O homem de toda parte



Por Jean Domarchi 

Assim, logo de início, prevenir honestamente o leitor: estas notas não pretendem de forma alguma expressar um ponto de vista definitivo sobre Lubitsch. São simplesmente impressões de espectador. Impressões pouco satisfatórias: eu preferiria “digerir” essa retrospectiva, rever dois ou três filmes particularmente importantes. Ver também os que infelizmente Henri Langlois não pôde encontrar, e que não são menos característicos, A loja da esquina ou O círculo do casamento, por exemplo (Lubitsch tinha uma preferência confessa por esse último filme). O que se segue deve então ser tomado sob a reserva de uma verificação posterior. 

Sente-se, já no começo, que Lubitsch soube muito rapidamente o que queria fazer. Ele adquiriu muito cedo um ponto de visto e um estilo, e se ele foi obrigado a fazer algumas distensões em seu programa, pelo menos elas foram veniais. Ninguém, menos que ele, foi incomodado pelos entraves da produção capitalista. Ele soube acomodar-se, na Alemanha assim como em Hollywood, aos métodos existentes, e, longe de submeter-se passivamente, soube dobrá-los a suas próprias intenções. A bem da verdade, esses métodos (e particularmente os que estavam em vigor nos estúdios de Hollywood) lhe convinham perfeitamente pois ele não tinha a alma de um contestador. Ele era, antes de tudo, homem de espetáculo, um executive que havia assimilado perfeitamente as regras do jogo da produção, e em particular as leis do mercado. É possível que, em um momento ou outro, ele tenha sofrido problemas (em Carmen ou em Rosita): surpreende-nos sobretudo a habilidade com a qual, quase sempre, ele soube preservar suas qualidades próprias. Eu logo tentarei explicar as razões dessa facilidade tão desconcertante, mas creio que seja útil especificar um ponto essencial. Lubitsch (como Murnau, Renoir, Lang e tantos outros) é um europeu que chegou à América. Devemos então distinguir em sua obra um período alemão e um período hollywoodiano? Sim, na medida (e somente na medida) em que os estúdios de Hollywood lhe ofereciam meios de que ele não podia dispor na Alemanha: é justamente esse enorme aparato técnico que lhe permitiu (sem renunciar a nenhum artigo de seu código moral e estético) apurar seu estilo e libertá-lo das escórias do expressionismo. Não que ele não tenha sabido tirar proveito do expressionismo (eu creio mesmo que ele é um dos raros a ter percebido a sua verdade íntima), mas lhe era indispensável passar dessa fase, e apenas a minuciosa divisão de trabalho das “Major Companies” lhe permitiu isso. A obra americana de Lubitsch é a ilustração das benesses do taylorismo artístico. Seu ponto de vista realmente não é o de um criador independente: é o de um produtor que precisa das vantagens e das restrições da produção comercial.

Lubitsch não tem nenhuma dúvida a respeito disso. Desde Sapataria Pinkus, ele demonstra cruamente 1) que todos os meios são bons para realizar suas ambições artísticas, pois 2) é preciso muito dinheiro para realizá-las, ou seja 3) fazer e fazer apenas o espetáculo. Pinkus tem o rigor de um silogismo. Quando Pinkus Lubitsch inaugura o Palácio do calçado, acreditamos que assistimos a um filme hollywoodiano. A mesma atitude é retomada, de maneira menos crua, em A princesa das ostras. Não é somente em A boneca do amor que Lubitsch expõe sua arte poética, é também em Pinkus e em A princesa

Nesses últimos dois filmes, Lubitsch se dirige diretamente à América. Ele lhe faz suas ofertas de serviços. Ele conhece a mitologia americana, e dela zomba, mas de modo a colocar os americanos do seu lado. Ele dá a entender que, sem ter atravessado o Atlântico, ele sabe tudo do “business”. Pinkus não é somente a história de um pequeno arrivista, é a história de um pequeno arrivista (de meios particularmente sórdidos) que só quer crescer e tornar-se um artista. Pinkus é o filme do desprendimento, interpretado pelo próprio Lubitsch (moleque preguiçoso, mas depois um sedutor dedicado). Ele se reveste de um caráter pessoal, e, no entanto, se poderia dizer que Lubitsch fala de um outro, de tão incomparável que é sua desenvoltura. Entretanto não basta oferecer seus serviços para ser aceito pelos magnatas de Hollywood. É preciso surpreendê-los com um sucesso mundial. Mas não seja por isso: Lubitsch realiza uma superprodução, com uma superestrela: Madame DuBarry

Havia nesse filme tudo o que eles queriam ver, e também tudo o que eles não viram ali, ou seja: todo o Lubitsch. 

