Público, quantos crimes…



Por Éric Rohmer

Era meia-noite. Eu passava na frente de um cinema. As pessoas saíam. Eu pego esses comentários ao vento:

“Realmente muito bom. Eu não esperava isso.
- Claro, vendo o cartaz…
- Boa surpresa. Vamos voltar.”

Passemos por cima da ingenuidade da última observação. O que me toca é a revelação de uma exigência, de um gosto, neste caso, certeiro (tratava-se de Madrugada da Traição de E.G. Ulmer), da injusta desconfiança que faz crescer em parte do público - maior do que se pensa - uma tão triste publicidade. Entre aqueles para quem a história do cinema não tem mais segredos do que, para um motorista de taxi, o mapa de uma grande cidade, e aquele a quem a visão de um ombro nu ou de um revólver apontado joga irresistivelmente em direção à bilheteria, existe todo um “meio termo”, a multidão daqueles que não sabem cozinhar mas não perdem o bom senso, a quem uma embalagem muito reluzente inspiraria antes dúvidas sobre a qualidade do conteúdo. Que ela entre num cinema por acaso, ou por hábito, que ela não leia, ou leia pouco os críticos, seria mesquinho de nossa parte lhe reprovar. O homem honesto, sabemos, se deixa vestir por seu alfaiate e ser aconselhado pelo seu livreiro. Muitas salas além disso, sem falar naquelas ditas “especializadas”, se circunscrevem numa linha precisa e próximo, talvez, esteja o tempo em que não será tão absurdo escolher um filme pela cor da porta do cinema, quanto um livro por aquela da capa.

Esta compartimentação, praticada desde sempre na livraria, será boa ou ruim? Essa é uma outra história. Eu sei que se, entre nós, a mercadoria é vendida a granel, não é sempre por falha do comerciante: não existe, no domínio do filme, entre o abacaxi e a obra-prima, divisórias análogas àquelas que se colocam entre a literatura que se pretende enquanto tal e o romance para garotinhas. O que é próprio do cinema é ser ainda uma arte popular, virtude, ou defeito, que o protegeu do esoterismo. Eu desconfio dos filmes que se propõem, desde o início, a lisonjear apenas a elite. Mas se é vão levantar, à todo preço, as barreiras, isso não é razão para embaralhar ainda mais as cartas. Nos tiraram todas as pistas pelas quais uma obra de gosto pode se revelar aos olhares não advertidos. Isso encanta os amantes de caça ao tesouro que somos, mas o bom, o honesto público, podemos imaginar que ele só tenha, nos seus fins do dia e seus fins-de-semana, uma paixão bem moderada por essas partidas de “tá quente, tá frio”.

Quantas vezes um cartaz vulgar, um título ridículo resfriou mais espectadores do que, de fato, seduziu. Eu conheço tal e tal pessoa nem puritana, nem pedante, nem presunçosa, para quem o título La Fureur de vivre [1] (em inglês Rebel Without a Cause) é uma barreira suficiente, se ela não possui outro critério. Um dos meus confrades, cuja ternura por Hollywood nunca foi muito viva, fundamentou o essencial da sua argumentação sobre a simples citação dos nomes atribuídos pelos distribuidores franceses aos filmes que ele queria demolir. Nosso amor por certas comédias americanas não é daqueles que um nome feio é suficiente para resfriar: Defender Madame porte la culotte [2] (Adam’s Rib) ou Chérie, je me sens rajeunir [3]
(Monkey Business), é se encarregar de uma deficiência que você se dispensaria de ter que voltar a insistir.







