgar. Qual é o número, o rosto deste último? Em quais subúrbios longínquos, qual zona rural selvagem iremos encontrá-lo? Longe de mim a ideia de negar sua importância, que eu suspeito no entanto, na nossa doce França, nação mais culta do mundo, menor do que se pensa. É da elite, sozinha, que se trata por enquanto. Ela é muito dona de si para superar uma primeira repugnância, muito curiosa para se informar, inteligente demais para se deixar levar por outros argumentos além daqueles da mais saudável retórica. Que seja, eu aceito. Como só podemos pegá-la por cima, é inútil ou complicado demais se ocupar com ela: resta lisonjear a multidão pelos meios mais baixos. Eu aceito de novo, mas que me seja permitido me espantar que, na nossa parte, o cinema, é na direção da primeira onda do público, aquele das salas de exclusividade [4] que a publicidade emprega suas mais potentes e suas mais berrantes baterias. Mais tarde, nos bairros, nas províncias, devoraremos o prato do dia sem reclamar. Vocês devem ter notado que num país tão atento quanto a América ao sacrifício nos altares do comércio, os títulos são mais discretos que os nossos. Sinal de uma melhor educação? Ao menos, é o que parece: a atração da vedete é semelhante e o concerto da publicidade é tão estrondoso que ignoramos esta isca suplementar que é um cabeçalho barulhento.

Este público “livre” dos Champs-Élysées, pode ser que eu o superestime, e porém… A prova de que ele não é tão estúpido quanto parece é que certos exibidores, mudando a estratégia, preferiram apostar no seu esnobismo. Um título em língua estrangeira, breve e fácil de pronunciar, rende melhor que o seu estrito equivalente na nossa língua. Nomes como La red, La strada, Senso, Okaasan, se não acrescentam nada ao sucesso dos filmes que designam, não contribuíram pouco a adorná-los com uma auréola de boa qualidade. O diretor tem direito no cartaz a letras do mesmo tamanho daquelas que designam as vedetes. E isso é justiça.

Mas, pois há, infelizmente, um mas, seria lamentável que um excesso desajeitado de zelo não falisse esta política saudável que estes senhores do comércio decidiram praticar. A inacreditável algaravia na qual são redigidos certos “comunicados” publicitários não pode ter outro efeito além de irritar o leitor. Que o filme tenha direito, ao menos, à mesma consideração que as capas de chuva, o creme de barbear e outros produtos muito mais inteligentemente e elegantemente defendidos. Que me perdoem de evocar aqui a fábula do asno e do cão… Que valor atribuir a um julgamento anônimo, se o estilo no qual ele é redigido, a falta de jeito das referências com as quais ele se orna é feita para excitar o sorriso desta parte precisa do público, à qual ele tem a pretensão de se endereçar?

Estas notas se pretendem parciais: o que eu tenho não é contra a publicidade em si. Ela é bem melhor do que um mal necessário. É um fato da vida moderna ao qual nós somos devedores tanto das vantagens quanto dos inconvenientes. Desde Émile de Girardin, a imprensa lhe deve a sua potência e, em certa medida, a independência que ela goza. Diante dessas engrenagens pintadas que sujam nossas vilas, nós temos, eu creio, cartazes bons e prazerosos o suficiente para propor. E depois, é um fato constante que as melhores casas tomaram sempre por questão de honra usar o reclame mais sóbrio e mais sutil. Por quê, só no nosso domínio, é preciso que a lei seja tão frequentemente contradita? Minha decepção é grande, confesso, de ver o cinema, este cinema que eu amo demais para não desejá-lo puro de qualquer contaminação mesmo que involuntária, ser, deste lado, tomado pela calúnia. Eu sei que ele deve a sua ascensão, sua vitalidade, muito do seu valor de arte, ao estreito contato que ele mantém com o grande público: sim, essa ligação, é preciso, sem cessar, consolidá-la, alimentá-la: mas, de verdade, é necessário ser tão rude, tão grosseiro? Eu não posso acreditar. Isso não pode ser nada além do efeito de algum mal-entendido prejudicial a todos, consumidores como produtores, e que eu queria o mais cedo possível ver dissipado.

*O titulo do artigo, faz referência à celebre exclamação de Madame Roland diante da guilhotina: “Liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome". (Neste texto, todas as notas são do tradutor) 

[1] Tradução literal: O Furor de Viver. No Brasil, Juventude Transviada
[2] Tradução livre : A senhora que veste as calças na casa. No Brasil, A costela de Adão.
[3] Tradução literal: Querida, eu me sinto rejuvenescer. No Brasil, O inventor da mocidade.
[4] Dedicadas às etreias dos filmes.