Lubitsch não se interessa nem pela metafísica, nem pela psicologia. É um cosmopolita e um mau sujeito (um “libertino”), o que explica a compreensão bem pessoal que ele tem do século XVIII francês, e o fato de que Madame DuBarry seja um dos maiores filmes históricos de todo o cinema. Falso em todos os seus detalhes, ele é preciso em todo o resto pois, de fato, não se trata de uma anedota ou historinha, trata-se de reproduzir visualmente a verdade (o espírito) de uma época e de um povo. Partindo de uma charmosa pessoa frívola e infiel, chega-se a toda uma civilização. A contraprova, de certa maneira, dessa precisão de tom é fornecida pela parte revolucionária do filme. Claramente, Lubitsch tem pouco gosto pelo ascetismo e pela virtude revolucionários. Se ele tivesse vivido durante o Terror, Robespierre o teria classificado como inimigo e executado na guilhotina. Lubitsch sabe disso e experimenta um temor retrospectivo. Assim ele também poderia ter dito, à maneira de Flaubert: “Madame DuBarry sou eu!”. Mas ele também tem o ponto de vista de Luís XV: aprecia a insolêcia, a elegância, a voluptuosidade. Sua atitude é a daquele que Buñuel chamaria “um grande folião”: ele nunca a renunciará. De A princesa das ostras a A viúva alegre e O Diabo disse não, permanecerá assim fiel a si mesmo. Mesmo quando, em Three Women, ele parece direcionar o sedutor ao castigo, ele lhe concede uma ternura que mal conseguiu esconder. É, portanto, um homem do século XVIII que fala, mas como um homem do século XVIII (ou seja, de uma época já passada) poderia agradar aos americanos puritanos e trabalhadores? 

Pois Lubitsch não somente agradou, ele triunfou. Ele foi posto no rol (e desde o início) dos “top directors”. Ele se tornou um produtor com poderes ilimitados (ou quase). Por quê? 

Primeiramente, porque não desagrada aos americanos ver a Europa como uma civilização de diletantes, de estetas, uma espécie de paraíso da mulher, sobretudo porque no casal Europa-Estados Unidos, a Europa é o elemento feminino. Depois, porque o americano puritano e trabalhador, invejando inconscientemente o estilo de vida europeu (e particularmente latino), pôde encontrar, na apologia daquilo que em sua terra seria inadmissível (perder agradavelmente seu tempo), a satisfação de certas tendências energicamente reprimidas. A partir desse contexto, Lubitsch, cosmopolita, aristocrata cínico e irreverente, podia agradar a todos sendo ele mesmo. Bastava-lhe simplesmente (algo que ele cuidadosamente manteve, salvo uma exceção que poderia ser A loja da esquina) interessar-se pela vida americana e colocar em questão os tabus dessa sociedade. O que lhe era ainda mais fácil, posto que a América não lhe interessa. Como ele sugere, ele sabe o inglês, o alemão e o francês, e ele “compreende” o americano. E como ele se interessaria pela América? Ela lhe é útil, mas o que poderia significar para ele a moralidade americana, o puritanismo americano? Quer dizer que ele é amoral, ou imoral? Não, mas ele é moral à maneira de Guitry ou talvez (mais profundamente) à maneira de Renoir. Há nele uma grande generosidade. Ele sempre poupa os inocentes, os puros, aqueles que não sabem e nem querem se defender. Ele nos mostrará com prazer um trapaceiro, um ingênuo, mas não deixará que ele engane um ser puro, mesmo que esse ser puro seja um puritano. 

Aqui está o fio de Ariadne que nos permite compreender filmes tão diferentes como Beijos que se vendem, O leque de Lady Windermere, Three Women, Ladrão de alcova, Sócios no amor, Desejo e Anjo. Eles exprimem, cada um à sua maneira, a quintessência da atitude lubitschiana perante a vida. Cada vez que protagonistas da mesma espécie estão juntos, eles se entendem a fim de bagunçar os imbecis ou os esnobes, e temos então uma comédia. Se, ao contrário, um devasso está na presença de um puro, o drama se torna possível, sobretudo porque o devasso não tem escrúpulos de consciência (o que seria insensato), mas de coração. É o que acontece com as mulheres frívolas (devassas por definição) que podem ter filhas que só desejam parecer-se com elas. O drama de O leque de Lady Windermere não vem tanto do fato de que Madame Erlynne, para fazer sua entrada na sociedade inglesa (da qual ela se excluiu em arroubos de juventude), deve esconder de Lady Windermere que ela é sua mãe e tirar proveito desse silêncio, ele vem do fato de que Lady Windermere quer no fundo de seu coração (mesmo que ela se diga puritana) fazer como sua mãe: não porque, justamente, ela é a filha de sua mãe, mas porque para Lubitsch (e não necessariamente para Oscar Wilde) as mulheres são assim. Mesmo tema em Three Women





Lubitsch nunca mostrou o natural da mulher melhor do que em Design For Living (Sócios no amor). Haverá algo mais natural do que uma mulher ter dois amantes, sobretudo se ela é sedutora e inteligente como Miriam Hopkins? Por que negar-lhe algo que se aceita em qualquer garanhão? Uma sociedade civilizada não saberia assim ter dois pesos e duas medidas.

Logo, Lubitsch está do lado das mulheres (contanto que elas afirmem sua feminilidade), ele está do lado dos ociosos, dos libertinos. É por isso que ele está do lado das sociedades passadas e (não há um sem o outro) da opereta vienense e do vaudeville. Nós dissemos acima que ele teria sido como um peixe dentro da água na sociedade francesa do Antigo Regime, e que ele se sentiria à vontade (como Stroheim) na Áustria dos Habsburgo, e à vontade também (como Renoir e como Guitry) na França do Segundo Império ou da Belle Époque, de leões à la de Morny. 

