Grande papai?




Sobre A vida é bela de Roberto Benigni

Por Hélène Frappat

Não vale a pena se perder nos caminhos balizados de debates que, inaugurados no fim dos anos cinquenta, parecem ser, contudo, desconhecidos para o realizador. Nenhuma necessidade, então, de submeter o filme à luz de um problema que ele nunca se deu o trabalho de se colocar: onde o cineasta deve posicionar a fronteira tênue entre a estética e a ética numa obra que busca representar uma experiência – essa do genocídio perpetrado pelos nazistas – que sua barbárie torna, senão irrepresentável, ao menos dificilmente figurável por qualquer ficção?

Eu falarei da mesma coisa mas de uma outra forma.

O pai de uma família italiana ordena que seu filho lhe obedeça incondicionalmente e que nunca questione nem essa obediência que ele lhe deve nem o sistema de regras e de representações ao qual o filho é obrigado a aderir. (Isso não vos lembra de algo?) Cada uma dessas regras substitui a realidade por uma das suas possíveis representações. Exemplo: o pai substitui a realidade de uma deportação forçada pela escolha lúdica de um jogo de tabuleiro (ele substitui a realidade de uma perda pela fantasia de um ganho: que vença o melhor). O pai substitui o desaparecimento das crianças deportadas, eliminadas desde a sua chegada no campo, pelo jogo de esconde-esconde de outras crianças, os únicos que restam vivos visto que eles são os filhos e filhas dos dirigentes nazistas do campo. (Por isso o filme – e não somente seu personagem – opera um dos seus numerosos truques de magia, nos fazendo engolir a coexistência, perante os olhos dos guardas, dos deportados com uma das suas crianças que, teria escapado do massacre. A verossimilhança pode ser contradita numa narrativa, desde que ela seja respeitada pela metade.)
   

O credo paternal não procede tanto por desvio que por negação: o pai desvia menos as regras do universo concentracionário (no lugar de regras, seria melhor falar de objetivo: o desaparecimento em mais ou menos curto prazo de todos os deportados) quanto ele as nega pura e simplesmente. Trata-se de despistar. Dessa forma, quando o filho se pergunta, antes da guerra, sobre a presença de um cartaz que cobre a vitrine de uma loja – “Proibido judeus” -, o pai lhe explica que podemos variar essa proibição fantasista infinitamente: “Proibido cães, esquimós, girafas, etc.” Afinal, nenhuma regra provém da lei que a teria decretado – em outras palavras, de uma comunidade política -, mas somente do desejo absolutamente subjetivo de um pai e seus acólitos – em outras palavras, do pseudo-clube de férias com o qual ele obriga que seu filho sonhe, no lugar do campo para o qual eles foram deportados. 



Pois o pai delira e isso não é de ontem, com Mussolini, Hitler e suas leis antissemitas: a mecânica burlesca do personagem e das situações consiste, desde o começo, num jogo sistemático de disfarces e de negações (tudo que, segundo Benigni, pertence evidentemente às transfigurações mágicas que resultam dos contos de fada). Em A vida é bela, os papéis não param de se trocar: o camponês se faz passar por um príncipe, elevando sua noiva professora à categoria de principessa, o garçom judeu se transforma, no tempo da visita a uma escola, em inspetor fascista obrigado a improvisar uma aula sobre a superioridade ariana (essa é, aliás, a única pantomima verdadeiramente engraçada do filme). Esse princípio de commedia dell’arte – o jogo de esconde-esconde e de disfarces como mola cômica-, que funciona de maneira mais lenta na primeira parte do filme (a vida antes da deportação), é transposta tal qual no cenário do campo. Isso quer dizer que no palco desse cenário a fábula continua a se desenrolar?

