Cluny Brown



Por Serge Daney

1. Entre os filmes admiráveis, pode-se distinguir a) aqueles que dão a ideia – evidente e feliz – dos poderes do cinema (e somente dele); b) aqueles, pelo contrário, em que o cinema parece sempre em desvantagem, atrasado a respeito do mundo assim como de si mesmo, arbitrário e impaciente. Desses últimos, que seriam os modernos, talvez falava Nicholas Ray quando dizia que sempre tivera o sentimento de “o que nós conseguimos é apenas arranhar a superfície da prodigiosa aventura que é o cinema”. Trata-se então de marcar a localização daquilo que ainda não está, que já não está mais lá, ou ainda de sugerir o relevo pelos ocos, a presença pela ausência. Contrariamente aos outros filmes de Lubitsch, dos quais ele é como a face oculta, O pecado de Cluny Brown é um filme oco (profundo) e vazio (admirável), o único a ter feito um espetáculo (e que espetáculo!) daquilo que os outros eludiam; pois Ernst Lubitsch, que se consumia incansavelmente para dar a impressão de uma riqueza exuberante e de uma plenitude de todos os instantes, tinha um profundo horror do vazio. E assim como vemos seus personagens suportando febrilmente os mundos que atravessam, colecionadores de prazeres para quem cada segundo deve ser uma conquista, o cineasta empenha todo seu talento para mobiliar ao máximo esse espaço aberto, esse tempo suspenso que às vezes chamamos de um filme. Reconhecemos ali a estética do rendimento máximo. Reconhecemos também a moral hedonista da qual Jean Douchet – Cahiers, nº 127 – falou tão claramente. Mas, ao mesmo tempo, daí vem o fato de (como somar os prazeres?) que os filmes de Lubitsch são esquecidos assim que são vistos (sabemos somente que os amamos), assim como uma refeição, por mais admirável que fosse, não conseguiria saciar de uma vez por todas (possibilidade escandalosa se o fosse). Assim é a maior preocupação de Lubitsch: que tudo possa ser refeito (daí três monotonias pelo menos: intrigas, quadros e personagens), que um filme sempre refaça aquilo que os precedentes já alcançaram, que o prazer seja intenso mas o filme aberto, que a obra inteira seja um tipo de espetáculo permanente (Guitry dizia: “Eu gostaria de estar só, sozinho, fazendo peças que todo mundo escutaria o tempo todo.”) Os cineastas do prazer efêmero devem se repetir sem cessar, caso contrário, é notório que com o tempo tudo se arranja – ou seja, que tudo se anula. E não sem evocar o cinismo de um Ford, ou sobretudo de um Hawks, para quem uma aventura nunca interrompe o curso das aventuras (assim não é surpreendente que Hawks seja o próprio cineasta da repetição, o mais comprometido a plagiar a si mesmo). O cinismo: Hawks apaga uma palavra em um quadro-negro, Ford diz: “The world moves on”, quanto a Schulz, ele é formal: “Five hundred years from now, who’ll know the difference?” 


2. Mesmo assim se torna então surpreendente o fato de que Lubitsch tenha feito filmes. Obra que é paradoxal porque existe. Um filme, pensa-se prontamente, é um pouco a revanche do limitado sobre o sem-limite. Antes da primeira imagem, não havia nada; passado o último plano, não haverá nada. O que se deve ver – de fato, toda a vida – está escondido entre, e aquele que faz um filme está condenado ao mais exorbitante dos poderes, o de terminar. Entretanto, eis um cineasta (Lubitsch e outros cínicos) que só concebe fins suspensos, tempos provisórios e teses contraditórias. Um filme não encerra nada, não se liga a nada, não diz nada. Observemos tamanha prudência (covardia?) com a qual Lubitsch não somente afasta o casamento (ou sua consumação: A oitava esposa de Barba Azul) mas também as relações físicas, chegando a fazer um filme só sobre sua possibilidade (Anjo, Ladrão de alcova etc.), sempre adiada. Um filme sempre promete outro filme. Sócios no amor e Anjo, duas obras-primas, são imensos parênteses em que a riqueza de cada detalhe tem como consequência a inconsistência (ou melhor, a evanescência) do todo: ora por um ritmo muito rápido (o primeiro), ora por um abrandamento extremo (o segundo, mas também Não matarás), esses filmes se fecham sobre si mesmos, belos mas entrópicos. Filmes que são só filmes, carregando sua lei em si mesmos, inutilizáveis de outra forma (quer dizer que é inútil imaginar que possamos falar desses filmes, seja em relação a seu autor – que é somente o fornecedor – , seja a seu espectador – que é somente o consumidor). O cinema é então um luxo, uma atividade gratuita, mas então, paradoxalmente, quanto mais um filme é gratuito, mais ele deve ser cuidadosamente fabricado. É que o problema não é tanto o de construir um mundo coerente, mas sim o de fazê-lo atravessar a rampa, apesar de tudo. O essencial não é filmar Ninotchka ou Anjo no momento em que elas iniciam seu futuro, mas de dar a impressão de que já vimos essas cenas, sempre prometidas, nunca filmadas. O cinema de Lubitsch recria a vida, como o cinema dá a ideia de movimento: por um fenômeno de persistência retiniana. São somente sombras que falam às vezes mais do que de sombras e às vezes menos (O pecado de Cluny Brown justamente).



3. Um aventureiro que é sem dúvida um impostor, homem de um gosto refinado, defensor de uma arte de viver que se perde e se consome, e uma jovem moça, formidável ingênua sem gosto nem maneiras, aprendiz de encanadora em que habita uma grande fome de viver respeitável, respectivamente Adam Bielinksi (Charles Boyer) e Cluny Brown (Jennifer Jones), dividem por um certo tempo uma tela em que a fantasia de um roteiro os reuniu. Perto do final do filme, Bielinski subitamente decide casar-se com a jovem moça, que não diz não. Nos últimos planos, Bielinski tendo – diz-se – feito fortuna escrevendo um best-seller, eles estão muito bem vestidos e parecem muito felizes. O que surpreende em O pecado de Cluny Brown é: a) que a história é pouco crível e as relações entre os personagens mal são explicadas; b) que Lubitsch, por uma vez, não fez nada para dissimular essa falta de rigor. Não há mais falsas pistas: o que não existe entre os personagens (pois são apenas sombras) não será simulado. O pecado de Cluny Brown é o produto sem embalagem, o prazer sem sorrisos de encomenda (se você acredita que isso é alegre, que felicidade!), o cinema sem a publicidade. O inverso do cinismo não é a ternura, mas sim a indiferença. Assim, não são Bielinski e Cluny que são emocionantes (embora sua dedicação à felicicidade tenha algo de tocante), é o fato de que um filme – um pouco de Celuloide (1946) – existe, que ele se chama O pecado de Cluny Brown. O cinema é sim um luxo, o primeiro de todos, a vitória sobre o nada. E tudo acontece como se fosse o filme que carregasse, a partir de então, em sua própria existência, os perigos que ele tinha apenas sugerido. O pecado de Cluny Brown fala sim do prazer, mas de um prazer fugidio ou que ainda está para chegar, questão de disponibilidade transformada em errância e reconciliações vagas. O que vemos é, ao que parece, o que havia entre os planos dos outros filmes: a vida que avança ao acaso e o tempo perdido sem alegria. 

Cluny Brown foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma, n° 198, fevereiro de 1968 ; e republicado no livro Ernst Lubitsch, coletânea organizada por Bernard Eisenschitz e Jean Narboni, Paris, Cahiers du Cinéma, 2006, p. 240-244. Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.

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