Nick Ray e a casa das imagens




Por Serge Daney 

Eu me lembro de um tempo em que em um a cada quatro cafés do Trocadéro, qualquer um (qualquer rato de cinemateca) podia defender que o maior cineasta do mundo era X ou Y, mas que Nicholas Ray havia feito talvez o mais belo filme do mundo. Em algumas tardes era Amargo Triunfo, em outras Delírio de Loucura. Sempre houve Nicholas Ray e os outros, como se entre ele e o cinema existisse um elo privilegiado o qual cabia-nos vigiar. Sabíamos já que sua carreira não era fácil, que ela seria interrompida. Mais que Welles, Ray possuía o perfil do grande looser. Exceto que, às vezes, perder é ganhar. Pathos? Romantismo fácil? Sim, mas sabíamos também - ele havia dito em uma entrevista para os Cahiers – que, para ele, o cinema havia apenas começado e que nós só podíamos o entrever, que ele ainda nos surpreenderia. Estranha proposição para um cineasta hollywoodiano. Proposição que ele não deve ter esquecido. Apresentado em Cannes em 1973, redescoberto após sua morte em 1980, contrabandeado e programado em inglês no Action-République [1] durante uma semana, We Can’t Go Home Again nos diz que nós tínhamos razão. Nós tínhamos razão de colocá-lo "à parte", porque ele que não filmava mais, conclui, postumamente, um ciclo no cinema. Trajetória única: ele é o único a ter seguido seus dois objetos de predileção - os jovens e o cinema - em suas aventuras mais recentes. Desde seu exílio, sua retirada, no início dos anos 70, ele é o único cineasta de sua geração a testemunhar in vivo o que os jovens e o cinema se tornaram. E não porque, na falta de algo melhor, ele teria se entregado tardiamente à “experimentação”, mas porque ele faz parte desses cineastas que só podem ser contemporâneos. Por isso que Godard o amara tanto. Por isso que, em nossa imaginação, Ray não envelhecia, não mais que o cinema. We Can’t Go Home Again é simplesmente mais um filme de Ray, desta vez de 1973. Mais um filme sobre a juventude, aquela do pós-1968, generosa e tagarela, drogada e pragmática, violenta e sentimental. Mais um filme sobre a educação, o grande tema rayniano, com, desta vez, o cineasta se colocando em cena a partir daquilo que ele é: um nome, uma glória murcha, o professor de cinema que fez, em seu tempo, Juventude Transviada. Mais um filme sobre os pais que não sabem ser pais, que forjam o édipo, imitando suas mortes, que amarram nós que não poderemos mais cortar. Ray, cineasta gordiniano [2]: no fim do filme, ele se enforca diante de seus alunos aterrorizados, à noite, em uma granja. A voz off do enforcado murmura a um jovem casal "Take care of each other". Como não pensar em Amarga Esperança? Mais um filme sobre a impossibilidade do retorno, sobre a fuga, sobre a falta de um lar. Pois o filme é único: nele, o cineasta desintegra e recompõe o que fazia a própria matéria de seu filme. A tela é povoada de imagens menores que vibram, que coexistem e que se embaralham. Gritos e confissões flutuam sobre um fundo preto, mas esse fundo preto é por vezes a sombra de uma casa, com um telhado, como àquelas desenhadas por crianças. Não mais uma casa para os personagens, mas uma casa para as imagens "que não têm mais uma casa": o cinema. Não podemos mais retornar para a nossa casa... Em 1977, a primeira semana dos Cahiers assolou New York, no Bleecker. Descobri que Ray - que dava um curso em um bloco de lá - acabara de abandonar a sala durante a projeção de Numéro Deux. Eu corri atrás dele. Nós nos apresentamos. Ele não tinha gostado do filme de Godard, muito duro, intelectual, autodestrutivo. Eu ria escondido. Acrescentara, ele mesmo, que havia feito um filme desse tipo, antes de Godard, mas as bobinas tinham sido perdidas durante a remontagem. Em 1980, sua viúva, Susan Ray veio a Paris com o filme debaixo dos braços. Ela queria concluir o filme, remontá-lo e adicionar algumas coisas, conforme o desejo de Ray, a quem o filme não satisfazia. Ela tem razão? Não tenho certeza. O que é certo é que nenhuma cinemateca no mundo deveria dormir tranquila com a ideia de não possuir, nos seus bunkers, uma cópia de We Can’t Go Home Again

[1] NdT: Antiga sala de cinema parisiense. 
[2] NdT: O termo nó gordiniano designa, metaforicamente, um problema que não apresenta solução aparente e que só pode ser resolvido de forma radical.