Uma restrição porém, e que basta, apesar de semelhanças puramente formais, para opô-lo a Stroheim: ele não deixará, sob nenhum pretexto, que os leões (mesmo revestidos de elegantes uniformes) humilhem as gazelas. Daí a escolha, para as operetas vienenses, de Maurice Chevalier, que, ainda que revestido do mesmo uniforme de Stroheim, não apresentaria nenhum perigo, e da suntuosa Jeanette MacDonald, que jamais se passaria por vítima. 

É a facilidade com a qual Lubitsch se desinteressa pelo século XX que lhe permite ser às vezes (uma vez não é hábito) romântico. Daí vem O príncipe estudante, homenagem não somente ao cinema alemão, mas à sensibilidade alemã. Mais uma vez, um cenário de opereta vienense (como em Alvorada do amor ou A viúva alegre), mas deslocado num tom, o que dá à anedota, em vez do allegro habitual, um tipo de gravidade, de melancolia que anuncia as obras do final, O pecado de Cluny Brown, O Diabo disse não e A condessa se rende. Pode parecer que a arte lubitschiana obedece a uma dialética da sofisticação e do natural, o natural (tingido de melancolia) terminando, quando próximo da morte, por levá-la, sem que Lubitsch renuncie a quase nada do charme dos frufrus e dos universos acolchoados (assim anunciando Ophüls).


Ao cabo desse ciclo, teríamos omitido o essencial se não disséssemos que apesar do laxismo que professa, que apesar de sua predileção pelas sociedades arcaicas e ultrapassadas, que apesar de um conservadorismo que pode parecer irritante (o que seria de Lubitsch se condenado ao realismo socialista?), mas talvez também por causa de tudo isso, Lubitsch é um dos cineastas mais puros. Talvez mais puro que Murnau, Mizoguchi, Chaplin ou (a fortiori) Eisenstein. Mais puro porque ele conta apenas com o cinema. Em Murnau ou Mizoguchi há os encantos da pintura, da música. Nada disso em Lubitsch, pois os cenários rococó que ele aprecia têm um papel menos estético que significativo. Aponto brevemente que ele é o único que compreendeu a função cômica do expressionismo (cf. A boneca do amor, Beijos que se vendem), já que o esquematismo do cenário expressionista, nos casos ruins, comove menos do que faz rir. 

Essa pureza de linguagem, entretanto, vem não somente de sua imaginação cinematográfica, mas da certeza de estar no verdadeiro e de defender a boa causa. Quem ousaria tomar o partido de nossas “civilizações industriais” contra as civilizações do passado? Um artista precisa (não importa quais sejam suas convicções íntimas) da hierarquia e da ordem (nem que seja para destrui-las). Essa ordem, essa hierarquia que permitem os ociosos e as belas mulheres, Ernst Lubitsch as encontra nos uniformes dos antigos principados, reais ou fajutos, nas melodias de Lehár, nos cenários de cassino e nos falbalás. Ele saudou os “roaring-twenties” como a última chama de um mundo em extinção, lamentando a leviandade e a vulgaridade. Ele não desdenha as insinuações atrevidas (bem “Vida parisiense”), mas um rigor inflexível lhe faz evitar todo mau gosto. É, apesar de todas as aparências, o mais austero dos cineastas, o clássico dos clássicos. Suas figuras de predileção são a litotes, a antífrase, a elipse, e se ele aprecia, como Renoir, o estilo indireto (em Anjo, uma cena importante é contada pelos empregados que levam os pratos à cozinha), toda essa retórica é estritamente cinematográfica. O diálogo é brilhante, certamente, mas subordinado às exigências do cinema; ele está lá para ser o contraponto da imagem pois, olhando bem, toda a arte de Lubitsch está no contraponto. Deixo a outros a tarefa de dissecar filme a filme as estruturas da mise en scène lubitschiana. Eu me limitarei a dois exemplos que evocarei rapidamente. Um filme mudo: O leque de Lady Windermere, e um filme sonoro: Desejo. Eu me entreguei a uma experiência. Logo após ter visto O leque..., li a peça de Oscar Wilde e constatei que: 1) ele inseriu cenas que não existiam na peça, mas sobretudo 2) ele faz o público saber, logo no começo, que Madame Erlynne é a mãe de Lady Windermere. A partir desse momento, nós temos a vantagem de saber o que a heroína ainda não sabe. O suspense hitchcockiano nasce, e não há dúvida que Lubitsch, tendo em vista a data de O leque..., tem direito de reivindicar a paternidade desse método. Reconheça-se que não é um pequeno mérito o de ter introduzido esse método narrativo numa época em que o cinema ainda não possuía a totalidade de sua linguagem.


Desejo é, ainda que assinado por Frank Borzage, quanto a sua concepção, seu roteiro e sua decupagem, integralmente de Lubitsch (isso me foi confirmado por Mrs Lubitsch). É interessante não apenas porque nos mostra como Lubitsch sabe passar inconscientemente do prazeroso ao severo, mas porque utiliza, antes de Hitchcock, todos os ingredientes (sim, todos) da mise en scène hitchcockiana. De fato, trata-se, muito precisamente, de um tipo de primeira versão de Interlúdio. Não terá sido uma pequena emoção nessa retrospectiva poder constatar que Hitchcock tinha um antecessor. 