Public, que de crimes… foi publicado originalmente na revista Arts nº 575 em 4 de julho de 1956 e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe.Tradução: Miguel Haoni.

Sinceridade no artifício



Noites Brancas (Luchino Visconti, 1957)

Por Éric Rohmer

Luchino Visconti é um homem de teatro. Um daqueles que mais brilhantemente colaborou na regulação - definitiva ou momentânea - da famosa querela de nossa idade escolar entre a arte do palco e a da tela. Pensar em termos de teatro, antes de registrá-la com a câmera, a obra do mais puro de todos os romancistas, não somente não deve causar verdadeiro espanto, mas pareceu, neste caso, a única solução possível. Convinha prevenir-se ao mesmo tempo da armadilha da reconstituição histórica ou geográfica e a do realismo. Logo, Visconti se mostrou fiel como nunca a Dostoiévski reduzindo à escala dos estreitos canais de Livorno as vastas perspectivas do Neva, substituindo as noites brancas do verão russo pelas noites betuminosas do inverno italiano, encerrando a narração do romancista no prisma rigoroso da deformação cênica. Notemos que nisso ele não faz mais que seguir o exemplo de um outro russo, Constantin Stanislavski, um dos grandes nomes do teatro moderno e cujas adaptações de Dostoiévski um dia foram o auge do Teatro de Arte de Moscou.

Logo, a partir do momento em que era preciso deixar o literal em favor de um sistema de equivalências - é de propósito que emprego este termo stanislavskiano - não podemos imaginar tradução mais feliz, mais rica em achados de toda espécie. Em meu balanço de Veneza, no setembro passado, tinha comparado o filme a uma série de variações sobre um tema dado. Uma segunda visão - desta vez em versão francesa - continua a me sugerir a mesma imagem, se bem que não deixo de ficar um pouquinho mais sensível, hoje, à gratuidade de todas essas ideias. E, contudo, um empreendimento como o de Visconti não pode se justificar senão pela qualidade, e mesmo pela quantidade de ideias que contém.

O filme me seduz e me irrita - é totalmente impossível falar disso objetivamente -, por uma razão que, creio, é a seguinte: assim como Gautier acreditava na arte pela arte, Visconti acredita na mise en scène pela mise en scène; porém tal crença implica uma certa crença no homem, num homem "de mise en scène", um pouco como a técnica, cara aos romancistas americanos, do "comportamento" postula a existência de um homem do comportamento. É isto que faz a força e a fraqueza de nosso cineasta. Em seu mundo amoral e rigoroso são privilegiadas as ações que se prestam melhor a uma mise en scène e - podemos acrescentar - na medida mesmo em que se prestam a ela. Os sinais exteriores da emoção serão assim colocados sistematicamente em evidência, a tal ponto que as personagens não terão preocupação mais clara que a de entregar-se a ela com o máximo de impudor. É verdade que Visconti demonstra uma predileção, aqui como em Senso, pelos seres frouxos, sensíveis às influências exteriores, cuja paixão toma a forma de uma tração incontrolável. Ao mesmo tempo, porém, acontece que heróis mais donos de seus nervos ou, se quisermos, mais livres, não saberiam fornecer fermentos tão ricos à sua inspiração.



Resumindo, se a dupla espessura dos seres dostoievskianos toma aqui mais frequentemente a forma da pura e simples duplicidade, se a comédia que se encena aqui está longe de se colocar no mesmo nível - digamos metafísico - daquela que interessa ao romancista, não é exatamente que Visconti seja incapaz de nos fazer remontar das aparências à alma, mas que, por sua vez, na alma ele crê muito pouco.

Logo, é preciso aceitar ou recusar Visconti, sua arte e seu universo; adivinha-se que aceito-o somente pela metade. Mas minha crítica só pode funcionar segundo o postulado de base, resultando o resto com uma lógica implacável. Por exemplo, a escolha de Maria Schell, canastrona até não poder mais, é uma escolha feliz ou não? Tal escolha, que poderá injuriar muitos espectadores, os levará no entanto muito longe, a terras amargas de certa misoginia, essa tão cara ao metteur en scène de Bellissima quanto o gosto pela mulher-criança foi natural ao autor dos Karamazov. Tal é o viés pelo qual, neste filme recheado de artifícios, irrompe a sinceridade.

Agora, se preferirem que outros corações lhes sejam abertos - assim revelada uma outra forma de cinema - há somente o embaraço da escolha. Vão, por exemplo, rever Bonjour Tristesse.

Sincerité dans l’artifice foi publicado originalmente na revista Arts nº 670 em 4 de maio de 1958 e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe. Tradução: Eduardo Savella.