Nick Ray et la maison des imagens foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, nº 310, abril de 1980. Tradução: Evandro Scorsin. 

O artifício in natura



Sobre “Montagem proibida” de André Bazin, 1958

Por Jean Narboni 

Reformulação de uma crítica publicada nos Cahiers du Cinéma em julho de 1953 sobre O cavalo branco, filme bem esquecido de Albert Lamorisse, e de um artigo de dezembro de 1957 portando já o título que a publicação de O que é o cinema? em 1958 deveria tornar célebre, “Montagem proibida” é sem dúvida o texto de André Bazin mais frequentemente citado, evocado ou mencionado na história dos textos teóricos sobre o cinema. Brandido mesmo, ou melhor, o seu título, como uma palavra de ordem, um imperativo e um mandamento, as implicações que aí detectamos são frequentemente imbuídas de moral, até mesmo de uma surda religiosidade. Mas fora ele verdadeiramente lido, eu quero dizer, lido por completo e compreendido? Eu descobri esse texto ainda jovem cinéfilo deslumbrado e para ele sempre voltei, surpreso que frequentemente vejam nele um ato de fé na presença sem manipulação das coisas, uma mística do famoso “vestido sem costura da realidade” e, em primeiro lugar, uma queixa contra a onipotência da montagem, criticada pelos seus poderes exorbitantes de imposição de sentido e seu domínio sobre o espectador; queixa de mesma natureza mas mais violenta aqui que aquelas as quais Bazin se dedicou durante toda sua atividade de crítico e teórico. Agarrar-se a essa visão é, contudo, reduzir essas páginas a uma simples fórmula de proibição e desconhecer sua complexidade, as inversões lógicas e uma riqueza em paradoxos ainda mais surpreendentes quando enunciados com calma numa linguagem esplêndida. Eu creio que é possível, pelo contrário, sustentar sem provocação que “Montagem proibida”, longe de ser somente a defesa do respeito ao ser-aí das coisas, elogia os méritos do estratagema e do subterfúgio, para não dizer – o respeito pelo autor nos obriga – da trucagem, das misturas impuras e de um realismo compreendido não mais ontologicamente mas como um pragmatismo. 

As razões que fazem Bazin questionar ao longo dos seus textos os poderes da montagem, e aquelas que o conduzem em “Montagem proibida” a proscrevê-la totalmente em certas circunstâncias diferem sensivelmente. A proibição proclamada da montagem nesse último texto se opõe primeiramente pela sua radicalidade às numerosas páginas nas quais Bazin se limita a questionar sua importância na criação cinematográfica e a marcar sua inclinação estética por outros procedimentos de realização. Nesses, suas reticências sobre a fragmentação de cenas e sua preferência pelos planos longos e a profundidade de campo que respeitam a integridade do espaço respondem a uma exigência quanto à intensidade dramática dos filmes, a pluralidade de signos, a natureza dos encadeamentos entre os fatos representados e a parte de liberdade deixada ao critério do espectador. A ambivalência constitutiva das imagens, a possibilidade de escolha que o espectador dispõe entre os diversos centros de interesse de uma cena ou de um plano, a possibilidade aberta de leituras múltiplas de um acontecimento figurado seriam para Bazin irremediavelmente comprometidas pela autoridade de uma montagem que impõe um sentido em detrimento da riqueza das imagens, uma relação de necessidade no lugar da casualidade e que guia com mão firme um espectador submisso. A ilustração mais célebre desse ponto de vista é sua análise da cena da cozinha em Soberba. É a manutenção por Orson Welles de um único e bem longo plano fixo que, segundo ele, permite obter a maior eficácia dramática. A mudança de tom entre as proposições insignificantes de Fanny sobre a gula do jovem George que está se empanturrando com tortas de creme e suas raras questões inquietas, o contraste entre a agitação gulosa do jovem rapaz e a calma afetada de uma Fanny que esconde mal a sua inveja e sua angústia, são geradores de um “charme pesado” e de uma tensão que a crise de nervos final arremata ao se descarregar. Bazin então, quando ele defende que a realização dessa cena em um único plano lhe dá uma riqueza contrapontista e uma força que sua fragmentação não deixara de alterar, se coloca do ponto de vista do rendimento dramático e da liberdade atribuída à sensibilidade e inteligência do espectador de escolher e de se mover entre os elementos visuais e sonoros da situação representada. 