Lubitsch, como Molière, como Guitry, morreu no trabalho. Sempre se deverá reconhecê-lo por ter sabido perfeitamente metamorfosear uma peça ou uma opereta ou um roteiro em cinema. Ele foi ao mais simples, mas o mais simples, como todos sabem, é o mais difícil. 

L’homme de partout foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 198, fevereiro de 1968 ; e republicado no livro Ernst Lubitsch, coletânea organizada por Bernard Eisenschitz e Jean Narboni, Paris, Cahiers du Cinéma, 2006, p. 171-180. Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.

Cluny Brown



Por Serge Daney

1. Entre os filmes admiráveis, pode-se distinguir a) aqueles que dão a ideia – evidente e feliz – dos poderes do cinema (e somente dele); b) aqueles, pelo contrário, em que o cinema parece sempre em desvantagem, atrasado a respeito do mundo assim como de si mesmo, arbitrário e impaciente. Desses últimos, que seriam os modernos, talvez falava Nicholas Ray quando dizia que sempre tivera o sentimento de “o que nós conseguimos é apenas arranhar a superfície da prodigiosa aventura que é o cinema”. Trata-se então de marcar a localização daquilo que ainda não está, que já não está mais lá, ou ainda de sugerir o relevo pelos ocos, a presença pela ausência. Contrariamente aos outros filmes de Lubitsch, dos quais ele é como a face oculta, O pecado de Cluny Brown é um filme oco (profundo) e vazio (admirável), o único a ter feito um espetáculo (e que espetáculo!) daquilo que os outros eludiam; pois Ernst Lubitsch, que se consumia incansavelmente para dar a impressão de uma riqueza exuberante e de uma plenitude de todos os instantes, tinha um profundo horror do vazio. E assim como vemos seus personagens suportando febrilmente os mundos que atravessam, colecionadores de prazeres para quem cada segundo deve ser uma conquista, o cineasta empenha todo seu talento para mobiliar ao máximo esse espaço aberto, esse tempo suspenso que às vezes chamamos de um filme. Reconhecemos ali a estética do rendimento máximo. Reconhecemos também a moral hedonista da qual Jean Douchet – Cahiers, nº 127 – falou tão claramente. Mas, ao mesmo tempo, daí vem o fato de (como somar os prazeres?) que os filmes de Lubitsch são esquecidos assim que são vistos (sabemos somente que os amamos), assim como uma refeição, por mais admirável que fosse, não conseguiria saciar de uma vez por todas (possibilidade escandalosa se o fosse). Assim é a maior preocupação de Lubitsch: que tudo possa ser refeito (daí três monotonias pelo menos: intrigas, quadros e personagens), que um filme sempre refaça aquilo que os precedentes já alcançaram, que o prazer seja intenso mas o filme aberto, que a obra inteira seja um tipo de espetáculo permanente (Guitry dizia: “Eu gostaria de estar só, sozinho, fazendo peças que todo mundo escutaria o tempo todo.”) Os cineastas do prazer efêmero devem se repetir sem cessar, caso contrário, é notório que com o tempo tudo se arranja – ou seja, que tudo se anula. E não sem evocar o cinismo de um Ford, ou sobretudo de um Hawks, para quem uma aventura nunca interrompe o curso das aventuras (assim não é surpreendente que Hawks seja o próprio cineasta da repetição, o mais comprometido a plagiar a si mesmo). O cinismo: Hawks apaga uma palavra em um quadro-negro, Ford diz: “The world moves on”, quanto a Schulz, ele é formal: “Five hundred years from now, who’ll know the difference?” 


2. Mesmo assim se torna então surpreendente o fato de que Lubitsch tenha feito filmes. Obra que é paradoxal porque existe. Um filme, pensa-se prontamente, é um pouco a revanche do limitado sobre o sem-limite. Antes da primeira imagem, não havia nada; passado o último plano, não haverá nada. O que se deve ver – de fato, toda a vida – está escondido entre, e aquele que faz um filme está condenado ao mais exorbitante dos poderes, o de terminar. Entretanto, eis um cineasta (Lubitsch e outros cínicos) que só concebe fins suspensos, tempos provisórios e teses contraditórias. Um filme não encerra nada, não se liga a nada, não diz nada. Observemos tamanha prudência (covardia?) com a qual Lubitsch não somente afasta o casamento (ou sua consumação: A oitava esposa de Barba Azul) mas também as relações físicas, chegando a fazer um filme só sobre sua possibilidade (Anjo, Ladrão de alcova etc.), sempre adiada. Um filme sempre promete outro filme. Sócios no amor e Anjo, duas obras-primas, são imensos parênteses em que a riqueza de cada detalhe tem como consequência a inconsistência (ou melhor, a evanescência) do todo: ora por um ritmo muito rápido (o primeiro), ora por um abrandamento extremo (o segundo, mas também Não matarás), esses filmes se fecham sobre si mesmos, belos mas entrópicos. Filmes que são só filmes, carregando sua lei em si mesmos, inutilizáveis de outra forma (quer dizer que é inútil imaginar que possamos falar desses filmes, seja em relação a seu autor – que é somente o fornecedor – , seja a seu espectador – que é somente o consumidor). O cinema é então um luxo, uma atividade gratuita, mas então, paradoxalmente, quanto mais um filme é gratuito, mais ele deve ser cuidadosamente fabricado. É que o problema não é tanto o de construir um mundo coerente, mas sim o de fazê-lo atravessar a rampa, apesar de tudo. O essencial não é filmar Ninotchka ou Anjo no momento em que elas iniciam seu futuro, mas de dar a impressão de que já vimos essas cenas, sempre prometidas, nunca filmadas. O cinema de Lubitsch recria a vida, como o cinema dá a ideia de movimento: por um fenômeno de persistência retiniana. São somente sombras que falam às vezes mais do que de sombras e às vezes menos (O pecado de Cluny Brown justamente).



