A caixa de Eurídice




Sobre A Vida Invisível de Eurídice Gusmão

Por Letícia Weber Jarek

Num melodrama ideal, ao lado dos amantes e vilões arquetípicos, dos silêncios e olhares eloquentes, entre breves encontros e separações inevitáveis, o mar se insurge como um personagem principal. Como um espelho sentimental de suas protagonistas, é nesse horizonte ondulante que suas inquietações se projetam e na beira do qual elas escolhem vagar eternamente ou enfim se entregar. Nada mais justo, então, que situar a costa fluminense como fundo e ponto de fuga dos olhares das heroínas de A Vida Invisível, melodrama tropical segundo Karim Aïnouz. Irmãs inseparáveis e em tudo distintas, Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) sofrerão ao longo do filme diversas cisões, mortes, desvios que afastarão cada vez mais uma da outra – restando apenas um mesmo horizonte: o mar como ponto de encontro sonhado, superfície onde convergem esses destinos irrealizados (o romance de Guida na Grécia, o sucesso de Eurídice em Viena).

Nesse sentido, os primeiros minutos do filme evidenciam a matriz que subjaz toda a narrativa: os laços que unem essas duas mulheres. Do pesadelo à beira mar, em que Eurídice se perde de sua irmã, se sucedem as cenas da família reunida em torno do piano e das confissões de Guida no quarto das meninas. Essa conversa, imersa numa atmosfera íntima e impregnada de perfume e mormaço, é o primeiro e último momento em que as vemos juntas, felizes; vestidas em combinações desajustadas, inclinadas sobre si mesmas, a irmã mais velha instrui a mais nova das suas desventuras sexuais enquanto chupa despreocupadamente uma laranja. Dando sequência ao prenúncio do sonho, essa cena desvela não só os laços que as ligam, mas igualmente o que sustenta o próprio movimento da narrativa: a possibilidade de um reencontro futuro, da volta a esse momento primordial em que elas são só duas meninas, duas irmãs – nem esposas, nem mães. Muito além das desilusões amorosas e sacrifícios femininos, A Vida Invisível expõe esse laço feminino que, paradoxalmente, encontra apenas um signo visível nas cenas seguintes: o par de brincos compartilhado entre as duas mulheres. Contra tudo e contra todos, o filme narra a história de amor de Guida e Eurídice.

Como é de praxe nos melodramas, os desastres não são poucos e a violência não tem limites. Karin parece desnudar os entremeios do gênero, aquilo que se esconde por trás das elipses: a trivialidade do sexo, a urgência impensada e gosmenta dos homens que vivem em pura imanência, num esquema convulsivo de repressão que ceifa as protagonistas na eminência do voo – característica perfeitamente incarnada por Gregório Duvivier que se debruça, infantilmente, sobre a pianista que busca, ao tocar, uma espécie de transcendência. Poderiam dizer que A Vida Invisível peca ao carregar nas tintas dessa violência suportada pelas mulheres como, por exemplo, na cena do estupro na noite de núpcias ou da prostituição de Guida pelo remédio de sua companheira (na boca do cliente, ela é “uma galinha de campina”). Poderíamos pensar que assumimos uma posição masoquista face à acumulação angustiante desses eventos desastrosos, enquanto o realizador se diverte no comando desse aparelho sádico que tortura as mulheres. Porém, se nos determos nas cicatrizes e feridas, corremos o risco de não compreender esse melodrama, de não chegarmos nem perto do seu coração. É curioso, aliás, que a recepção do filme foi marcada por um certo complexo puritano: para alguns, esses retratos femininos não se adequam perfeitamente aos moldes do sacrifício maternal, para outros, não respondem a um discurso unívoco da força e, sobretudo, da vitória das mulheres. Ambos espectadores saem então insatisfeitos e revoltados da projeção, cada qual com um ideal nas mãos. 



Em A Vida Invisível, há o choro insistente das crianças e a fadiga declarada das mães, cansaço físico e existencial dessas mulheres que terminam perdedoras, esvaziadas como Eurídice. Do outro lado da tela, irrompem as lágrimas. E é assim, nessa mistura aquosa de revolta, tristeza e cansaço, que o coração do melodrama se revela timidamente para seus espectadores. Ainda nos anos 80, esses “filmes de mulher”, dentre eles os melodramas, foram estudados pelas feministas que interrogaram, justamente, a natureza dessas lágrimas: nós, espectadoras, nos identificamos tão profundamente com esse choro triunfante do sacrifício, como o de Stella Dallas, que não temos a habilidade de criticar ou de resistir a esse discurso? Nas palavras de Linda Williams, não seria uma “terrível subestimação da espectadora presumir que ela é totalmente seduzida por uma crença ingênua nessas imagens masoquistas”[1]? Ora, objetariam que traímos o melodrama ao defender uma leitura de segundo grau, mas e se esses filmes não fossem apenas “imagens masoquistas” se, neles próprios, houvesse um trânsito duplo de sofrimento, resistência e reconhecimento de histórias não contadas? Em outras palavras, se eles fossem essencialmente ambíguos?