“Montagem proibida” responde a uma exigência bem diferente: ela não diz respeito a um problema de qualidade do drama, de riqueza dos significados ou de posição do espectador, mas àquele de sua crença e dos meios implementados pelo cineasta para suscitá-la. Bem cedo no texto Bazin adianta uma fórmula distanciada de qualquer fé ingênua no “vestido sem costura” e na verdade imaculada: “O que é preciso, para a plenitude estética do empreendimento, é que nós possamos crer na realidade dos acontecimentos, sabendo que eles são trucados”. Sublinhando os termos “crer” e “sabendo”, ele descreve com muita exatidão o mecanismo da negação (“eu sei bem mas mesmo assim”) como fundamento da crença do espectador de cinema e o maior desafio para o cineasta. Um pouco antes, ele já afirmava a necessidade de uma “margem de trucagem”, de uma “margem de subterfúgio” para pôr em movimento o imaginário do espectador e desencadear essa crença. Sobre qual elemento e em qual momento do filme deve então intervir a famosa proibição radical da montagem proclamada pelo título como garantia da veracidade dos eventos representados? A análise de Bazin é aqui infinitamente sutil e paradoxal, sobretudo nas passagens dedicadas a O cavalo branco. Trata-se de um média-metragem realizado em 1952 por Albert Lamorisse, autor também, entre outros filmes, de O balão vermelho ao qual Hou Hsiao-hsien prestou homenagem em 2007 com seu A Viagem do balão vermelho. Muito apreciado e louvado no seu tempo, muitas vezes premiado, tendo mesmo ganhado um Oscar, esse conto retraça as aventuras em Camarga de um cavalo selvagem e de um garotinho arisco que seus temperamentos e as circunstâncias vão aproximar e atar numa amizade fabulosa. Sem parecer chocado de modo algum, Bazin recorda que a filmagem recorreu a três ou quatro cavalos diferentes (até seis segundo testemunhas da época), que foi preciso puxar as ventas do animal com um fio de nylon para lhe fazer virar a cabeça no tempo desejado, e que na cena perigosa na qual a criança é arrastada pelo cavalo galopando, é Albert Lamorisse em pessoa que substituiu o garoto. Não só ele não se chocou com esses artifícios, mas ele afirma a sua necessidade sem os quais, segundo ele, o filme seria apenas o registro mecânico de uma performance de adestramento sem interesse estético, pois incapaz de jogar com o “eu sei bem mas mesmo assim” da negação que comanda a crença cinematográfica. É somente a propósito de um episódio e de uma imagem ausente que Bazin proclama a sua interdição da montagem: quando o cavalo desacelera e para, Lamorisse teria cometido o erro de não mostrar ao menos uma vez o animal e a criança no mesmo plano. Esse grave erro, continua Bazin, Lamorisse não o tinha cometido um pouco antes no filme no momento da caça ao coelho no qual ele enquadrava simultaneamente o cavalo, a criança e as presas. Surge então sob sua pluma o que ele não hesita em chamar de uma lei estética: “Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem é proibida.” E para apoiar esse princípio, ele convoca dois exemplos esclarecedores de recusa da montagem: o longo plano em História de Louisiana em que o crocodilo apanha uma garça e aquele de O Circo de Chaplin que mostra o herói e o leão encarcerados na mesma jaula e no mesmo quadro. 

Os comentários suscitados por “Montagem proibida” desde sua publicação, a glória duradoura que esse texto conheceu e sua limitação a uma fórmula sacramental de prescrição não ajudaram para que fosse esclarecida a relação, contudo, marcada com insistência por Bazin entre essa imagem de contiguidade espacial necessária à credibilidade de uma situação e o filme no seu conjunto. É aí, contudo, que o paradoxo fundamental do texto beira à provocação, arruinando de antemão qualquer piedade interpretativa. Se a presença simultânea de fatores da ação, indispensável para a crença num certo acontecimento, só valesse como prova em si e isoladamente, ela permaneceria limitada a si mesma e sem incidência sobre o conjunto da narrativa. É exatamente a isso que Bazin não a reduz. Para ele, essa imagem “teria autenticado retrospectivamente todos os planos anteriores”, e teria sido suficiente, para que a narrativa de O cavalo branco reencontre sua realidade, que “somente um de seus planos, convenientemente escolhido, reúna os elementos outrora dispersados pela montagem”. A fórmula da negação que faz crer na verdade de acontecimentos que nós, no entanto, sabemos trucados se encontra invertida pelo movimento do próprio pensamento do seu autor: é porque nós sabemos que é verdadeira a imagem de um acontecimento representado que nós acreditamos em todos os planos trucados dos quais ela é a exceção. A autenticação, a junção pela virtude de um único plano de elementos outrora dispersados pela montagem e logo a legitimação através de uma imagem de todos os subterfúgios precedentes aparentam a operação a uma transmutação mágica do chumbo das trucagens no ouro da verdade, a uma precipitação ou conversão do artificio in natura. Eu só recorro, aliás, a essas comparações de ordem química ou física (incluindo o uso do termo equívoco de conversão) pois o próprio Bazin pede frequentemente emprestado a essas disciplinas (assim como à geologia ou à geografia), a propósito particularmente da noção de impureza cinematográfica que ele atualizou, analisou e promoveu como programa estranho à toda acepção religiosa e mesmo moral. 