Contudo A vida é bela não é esse conto, esse apólogo na linha de Capra ou de Chaplin cuja crítica entusiasta teceu o elogio. Nem a mise-en-scène que, particularmente na segunda parte do filme, tropeça em questões realistas de verossimilhança (por medo de radicalizar a forma do conto de fadas, e por vergonha diante do cenário que ele escolheu, Benigni hesita sem cessar entre a pantomima burlesca, na linha das comédias musicais e de seus artifícios, e a intriga dramática realista da qual ele só respeita pela metade os imperativos de narrativa e de mise-en-scène), nem o assunto propriamente dito contribuem para criar um conto. E qual seria aliás a moral? Que é preciso permanecer otimista apesar dos golpes duros do destino? Que os mentirosos são sempre punidos no final? (Pois o pai não é salvo.) Que os contadores de histórias são os verdadeiros heróis do nosso tempo? (Contudo o pai não é salvo.) Que a credulidade é a primeira das virtudes, e não somente em tempos de guerra? Que é preciso sempre obedecer a seu papai?...

Enfim. Tente multiplicar as morais do “conto”: entre esses lugares comuns inesgotáveis e contraditórios, uma gata não encontraria seus filhotes [1]. Então o que anima A vida é bela? Através de qual truque manifesto de mágica Benigni substituiu o seu verdadeiro assunto por uma pseudo-fábula sobre a barbárie nazista? Alguns – e Benigni é o primeiro – compararam o seu filme ao Grande Ditador; mas Chaplin por sua vez tinha decidido que não seria no mesmo filme que Carlitos encontraria uma criança para educar, e de perseguições contra as quais lutar. O grande ditador e O garoto: dois filmes distintos que, do ponto de vista burlesco das situações, não partem do mesmo problema. Pois o assunto de A vida é bela, longe da exterminação dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial (suponhamos: “uma fábula, apesar de tudo, otimista sobre a barbárie”), consiste antes na tentativa de um pai de família italiana de “ser bem sucedido” na educação de seu filho. Desse ponto de vista, o filme se passaria na Lapônia, durante as guerras napoleônicas, numa reserva indígena, ou, simplesmente, numa vila toscana (escutando o filme de Benigni, eu pensei que as variações nos sotaques constituíam uma espécie de equivalente italiano do humor judeu), ele não seria pior. Nenhuma necessidade do campo de concentração (os personagens de A vida é bela escapam miraculosamente do campo de exterminação, o que nos evita a sequência “se você sair vivo da câmera de gás, você ganha mil pontos”): só mesmo assim para que o cenário acessório de uma história cujo ambiente necessário se situe mais provavelmente entre Florença e Roma.        



No coração do conto – ou da mentira -, repousa um outro conto, que o filho repetirá por muito tempo, depois da morte do pai, e que, para o espectador, fecha o apólogo: A vida é bela é a história de um sacrifício, nos diz o filho, o sacrifício de um pai, na sua imensa dedicação, para salvar seu filho da confrontação com o horror. Tal é o derradeiro truque de mágica do Benigni realizador e ator: fazer passar as fábulas que um pai ordena que seu filho acredite pelo sacrifício de um genitor (como diz a língua italiana). É sobre esse sacrifício, elevado no plano final ao estatuto de ato heroico, que o filho e os espectadores devem derramar suas lágrimas. A história é antiga, e bem conhecida pelos italianos (sobretudo pelas mães, mas Benigni se livrou oportunamente do personagem da mãe desde sua chegada no campo): criar suas crianças é, o que quer que façamos, se sacrificar por elas – que devem ao menos aos seus genitori seu tributo de gratidão. Esse é o assunto de A vida é bela: o mito da educação como sacrifício – ele torna seu cenário bem arbitrário.

O filho deve então se curvar sem protestar ao delírio de seu pai, que poderíamos qualificar stricto sensu de negacionista (negacionismo: substituir a realidade pelos seus próprios desejos, aparar as arestas, negar a morte preparada pelos carrascos e lhe substituir por um outro complô, aquele das vítimas). É preciso compreender bem: de tanto não refletir sobre o que, verdadeiramente, o anima, A vida é bela é um filme negacionista a despeito de si mesmo, um filme “contra o fascismo” cuja mensagem reversível não é outra senão a própria injunção mussoliniana. Obedeça o vosso pai, seja qual for a fábula que ele vos conta, respeite sempre suas ordens, não porque elas são justas mas porque elas emanam do próprio Pai. Grande Papai. No seu último filme, Oliveira maneja com uma ironia muito diferente a história de um pai que, enlouquecido, ordena seu filho uma obediência incondicional: entre a injunção de sempre acreditar no seu pai (A vida é bela) e a injunção de obedecê-lo, até se suicidar já que ele o ordena (Inquietude – o pai sabe o que é bom para seu filho; por isso ele exige que ele ponha fim aos seus dias: “Mate-se!”), somente a causticidade de Oliveira, de uma impecável desenvoltura, exibe incontestavelmente a figura monstruosa do Grande Papai (assim lhe apelidaram seu filho e toda a nação portuguesa...). O ogro que, nos contos de fadas os quais Benigni contudo reinvindica, termina invariavelmente por devorar seus pequenos. O ogro que, para nós que crescemos, permanece um assunto de inquietude.