Pois, além da crueza do retrato da violência masculina, da nudez ridicularizada do marido na noite de núpcias, temos um filme de mulheres. Filme de Guida e Filomena, personagem secundária que, no melodrama clássico, permaneceria num lugar essencial mas profundamente marginal. Obra carregada também por duas atrizes, que estendem suas performances, outrora de novelas da Globo, a um caráter subversivo de um melodrama desvairado. Ainda, a loucura de Eurídice, resposta à banalização do seu corpo, não é só um signo de enfraquecimento, de passividade: essas risadas e esse olhar vertiginoso da personagem são uma resposta lúcida a um contexto, esse sim, enlouquecido, desumano.

Se voltamos, então, à cena fundadora do quarto das meninas, compreendemos que Eurídice e Guida são mais que irmãs: cada uma à sua maneira, seja em Viena ou na Grécia, materializa reciprocamente um horizonte sonhado, um porvir possível que torna o presente mais suportável. Guida, a mãe solteira, mulher sem nome; Eurídice, a esposa e mãe burguesa esvaziada, alienada. Duas mulheres que se complementam, que se comunicam subterraneamente a despeito desses eventos que fazem avançar seus destinos: Guida através das cartas, Eurídice nas notas insistentes do piano. Ao mesmo tempo dentro e fora desse curso irrefreável do destino, os olhares das protagonistas denunciam o caráter duplo dessa trama. Olhares que fogem para esse além-mar, que observam a evolução da história como aquele de Guida na saída da fábrica ou o olhar de Eurídice que ao tocar, no teste do conservatório, encontra sua irmã num extracampo transcendente. Subtraídas da História oficial, a posição das protagonistas espelha por sua vez a da própria mise-en-scène: simultaneamente mergulhadas no turbilhão das emoções e na superfície das cenas, as composições de A Vida Invisível são engavetadas, constantemente emolduradas como suas heroínas, prisioneiras entre os morros do Rio de Janeiro – ou então separadas por um simples aquário. 



Para além dessa atmosfera úmida e embolorada que tinge as paredes e as teclas do piano de Eurídice, permanecem ainda alguns resquícios desse paraíso original das duas irmãs. Como o perfume que embriaga Filomena e a prepara para a morte, ou ainda aquele que transporta Eurídice para perto da irmã enquanto monta o quarto do bebê. Ou mesmo, o emaranhado dos cabelos castanhos das atrizes e uma constante ambiência de cigarro, laquê, perfume e suor. Com esse caminhar cansado, essas posturas prostradas que substituem a luxúria e o ânimo inicial das irmãs, as atrizes acabam por revelar uma faceta secreta das vidas das protagonistas – e do próprio melodrama. Numa versão subversiva do cofre de seu Antenor, a mise-en-scène de A Vida Invisível se assemelha a uma caixinha de música, cheia de lembranças íntimas que, em outro lugar, seriam demasiado supérfluas mas que, postas assim em primeiro plano, acabam por denunciar a ambiguidade constitutiva do gênero. Nele, nós testemunhamos como as coisas são e como elas deveriam ser: uma espécie de duplo reconhecimento da ordem social e das suas contradições[2]. O melodrama secreta assim, interiormente, o seu próprio antagonismo: ao reconhecer essas violências, ele baseia-se igualmente numa esperança de mudança que nossa emoção abarca inteiramente. Pois, a cena inicial lança justamente esse pressuposto essencial do gênero, que sustenta o olhar do espectador: e se... elas se reencontrassem e se tudo fosse reversível? Entre desejo de mudança e inércia social, essa dinâmica melodramática é exemplarmente sintetizada por Manuel Bandeira, como que por acaso: a vida inteira que podia ter sido e não foi. Afinal, as lágrimas não são assim tão acríticas...

Dessa maneira, o diálogo final entre as irmãs condensa, secretamente, essa intimidade compartilhada de um mesmo olhar revoltado e esperançoso: uma conversa cifrada que não encontra nenhuma referência visível, mas na qual confluem a voz de Guida e as notas de Eurídice. Nós temos uma vida inteira pela frente, nesse horizonte habitado pelo mar, num futuro ainda por vir.... futuro que depende justamente do reconhecimento das injustiças, do sofrimento e da violência contra as mulheres. Eu poderia dizer que é certo que elas se encontram mas, à maneira de Lisa em Carta de uma desconhecida, seguimos nos trilhos de um trem de brinquedo, na ausência de mudança, visitamos países sonhados sem nem ao menos sair do lugar. É esse amargor que permanece, no final de A Vida Invisível, junto à esperança de que algum dia esse trem saia dos trilhos para que possamos ver com os próprios olhos a Viena de Eurídice.

[1] WILLIAMS Linda, "Melodrama Revised", in BROWNE Nick (dir.), Refiguring American Film Genres : History and Theory, Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 1998, p. 47 ; WILLIAMS Linda, "Something Else Besides a Mother : 'Stella Dallas' and the Maternal Melodrama", Cinema Journal, Vol. 24, No. 1 (Autumn, 1984), p. 22.

[2] Consultar GLEDHILL Christine ; KAPLAN E. Ann, "Christine Gledhill on Stella Dallas and Feminist Film Theory", Cinema Journal 25, n° 4, Summer 1986.

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