“Montagem proibida”, longe de ser um texto à parte na obra de Bazin, limitado ao âmbito de um cinema documentário implicando particularmente situações em que um dos protagonistas está em perigo, constitui um caso particular do seu campo principal de pesquisa, a preocupação constante de O que é o cinema?: a atualização nos filmes – para utilizar seus próprios termos – de uma dialética do abstrato e do concreto, do real e do imaginário, do artificio e da natureza, e a identificação nas suas composições de, ao menos, sempre dois regimes ou registros contrários e em tensão. Em “Montagem proibida”, essa abordagem, longe de sacralizar a presença de um momento único para se ater a ele como um absoluto, insistia na autenticação de todas as trucagens anteriores através dessa imagem, logo, nas suas ligações e sua inseparabilidade. Mais amplamente, não são somente os documentários mas também as maiores ficções que ilustram, em Bazin, a mesma interação transformadora de elementos contraditórios e a estranha química que os faz mudar de natureza. É por isso que esse texto não serve tanto para ser comparado àqueles em que o autor contesta a preeminência da montagem quanto às páginas – aparentemente sem relação com esse procedimento – em que ele descreve essa dialética dos opostos. Daquelas, por exemplo, sobre As damas do Bois de Boulogne: “A realidade da chuva, o ruído de uma cascata, o da terra que se derrama de um vaso quebrado, o trote de um cavalo sobre a calçada não se opõem unicamente às simplificações do cenário, à convenção dos figurinos, e ainda, ao tom literário e anacrônico dos diálogos; a necessidade de sua intrusão não é a da antítese dramática ou do contraste decorativo: eles estão ali pela sua indiferença e sua perfeita situação de ‘estrangeiros’, como o grão de areia na máquina para emperrar o mecanismo. Se o arbitrário de sua escolha se assemelha a uma abstração, é então a do concreto integral: ela arranha a imagem para denunciar sua transparência como uma poeira de diamante. Ela é a impureza em estado puro.” Ou ainda: “Bastou apenas o barulho de um limpador de para-brisa sobre um texto de Diderot para fazer dele um diálogo raciniano.” Ou ainda, dessa vez sobre A paixão de Joana D’Arc de Dreyer: “... nada menos realista do que esse tribunal no cemitério ou aquela ponte levadiça e, no entanto, tudo é iluminado pela luz do sol e o coveiro joga no buraco uma pá de terra de verdade. São esses detalhes ‘secundários’ e aparentemente contrários à estética geral da obra que lhe conferem, no entanto, sua natureza cinematográfica.” (Éric Rohmer, o mais baziniano dos cineastas, se lembrará dessa análise em uma cena de Perceval, o Gaulês) É numa linguagem igualmente bela que a lei dessa alquimia será enfim anunciada por Bazin: “... o isolamento do catalisador estético que bastará para introduzir uma dose infinitesimal na mise en scène, para que ela precipite totalmente in ‘natura’. A floresta de concreto dos Nibelungos por mais que pareça infinita, nós não acreditamos no seu espaço; quando o tremor de um simples galho de uma bétula ao vento, sob o sol, poderia bastar para evocar todas as florestas do mundo.” Cocteau, dialoguista “raciniano” de As damas do Bois de Boulogne e cineasta admirado por Bazin, tornou-se mestre na arte de isolar o infinitesimal catalisador estético, o elemento heterogêneo capaz de emperrar as máquinas mais bem estruturadas. Eu torno a refletir sobre um momento surpreendente de um filme, todavia, não revisto há muito tempo, A Bela e a Fera, no qual em pleno clima fantástico alguns lençóis suspendidos num pátio de fazenda caem na terra. Chega então a Bela que os recolhe e exclama: “Mas esses lençóis vão se sujar!” O efeito de choque e a mudança radical de natureza da cena que provocam esse gesto e essas poucas palavras ilustram uma outra metáfora cara a Bazin, aquela da cristalização, transformação de uma solução sobressaturada sob o efeito de um agente exterior dosado levemente. É por isso que Cocteau podia se autorizar a definir A Bela e a Fera – contra os estetas vaporosos – como um conto, mas um conto de fatos