3. Um aventureiro que é sem dúvida um impostor, homem de um gosto refinado, defensor de uma arte de viver que se perde e se consome, e uma jovem moça, formidável ingênua sem gosto nem maneiras, aprendiz de encanadora em que habita uma grande fome de viver respeitável, respectivamente Adam Bielinksi (Charles Boyer) e Cluny Brown (Jennifer Jones), dividem por um certo tempo uma tela em que a fantasia de um roteiro os reuniu. Perto do final do filme, Bielinski subitamente decide casar-se com a jovem moça, que não diz não. Nos últimos planos, Bielinski tendo – diz-se – feito fortuna escrevendo um best-seller, eles estão muito bem vestidos e parecem muito felizes. O que surpreende em O pecado de Cluny Brown é: a) que a história é pouco crível e as relações entre os personagens mal são explicadas; b) que Lubitsch, por uma vez, não fez nada para dissimular essa falta de rigor. Não há mais falsas pistas: o que não existe entre os personagens (pois são apenas sombras) não será simulado. O pecado de Cluny Brown é o produto sem embalagem, o prazer sem sorrisos de encomenda (se você acredita que isso é alegre, que felicidade!), o cinema sem a publicidade. O inverso do cinismo não é a ternura, mas sim a indiferença. Assim, não são Bielinski e Cluny que são emocionantes (embora sua dedicação à felicicidade tenha algo de tocante), é o fato de que um filme – um pouco de Celuloide (1946) – existe, que ele se chama O pecado de Cluny Brown. O cinema é sim um luxo, o primeiro de todos, a vitória sobre o nada. E tudo acontece como se fosse o filme que carregasse, a partir de então, em sua própria existência, os perigos que ele tinha apenas sugerido. O pecado de Cluny Brown fala sim do prazer, mas de um prazer fugidio ou que ainda está para chegar, questão de disponibilidade transformada em errância e reconciliações vagas. O que vemos é, ao que parece, o que havia entre os planos dos outros filmes: a vida que avança ao acaso e o tempo perdido sem alegria. 

Cluny Brown foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma, n° 198, fevereiro de 1968 ; e republicado no livro Ernst Lubitsch, coletânea organizada por Bernard Eisenschitz e Jean Narboni, Paris, Cahiers du Cinéma, 2006, p. 240-244. Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.

Ernst Lubitsch



Por Jean Douchet

Um breve exame da coleção dos Cahiers du Cinéma revela uma grave lacuna: Ernst Lubitsch. Só uma nota de Luc Moullet lhe é consagrada no Petit Journal do nº 68 na ocasião da reprise de O leque de Lady Windermere e Sócios no amor, na Cinemateca. Não é que os redatores dos Cahiers ignorem Lubitsch. Eles o têm, pelo contrário, em alta estima. Não contente de inscrever seu nome nos créditos de Uma mulher é uma mulher, Godard batiza de “Lubitsch” o personagem de Belmondo. Mas La Revue du Cinéma dedicara a esse grande cineasta um de seus números especiais (nº 17) algum tempo após sua morte, ocorrida em 1947. Esse número hoje pode parecer ultrapassado. Mas, aguardando que uma homenagem da Cinemateca permita um estudo aprofundado, aproveitemos que há uma reprise simultânea de Ser ou não ser e O Diabo disse não em duas salas parisienses para esboçar uma ou duas ideias. 

Lembremos antes de tudo que esses dois filmes datam de 1942 e 1943. Lubitsch fica então gravemente doente. Ele confia seus próprios projetos a dois jovens cineastas de nome Preminger e Mankiewicz. Perceba que não faltavam nem discernimento e nem gosto a um homem que fora, em seu tempo, frequentemente acusado de não possui-los. Crendo-se curado, Lubitsch realiza em 1947 um último filme, O pecado de Cluny Brown, e morre antes de terminar A condessa se rende, finalizado pelo grande Otto. Essas minúcias históricas parecerão supérfluas aos cinéfilos. Elas não são, contudo, inúteis. Elas querem dizer que Ser ou não ser e O Diabo disse não podem ser considerados como ápices desse artista, e a concretização de sua arte. 