Oliveira não tem vergonha de seus monstros: como num conto, a guerra dos pais contra seus pequenos (crianças ou assuntos, visto que o pai governa tanto seus filhos quanto seu país), a rivalidade dos pais e das crianças, a violência surda ou explícita que dilacera as famílias, constituem o ponto de partida obrigatório, as figuras totêmicas de um filme cuja mise-en-scène retrabalha incansavelmente o tema. O ogro quer que seu filho seja parecido com ele (um pouco pior: o filho deve ser morto e o pai permanecer vivo): ele lhe ordena a obedecer às suas próprias representações que resumem-se em uma frase: “Suicide-se!”. O filho está dividido entre seu dever de obediência – Grande Papai é ainda assim um Grande Homem –, e a intuição de que, por trás dessa representação, se esconde sem dúvida uma ideia fixa. O tipo de ideias um pouco loucas que, apesar do seu caráter obsessivo (o pai planificou integralmente a morte de seu filho, até o mínimo detalhe...), não fazem uma lei. Mas como a Lei poderia ela ser distinta do pai? É o tipo de dilema que, em seu tempo, Pele de Asno teve que resolver.

Verdade do conto: os ogros querem que os inocentes os imitem em tudo (eis mesmo, em matéria de educação, a questão principal de inquietude...): é por isso que Oliveira faz de seu filme (mais precisamente da primeira parte de Inquietude) a representação que os atores dão em um palco de teatro. Assim os corpos – o filho assassinado, o pai que se suicidou – se degringolam ao longo de uma cortina que não é outra que aquela, vermelha, do palco. A imitação é esse jogo sobre a mentira por onde advém a verdade da fábula. O teatro constitui então a verdade de uma narrativa onde o filho deve imitar, em tudo, o pai. Lógica do tema e da mise-en-scène: o filme é belo, na falta da vida.



Só há verdade do conto com a condição de que o ponto de vista do filme nos forneça-a: esse ponto de vista não é aquele da narrativa, menos ainda aquele dos personagens, mas a própria lógica que comanda – organiza – a relação entre o tema e a mise-en-scène. A vida é bela é dominado pelo ponto de vista onipresente do pai (com exceção de uma das últimas sequências na qual o campo, desertado pelos guardas, aparece bruscamente sob o olhar do filho): se confundem aí a autoridade de um cineasta e de um personagem, que impõem sua lei. É porque o realizador se funde integralmente com o seu personagem, sem jamais introduzir a mínima distância ou dissonância, que ele chega – apesar dele mesmo – a produzir um filme negacionista. (Moral do conto: expulse o ogro pela porta da frente...) Em outras palavras, um filme que, centrado em um personagem obstinado a negar o que existe, termina ele mesmo por negar o que existiu. Testemunha disso é a última trucagem ilusionista desejada por Benigni: a liberação do campo... por dois G.I. americanos. Aos soldados russos que efetivamente liberaram os campos na Polônia, Benigni escolhe substituir por dois representantes da rede “Toys ‘R’ Us” que vêm trazer para a criança a sua recompensa: um tanque novinho em folha. Assim o cineasta ainda dá razão ao seu personagem depois que ele deixou o filme.

Prisioneiros desse jogo de pistas – olhando de mais perto, ele se parece menos às fantasias dos contos que às caças ao tesouro ilusórias da tv berlusconiana -, nós deveríamos acreditar, e obedecer.

Joker!

[1] NdT.: No original, « une chatte ne rencontrerait pas ses petits », expressão francesa que designa um lugar muito bagunçado, de grande desordem.

O artigo Grand Papa ? foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n° 9, primavera de 1999. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

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