A redução unidimensional de cada exemplo dado em “Montagem proibida” a um aspecto separado de seu aspecto complementar, sua redução a uma palavra de ordem intimidante, poderia encontrar seu prolongamento engraçado num uso social, hoje, mundialmente crescente: aquele da selfie. O que procuram com efeito seus adeptos, praticando sem o saber um bazinismo insípido como o Burguês fidalgo fazia da prosa, senão um traço de sua proximidade física com uma celebridade esportiva, política ou mediática, Cristiano Ronaldo, Stromae ou Emmanuel Macron? A imagem duramente cobiçada destina-se a provar que o autor esteve ao menos uma vez no mesmo quadro que o seu parceiro de eleição, como Carlitos e o leão na jaula. Mas assim, tão hesitante e limitada a si mesma, sem poder de autenticação retroativo de nada, a imagem permanece um catalisador sem uso e sem solução. Na ausência de um esforço de montagem através do qual os autores de selfies poderiam se tornar verdadeiramente bazinianos. 

L’artifice en nature foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 100 (edição comemorativa intitulada L’écran, l’écrit), no inverno de 2016. Tradução: Leticia Weber Jarek.

Gente da Sicília



Por Jean-Claude Biette 

Gente da Sicília é ao mesmo tempo um filme que resplandece sozinho e um pico da obra dos Straub. Um pico fácil que podemos atingir sem corda. 

Se, segundo a ideia generosa de Manoel de Oliveira, um filme tem por verdadeira nacionalidade aquela do país no qual ele foi rodado, então uma grande parte da obra dos Straub é decididamente italiana, mesmo quando ouvimos nela o alemão ou o francês. 

Pouquíssimos dos seus filmes italianos falam do mundo moderno diretamente: estes são muitas vezes eloquentes peplums de teatro onde a Antiguidade é, sempre, despetrificada, entregue à história viva. 

Com Gente da Sicília adaptado de Conversa na Sicília de Vittorini, é a Itália do século XX: no fim dos anos 30, enquanto Mussolini parodia o Império dos Césares, é já a exploração da Sicília, esta terra quase africana, um sul que resiste como pode ao norte, e o filme o poema preto e branco do mundo ofendido. 

Graças às vozes dos atores que jamais proferiram o italiano tão agradavelmente (o texto foi primeiro desempenhado no palco sob a direção dos Straub), é também a Itália de hoje que é fisicamente representada. Incompleta, com seus vazios, intensa: a alma perdida do cinema italiano. 

Quando se trata como aqui de laranjas invendíveis, de peixes grelhados na brasa, de suspeitas policiais, de retorno à casa da mãe, de encontros noturnos clandestinos no vale que terminam por se assumir, de utensílios que não compramos mais, de perda do pensamento manual, o que se canta então é o excessivo ou o insuficiente com o qual se constrói, como a vida, um filme. 

Sicilia ! foi o texto de apresentação do filme para o ACID, publicado na revista La Lettre du Cinéma n° 11, outono de 1999. Tradução: Miguel Haoni.

O lugar de memória mais belo


Visão geral sobre Gente da Sicília de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 

Por Mehdi Benallal 

O que eles fizeram do romance de Elio Vittorini? Eles escolheram os seus fragmentos, os respeitaram, trabalharam neles, lhes entregaram ao ar livre e às vozes dos seres vivos. Voltaremos a isso. Será talvez Louis Seguin, que escrevia no seu importante livro: “[Jean-Marie Straub e Danièle Huillet] não estabelecem uma segunda narrativa que garantiria a verossimilhança, a vida da ficção original. O cinema não cura a infelicidade do romance mas, pelo contrário, a secciona e deixa a ferida aberta. Ele abre buracos no texto. Ele isola, para empregar um vocabulário que é caro à Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, os ‘blocos’. A decupagem retorna ao seu sentido mais literal: ela talha, ela corta. Não se trata mais de imitar, de comentar ou de ilustrar, mas de abrir na escrita orifícios imprevistos, aberrantes. A visão é uma violência.[1] 

Com esse filme, mais uma vez, o cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet prova ser um dos últimos, um dos únicos, a exigir de nós que nos lembremos – que seja a nossa memória que faça o esforço, sem o qual não adianta querer nada. 