Escreveu-se muitas vezes que Lubitsch sacrificava tudo ao traço, à gag visual, à “palavra”, à elipse alusiva. A visão atual de sua obra, que permance sempre tão jovem, cintilante, nova e engraçada, torna injusto o emprego da palavra “sacrificar”. É consagrar que se deveria dizer. Se Lubitsch, de fato, consagra tudo ao traço etc., isso vem de que esse traço etc., constitui o epifenômeno do que lhe preocupa profundamente: a maneira de viver. A grande ideia - puramente moral - que se extrai de Ser ou não ser e O Diabo disse não se resume a isto: a vida é um bem precioso, precioso como um diamante, que cintila igualmente mil reflexos brilhantes e fugidios, dos quais há que se saber fazer bom uso, apreciando até a mínima de suas manifestações. Como cada um se utiliza desse bem, quais fogos ele está apto a fazer brilhar, quais chamas ele dá, é isso e somente isso o que apaixona Lubitsch. De qual maneira vivemos significa para ele: de qual maneira queimamo-nos.


Ver Ser ou não ser ou O Diabo disse não é assistir a uma combustão, não olhando para a fogueira, mas, ao contrário, olhando para a extremidade das chamas. Apreendemos o jogo, a dança, a corrida tão ágil quanto incessante que se alimenta de cada instante para impedir-se de morrer. O instante – entregar-se inteiramente a seu capricho e estar somente nele – determina uma comédia obrigada a galopar a seu lado, com medo de que um segundo de desatenção, um instante ofertado e não aproveitado, possa afundá-la na tragédia. 

E no entanto, sorrateiramente, a tragédia, sob a forma branda do drama, desliza para dentro do coração da ação e dos personagens. Como estar no instante, já que ali estar é não ser, em Ser ou não ser? Como conjugar um sentimento profundo e durável, que é justamente o amor conjugal, com a necessidade de saborear a vida em cada um de seus instantes em O Diabo disse não? Em suma, os personagens de Lubitsch são animados por um sentimento aparentemente contraditório: eles querem experimentar a permanência da vida quando se entregam ao efêmero, ou se entregar ao efêmero quando eles experimentam a permanência. Mas o malicioso Ernst tem um jeito bem próprio de resolver esse princípio de angústia. 

Em Ser ou não ser, ele interliga três tipos de vida possíveis: a vida profissional, a vida privada, e enfim o que se poderia chamar de vida pública. Cada personagem passa sucessivamente por essas três fases (cf. o monólogo de Shylock). Mas as duas primeiras são apenas uma maneira de usar a vida sem realmente aproximar-se dela. Ela não permite que esses efêmeros, eternamente atraídos pelo superficial e pela pura aparência, sintam as suas ligações profundas. Também é preciso fazer-lhes defender esse bem tão precioso, sua vida, para que eles sintam sua grandeza e apreciem seu valor inestimável. Mas mudar o modo dessa vida lhes está fora de questão. Atores eles são, atores eles permanecem, ou seja, mais do que qualquer coisa, entregues ao capricho do instante. É no e pelo instante que eles revelam e protegem sua vida. Queimam-se ali até “se torrar”. Cada instante, que se tornou vital, reúne o todo da vida profissional e da vida privada para sublimá-lo em algo que poderia muito bem ser a consciência apurada da vida.


Sem querer aprofundar muito o filme, digamos que a vitória está necessariamente do lado daqueles que têm suas forças no degustar mais íntimo de todas as sensações. O professor-espião, cuja profissão, quando vista de perto, se parece com a dos atores e que sabe apreciar a vida privada e todos seus prazeres (uma boa mesa, um belo vestido, uma linda moça), sai vitorioso da cena de seu “sequestro”, contra Joseph Tura, posto que este “é” o coronel Eberhart. Ora, este último só existe por sua vida profissional, ligando-se então à parte mais externa da vida. Isso quer dizer que ele será necessariamente sujeito a todas as aparências e constantemente abusado por elas. Assim Tura se trai, introduzindo em seu personagem de coronel Eberhart uma possibilidade de vida privada, logo de uma vida mais rica. Essa falha não escapa ao professor-espião que desmascara rapidamente nosso herói. E, no entanto, o professor será abatido, pois sua consciência da vida não resiste à de todo um povo, e ainda menos à do espírito. Inversamente, assim que Joseph Tura, fantasiado de professor, vai ao coronel Eberhart, ele será sempre vencedor, não porque Joseph Tura, mas porque Professor. Pode-se resumir isso dizendo que, para Lubitsch, “ser” é estar no instante, logo não é ser. E, no entanto, podemos ser quando, pela riqueza de cada instante, nos comunicamos com a permanência e a plenitude da vida. Assim, nas relações humanas, “é” aquele que experimenta essa impressão de uma maneira mais intensa que o outro, que portanto não é. Pela força das coisas, Tura e seus camaradas, bebendo de uma invenção de cada instante, “serão”, enquanto os nazistas não “serão” em relação a eles. É talvez a maneira mais fútil, mas não menos elegante, para o espírito, de triunfar sobre a matéria. Ser ou não ser aparece assim como a mais vibrante, inteligente, sútil dissertação jamais escrita sobre Hamlet.