Me responderão que o que é 
próprio de uma pessoa de bom gosto é não se deixar levar pela ostentação da fachada, nem em um sentido nem no outro. A publicidade, que isso fique bem entendido, se endereça somente aos simplórios, ao rebanho vulgar. Qual é o número, o rosto deste último? Em quais subúrbios longínquos, qual zona rural selvagem iremos encontrá-lo? Longe de mim a ideia de negar sua importância, que eu suspeito no entanto, na nossa doce França, nação mais culta do mundo, menor do que se pensa. É da elite, sozinha, que se trata por enquanto. Ela é muito dona de si para superar uma primeira repugnância, muito curiosa para se informar, inteligente demais para se deixar levar por outros argumentos além daqueles da mais saudável retórica. Que seja, eu aceito. Como só podemos pegá-la por cima, é inútil ou complicado demais se ocupar com ela: resta lisonjear a multidão pelos meios mais baixos. Eu aceito de novo, mas que me seja permitido me espantar que, na nossa parte, o cinema, é na direção da primeira onda do público, aquele das salas de exclusividade [4] que a publicidade emprega suas mais potentes e suas mais berrantes baterias. Mais tarde, nos bairros, nas províncias, devoraremos o prato do dia sem reclamar. Vocês devem ter notado que num país tão atento quanto a América ao sacrifício nos altares do comércio, os títulos são mais discretos que os nossos. Sinal de uma melhor educação? Ao menos, é o que parece: a atração da vedete é semelhante e o concerto da publicidade é tão estrondoso que ignoramos esta isca suplementar que é um cabeçalho barulhento.

Este público “livre” dos Champs-Élysées, pode ser que eu o superestime, e porém… A prova de que ele não é tão estúpido quanto parece é que certos exibidores, mudando a estratégia, preferiram apostar no seu esnobismo. Um título em língua estrangeira, breve e fácil de pronunciar, rende melhor que o seu estrito equivalente na nossa língua. Nomes como La red, La strada, Senso, Okaasan, se não acrescentam nada ao sucesso dos filmes que designam, não contribuíram pouco a adorná-los com uma auréola de boa qualidade. O diretor tem direito no cartaz a letras do mesmo tamanho daquelas que designam as vedetes. E isso é justiça.

Mas, pois há, infelizmente, um mas, seria lamentável que um excesso desajeitado de zelo não falisse esta política saudável que estes senhores do comércio decidiram praticar. A inacreditável algaravia na qual são redigidos certos “comunicados” publicitários não pode ter outro efeito além de irritar o leitor. Que o filme tenha direito, ao menos, à mesma consideração que as capas de chuva, o creme de barbear e outros produtos muito mais inteligentemente e elegantemente defendidos. Que me perdoem de evocar aqui a fábula do asno e do cão… Que valor atribuir a um julgamento anônimo, se o estilo no qual ele é redigido, a falta de jeito das referências com as quais ele se orna é feita para excitar o sorriso desta parte precisa do público, à qual ele tem a pretensão de se endereçar?

Estas notas se pretendem parciais: o que eu tenho não é contra a publicidade em si. Ela é bem melhor do que um mal necessário. É um fato da vida moderna ao qual nós somos devedores tanto das vantagens quanto dos inconvenientes. Desde Émile de Girardin, a imprensa lhe deve a sua potência e, em certa medida, a independência que ela goza. Diante dessas engrenagens pintadas que sujam nossas vilas, nós temos, eu creio, cartazes bons e prazerosos o suficiente para propor. E depois, é um fato constante que as melhores casas tomaram sempre por questão de honra usar o reclame mais sóbrio e mais sutil. Por quê, só no nosso domínio, é preciso que a lei seja tão frequentemente contradita? Minha decepção é grande, confesso, de ver o cinema, este cinema que eu amo demais para não desejá-lo puro de qualquer contaminação mesmo que involuntária, ser, deste lado, tomado pela calúnia. Eu sei que ele deve a sua ascensão, sua vitalidade, muito do seu valor de arte, ao estreito contato que ele mantém com o grande público: sim, essa ligação, é preciso, sem cessar, consolidá-la, alimentá-la: mas, de verdade, é necessário ser tão rude, tão grosseiro? Eu não posso acreditar. Isso não pode ser nada além do efeito de algum mal-entendido prejudicial a todos, consumidores como produtores, e que eu queria o mais cedo possível ver dissipado.

*O titulo do artigo, faz referência à celebre exclamação de Madame Roland diante da guilhotina: “Liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome". (Neste texto, todas as notas são do tradutor) 

[1] Tradução literal: O Furor de Viver. No Brasil, Juventude Transviada
[2] Tradução livre : A senhora que veste as calças na casa. No Brasil, A costela de Adão.
[3] Tradução literal: Querida, eu me sinto rejuvenescer. No Brasil, O inventor da mocidade.
[4] Dedicadas às etreias dos filmes.

Public, que de crimes… foi publicado originalmente na revista Arts nº 575 em 4 de julho de 1956 e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe.Tradução: Miguel Haoni.

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