Quando a mãe de Silvestro, na casa dela, conta como ela amou um homem, e que longa estrada este homem pegava para encontrá-la, e como este homem foi talvez assassinado, no fim, ela se interrompe, seu rosto não se vira, não se abaixa, não acrescenta nada ao que acabou de ser contado exceto uma concentração que se esquece. É que aqui as lembranças da mãe obrigam ao silêncio. Esse silêncio é justo porque é verdadeiro: quem já escutou sua mãe, ou alguém mais velho, lhe pintar as coisas passadas o conhece. Esse silêncio, Silvestro o “inquisidor” (a palavra é do próprio Straub) não saberá rompê-lo. Pois vimos a gruta no começo de Othon, na qual, durante a Segunda Guerra Mundial, os comunistas escondiam armas, os Alpes apuanos em Fortini/Cani, onde morriam os resistentes, e a montanha Santa Vitória em Cézanne, mas o mais terrível, o mais belo lugar de memória, é o rosto humano mergulhado numa lembrança. E isso, em Gente da Sicília, os Straub filmaram. 

[1] Louis Seguin, "Aux distraitements désespérés que nous sommes..." - Sur les films de Jean-Marie Straub et Danièle Huillet, Toulouse, Ombres, 1991.

Le plus beau lieu de mémoire foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n° 10, verão de 1999. Tradução: Miguel Haoni. 

Cineclube do Bairro apresenta: Cabras marcados para morrer

O Bairro é um clube de leitura de Curitiba, que frequentamos entre os anos 2014 e 2015. A ideia matriz era reunir pessoas para conversar sobre livros e, sobretudo, o que estes livros pudessem inspirar. Ali construímos uma pequena comunidade, inspirada na troca intelectual e na amizade. O tempo passou, nos afastamos e, em virtude das imposições deste duro ano de 2020, sentimos vontade de nos reaproximar.

Hoje, pela internet, desenhamos uma nova arquitetura para o Bairro. O clube se expande e novas ruas, em direção ao teatro e ao cinema, estão sendo abertas. É esta última que vamos apresentar aqui. 

A impossibilidade do contato físico lançou luz sobre outras formas de troca que sempre estiveram à mão, mas que não conseguíamos ver. O Cineclube do Bairro pretende, portanto, estabelecer uma comunidade virtual com novas pontes, ruas, encruzilhadas, esquinas – um país imaginário, habitável, como aquele do Cinema percorrido por Serge Daney. Como no trabalho do historiador, que interroga o passado munido das inquietações do presente, queremos estabelecer um diálogo entre a história do cinema e o nosso contexto, perturbado pelo apocalipse político e pela crise sanitária. Acreditamos que os artistas que traremos para a conversa propõem, através dos seus filmes, visões, recortes do mundo que convidam à análise e à reflexão. 

Essa comunidade se liga a outras, se conecta a outras realidades. E o cineclube é também um convite à deriva. Para nós, o cinema sempre foi o ato de andar por uma rua que não conhecemos. Mas sempre com a consciência de que outras pessoas já estiveram ali. O primeiro passo é este ciclo, intitulado “Cabras marcados para morrer”, através do qual tentaremos cercar, na conversa sobre quatro filmes (Iracema - uma transa amazônica, Tempestades d’alma, Cabra marcado para morrer e Homens armados), algumas respostas para o negacionismo que retorna mais uma vez. Trata-se aqui de quatro filmes políticos – e é preciso não ter medo dessa palavra – mas que precisam ser visitados sem os atalhos da generalização. São histórias que afrontam a morte programada pelo poder; guiadas por personagens não-conciliados, resistentes a um sistema que lhes condena ao desaparecimento, essas obras apelam à memória. 

Todo silêncio é então, nesse sentido, criminoso. Os filmes guardam, nas suas respectivas formas de representação, o toque da morte e carregam o registro de outros tempos e espaços. É preciso lembrar da ascensão do nazismo, dos efeitos destrutivos da ditadura militar no Brasil, das guerrilhas populares no México. É preciso lembrar mas não só. 