Pode-se muito bem aplicar tudo o que já foi dito ao Diabo disse não. Não é então normal que o herói, Don Ameche, que não deixa que o menor instante passe sem aproveitá-lo, roube por exemplo sua noiva de seu primo que limita sua vida a sua posição social? Nesse filme, não se trata somente da vida, mas de uma vida inteira, do nascimento à morte. E ela poderia muito bem ser à imagem da de Lubitsch, grande epicurista, que nos deixaria aqui seu testamento. Salientemos esse codicilo, consagrado, como em todo grande autor de comédias, ao jogo da mentira e da verdade, ligado ao da aparência e da realidade. Ora, a mentira de Don Ameche é bastante aparente. É uma falsa mentira. A verdade é a vida. Esta nos escapa em sua continuidade. Ela nos alcança de maneira descontínua, sob a forma do instante. A verdade que nós conhecemos está, portanto, ligada também ao instante. E essa verdade, sempre verdadeira no instante, muitas vezes se encontra em contradição com aquela que precede e que sucede. Há mentira? Certamente não. Mas uma sucessão de pequenas verdades dessemelhantes. Aquele que vive totalmente o instante pode parecer mentir e se travestir sem cessar, no entanto ele se mantém constantemente verdadeiro. 

Sendo assim, se um ser para se sentir vivo se lança inteiramente na embriaguez de cada instante, deveria ele recusar um sentimento forte e durável como o amor? Ou, pelo contrário, ele não poderia, sem trapacear, experimentar a vida em todos seus graus de ser? Lubitsch não hesita em responder. É seu herói quem possui a verdade, todo o resto é só mentira. A ele, então, o paraíso. Mas uma linda moça torna a descer ao inferno (a versão exibida na França se encerra, infelizmente, e inexplicavelmente, pouco antes desse traço final). Mais um instante de prazer. O Céu, a Eternidade podem esperar. 

Ernst Lubitsch foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 127, em janeiro de 1962. Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.

John Ford For Ever



Por Serge Daney


Uma ideia tão preconcebida quanto discutível diz que, na televisão, o close é rei. Se fosse assim, o homem que proferiu um dia: “Eu não quero ver os pelos do nariz numa tela de quinze metros!” não teria nenhuma chance na pequena tela. John Ford, de fato, não amava muito os closes. Ou, o que dá na mesma, as cenas de exposição. Ele filmava bem rápido e lhe foi preciso apenas vinte oito dias para realizar She Wore A Yellow Ribbon (e não La charge héroïque, título estúpido e grande contrassenso). Foi em 1949, ele era então seu próprio produtor e só fazia o que lhe dava na telha. Quarenta e um anos mais tarde, o filme “passa” perfeitamente da grande à pequena tela (TF1). Elementar, você diz? Não muito.

Gilles Deleuze lembrava um dia aos novatos da Fémis que seu trabalho como cineastas consistiria em produzir “blocos de duração-movimento”. Ora, se os blocos de Ford permanecem tão perfeitos, é porque eles respeitam a mais elementar das proporções áureas: eles duram somente o tempo que é preciso a um olho treinado para ver tudo que eles encerram [1]. O tempo de ver tudo o que há para ver; é a duração ideal e o movimento ideal de um olho tão disciplinado na arte de olhar quanto um cavaleiro fordiano na de montar a cavalo.

Esse princípio é tão simples que ele permitiu que Ford complicasse, refinasse, e mesmo ornamentasse as coisas dando sempre um sentimento de classicismo imemorial. Não é a ação que dá as durações, é a percepção de um espectador ideal, de um batedor que veria de longe tudo o que há para ver (e nada além disso).



Um contemplador rápido, eis o paradoxo Ford. Impossível ver seus filmes com olhos turvos, porque então já não vemos mais nada (somente histórias de soldados sentimentais). O olho deve estar vivo porque, em qualquer imagem de um filme de Ford, corre-se o risco de haver alguns décimos de segundo de contemplação pura antes que a ação chegue. Saímos de uma cabana ou de um plano, e há ali nuvens vermelhas sobre um cemitério, um cavalo abandonado no canto direito da imagem, o tumulto azul da cavalaria, o rosto perturbado de duas mulheres: são coisas que é preciso ver logo no começo do plano, pois não haverá uma “segunda vez” (uma pena para os olhos preguiçosos).

Ford é um dos grandes artistas do cinema. Não só por causa da composição de seus planos e de suas luzes mas, mais profundamente, porque ele filma tão rápido que ele faz dois filmes de uma só vez: um filme para conjurar o tempo (estendendo as narrativas, por medo de acabar) e um outro para salvar o momento (o da paisagem, dois segundos antes da ação). Ele é aquele que goza do espetáculo antes [2]. Também não se deve procurar nele personagens que, diante de uma bela paisagem, dizem “Ah! Como é belo!” Não cabe ao personagem assoprar ao espectador o que ele deve ver. É isso que seria imoral.

Ainda mais que os personagens têm muito a fazer para atrasar a idade da aposentadoria e o fim das peripécias da história. É um tema que começa em She Wore A Yellow Ribbon e que não deixará de reaparecer. Os personagens de Ford (incluindo os militares) nunca são mais que os saltimbancos de suas crenças, e essas tendem cada vez menos a levá-los para terras prometidas, mesmo se elas desenham a silhueta de cavaleiros sobre um fundo cromo de céu abrasado ou da luz do luar. Essa imagem se encontra, evidentemente, em She Wore. Esse desfile-ronda, que vai da esquerda à direita, é coletivo e interminável.