Por outro lado, como nos mostra John Sayles no filme que fecha o ciclo, o mundo sempre esteve na iminência do fim e sempre renasceu. 

Leticia Weber Jarek e Miguel Haoni 

Programação: 

12 de agosto: Iracema - uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna 
26 de agosto: Tempestades d’alma, de Frank Borzage 
9 de setembro: Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho 
23 de setembro: Homens armados, de John Sayles 

Serviço: 

Encontros quinzenais, às quartas-feiras, 14h30, através do Jitsi 
Inscrição gratuita e maiores informações: cineclubedobairro@gmail.com
VAGAS LIMITADAS

Chantal Akerman: Do Oeste



Por Dominique Païni 

Curiosa época essa pouco sensível às ondulações, às alternâncias de uma aventura estética. No entanto, ao que tudo indica o ecletismo não é estranho à obra de artistas do século XX. 

Curiosa época que se distingue ao prever tudo, a tudo pressagiar e decidir antecipadamente o interesse ou o êxito de uma obra na medida de um quadro intangível no qual inscrevemos dogmaticamente e previamente o trabalho de um artista. 

Os comentários críticos sobre o último filme de Chantal Akerman são o exemplo desses bloqueios de avaliação. A priori, esse filme não poderia ser de Akerman... de tanto que suas condições de produção excluíam toda possibilidade de marca singular. 

Chantal Akerman é uma grande figura do cinema moderno: rarefação de efeitos, fascinação urbana, coreografia de corpos apaixonados, rigor minimalista do enquadramento, interrogação das situações contemporâneas de enclausuramento. Os espectadores e críticos sempre tendem a esperar muito pela repetição, a tranquilizadora renovação dos mesmos efeitos de estilo, sem ponderar que essa expectativa pode engendrar a asfixia para um artista. Os mesmos não deixam de lamentar, de censurar a fossilização, a autocitação, o maneirismo e as receitas estilísticas. Chantal Akerman é uma cineasta cujo estilo é bem facilmente identificável, mas mais complexa do que deixa supor uma pretensa “maneira Akerman”. 

Do Leste é o filme que precede Um divã em Nova York. Ele é radical e lírico, minimalista e aterrorizante. Como imaginar que Akerman pôde oferecer dois anos mais tarde uma obra cuja referência não é mais a ansiedade social e cultural da Europa pós-comunista mas o nascimento do amor entre uma jovem dançarina parisiense e um psicanalista nova-iorquino? Os travellings sistemáticos e os planos fixos das estradas desertas quase straubianos não prefiguravam os movimentos fluídos de câmera no interior de apartamento pitorescos, ou deliberadamente estereotipados, reconstituídos em Babelsberg. Da miséria que ameaça o Leste, Chantal Akerman passou sem avisar à futilidade do Oeste! É provavelmente inadmissível em nome de uma Política dos Autores que se tornou definitivamente muito correta.

Chantal Akerman já tinha demonstrado seu talento de cineasta de comédia, senão mesmo, de cineasta cômica: Golden Eighties (1985), depois de uma maravilhosa maquete do mesmo filme: La Galerie. O apartamento de Samy Frey (A Mudança, 1992) e os inúmeros momentos de outros filmes provaram esse talento capaz de transformar situações autárquicas em catástrofes keatonianas.


Curiosa época então: Chantal Akerman varia, reaparece a cada filme de maneira decididamente inesperada, e confronta-se com a incompreensão e a expectativa necessariamente frustrada. 

Então, é preciso começar do zero com sua obra e considerar esse último filme esquecendo momentaneamente aqueles que o precederam? Apenas momentaneamente, pois é quase certo que essa inocência voluntarista do espectador se opõe à obra inteira. Pois, no fundo, há nesse Divã uma mesma radicalidade, um mesmo empreendimento de redução minimalista. Não é mais a paisagem europeia, perturbada pela queda do comunismo, que é submetida a uma escrita radical, é um gênero cinematográfico, ele também extinto. A cineasta pega emprestado o gênero da “screwball comedy” dos anos trinta hollywoodianos e lhe submete às leis do cinema moderno europeu que não está longe de ser por si só um gênero para os cineastas americanos contemporâneos fascinados pela Europa. 