Mas há um outro movimento, mais misterioso, que vem, por sua vez, do fundo do plano. E que surge, no meio da imagem, sempre [3]. Como se esse cineasta que tinha construído tudo sobre a recusa do close e da cena de exposição deixasse por vezes vir alguma coisa em direção aos seus personagens. É assim que encontramos um close em She Wore A Yellow Ribbon. Vemos Nathan Brittles-John Wayne-Raymond Loyer falando com sua mulher, morta há muito tempo e enterrada a poucos passos dele, explicando-lhe que restam seis dias antes da sua aposentadoria e que ele nada decidiu. Então, sobre seu túmulo, desenha-se a sombra de uma mulher. Trata-se, certamente, de uma jovem inofensiva, mas para quem aprendeu a ver Ford como se deve, esse breve instante dá medo. É o passado que volta pelo meio da imagem, sem avisar, “à la Ford”. Inútil dizer que quando uma imagem tem não somente bordas, mas um coração, a pequena tela lhe acolhe com todas considerações que lhe são devidas.

18 de novembro de 1988

[1] Essa observação foi soprada para o autor pelo cineasta português A-P. Vasconcelos.
[2] Poderíamos arriscar que, ao contrário, é “imoral” a maneira com que o cineasta se afasta para nos mostrar a beleza do espetáculo, depois.
[3] O autor reiterou seu fordismo, na página 62 do excelente número hors-série dos Cahiers du Cinéma sobre John Ford.

John Ford For Ever foi publicado originalmente no jornal Libération, na coluna Les fantômes du permanent; republicado no livro Devant la recrudescence de vols de sacs à main. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

A coisinha que não vemos

Por Serge Bozon

Às vezes, uma coisinha de um filme é retomada no final, mas num modo invertido: o que era cômico se torna dramático, o que era dramático se torna cômico. Um gesto, uma réplica, um acessório. Os exemplos abundam. Entre os mais recentes, a retomada (dramática) por Gustave Kervern do gesto (cômico) da seita no último Salvadori (Em um pátio de Paris), o dedo apontado para o teto. O filme enfim ganhou velocidade. Entre esta retomada invertida e os créditos finais, o filme muda de regime. A crônica cômico-depressiva depõe suas armas. A emoção sobe, sobe, sobe. Eu chorei muito.

Mas eu me interesso aqui pelas retomadas invertidas que procuram as emoções suaves e não fortes. As emoções que descem, descem, descem. Elas surgem muitas vezes nos filmes que não são fortes, mas suaves. O exemplo mais discreto se encontra no Os garotos da minha vida de Penny Marshall (2001). No começo, Beverly (Drew Barrymore) e Jason (Adam Garcia) andam de carro. Quando Jason retruca às duas comadres numa loja de conveniência, que Beverly é sua mãe, nós não acreditamos. Dizemos que ele apenas tem vergonha de sair com uma garota grudenta e autoritária. O carro arranca. Jason tem sempre uma mecha rebelde na nuca. Beverly de repente humedece seus dedos e arruma a mecha com sua saliva, o que enoja Jason. Desta vez, estamos convencidos. É a sua mãe.

No fim, após muitas peripécias melodramáticas (mãe solteira, repúdio parental, marido alcoólatra, divórcio…) em flashback, todas ligadas ao nascimento indesejado de Jason, reencontramos o filho e a mãe na estrada. Eles brigam, depois se abraçam chorando. Ainda abraçada contra ele, Beverly esfrega os olhos e recolhe uma lágrima com a qual ela arruma a mecha rebelde, tocando nele. A mão partia dos lábios, ela parte agora dos olhos. O filho não se dá conta de nada. E eu muito menos. O gesto é furtivo e não há close. Foi conversando com uma amiga que me dei conta que eu tinha perdido a melhor cena. Depois, a emoção perdida permanece ali. Ela não se move mais, como se estivesse presa. Sem dúvida porque a cena é enquadrada por uma outra retomada invertida, não de um gesto, mas de um canto, ela é menos discreta. No começo do filme, Beverly e seu pai (James Woods) discutem no carro, depois cantam o clássico sonhador dos Everly Brothers (All I Have To Do Is Dream). No fim, logo após a “fixação capilar lacrimal”, eles se reencontram no carro depois de anos de desentendimento. Eles não discutem, mas murmuram de novo a canção, o todo enquadrado de muito alto, o carro afundando nas estradas cruzadas. O filme é produzido por James L. Brooks, seguramente cineasta maior que Penny Marshall. Mas o produtor tem razão: a saúde do cinema se mede por esses filmes médios, sem mise en scène, onde os bons atores fazem vibrar uma boa história graças aos bons gestos que não vemos. Digamos, os telefilmes perfeitos. Moral (skoreckiana): o que falta ao cinema, são os telefimes perfeitos.

Le petit truc qu’on ne voit pas foi publicado na revista Cahiers du Cinéma n°700, maio de 2014. Tradução: Miguel Haoni.