Diríamos: impossível não pensar em Lubitsch? Mas, afinal de contas, por quê? A referência à “screwball comedy” é suficiente? Na verdade, as relações estilísticas são mais profundas. Como Lubitsch, e particularmente em Ladrão de Alcova, trata-se menos de um encontro de corpos (aqui precisamente, trata-se mais do seu cruzamento e seu distanciamento) que o de sua extensão imobiliária. Conhecemos o imaginário imobiliário de Chantal Akerman, verdadeira poética do espaço. É frequentemente a tensão e a relação entre os espaços que a cineasta mostra. O Quarto, Jeanne Dielman, o apartamento de Samy Frey e o de L’Homme à la valise (1983), os quartos de hotel de Anna... Ela se preocupa principalmente com a cenografia. Aqui são duas experiências – o americano em Paris e a francesa em Nova Iorque – de apropriação de um espaço por corpos estrangeiros. Ela filma então, ainda, uma coreografia. Então, estamos assim tão longes de seus filmes anteriores? É um acaso que Chantal Akerman encontrou um dia Pina Baush? 

São duas autarquias que se afrontam em Um divã em Nova Iorque. Mesmo se o americano e a francesa não são verdadeiramente autárquicos. A mise en scène de Akerman alterna entre dois espaços fechados. Clausura acentuada pelo efeito “estúdio”, até a asfixia dos dois personagens, cuja deliciosa liberação final se realizará pela... sacada (lírico movimento de câmera para trás, para deixar os dois corpos enfim reunidos). 

Qual é, no fundo, o verdadeiro tema do filme? Mais uma vez, o amor à primeira vista, ainda que poucos filmes da realizadora de Toda uma noite (1982) – este filme feito de abraços brutais - tenham feito frontalmente desse o seu tema. Toda uma noite ou Retrato de uma garota do fim dos anos 60 em Bruxelas (1993) são filmes sobre o estiramento, a dilatação, a lentidão temporal que resulta da queda na paixão. Também são filmes sobre o destino da palavra na aventura amorosa.

Para Juliette Binoche, dançarina, frente os pacientes, a palavra prima sobre os efeitos tranquilizadores do sábio domínio de si do psicanalista profissional (as visitas “médicas” lembram as visitas “amorosas” de Jeanne Dielman). Por outro lado, o psicanalista, inclinado a detectar em todos os lugares a linguagem, fica literalmente sem palavras para declarar seu choque amoroso. Do roubo das suas bagagens à desarrumação de suas roupas, seu amor à primeira vista se traduz aliás numa ruína generalizada. É preciso relembrar que Chantal Akerman, mulher de palavra, cineasta da escrita cujo livro constitui um evidente fundamento cultural e espiritual, deve saber muito sobre o que pode arruinar, dessa maneira, a expressão? Amar até não poder mais falar. 

Um divã em Nova Iorque é uma história de amor como o cinema contemporâneo raramente nos oferece: Chantal Akerman sabe descrever – como sabiam os cineastas de gênero hollywoodianos – a perturbação amorosa, a inocência ou o desconhecimento do amor do outro, a ansiedade de não ser amado pelo outro na medida do seu próprio elã, os quiproquós e as usurpações involuntárias que desencadeiam a paixão, os signos exteriores da “decadência” que acompanham a queda amorosa. 

Um divã em Nova Iorque é uma obra ferida. Os acasos da produção não serviram à desenvoltura da cineasta. Mas as descobertas dramáticas são tantas que não conseguimos identificar as feridas do filme. Como esse longo travelling dos dois personagens que ainda não se descobriram e que andam pelo apartamento de Nova Iorque separados pelas divisórias de vidro fosco. A dilatação temporal do encontro é acompanhada aqui de um efeito visual emocionante, como se o informe, o embaçado, materializassem o suspense no processo de descoberta do outro.

Essa elegância plástica pertence somente à cineasta de Do Leste. A videoinstalação a partir desse filme, na Galeria nacional do Jeu de Paume[1], afirmou se é que isso é ainda necessário, a união estreita na sua arte, de uma viagem ou de uma narrativa e de uma concepção muito plástica e arquitetural da mise en scène. Por que supor que, repentinamente, Chantal Akerman traiu-se “passando para o oeste” – o que hoje, de fato, significa tão pouco que outrora, escolher a liberdade? 

[1] De 10 de outubro a 26 de novembro. Catálogo da exposição: Chantal Akerman: d’Est, au bord de la fiction, Réunion des Musées nationaux, Walker Art Center, 1995.

Chantal Akerman: D’Ouest foi publicado no livro Le cinéma, un art moderne, Paris, Cahiers du Cinéma, 1997, p. 88-90. Tradução: Leticia Weber Jarek.