Eu me lembro de um tempo em que em um a cada quatro cafés do Trocadéro, qualquer um (qualquer rato de cinemateca) podia defender que o maior cineasta do mundo era X ou Y, mas que Nicholas Ray havia feito talvez o mais belo filme do mundo. Em algumas tardes era Amargo Triunfo, em outras Delírio de Loucura. Sempre houve Nicholas Ray e os outros, como se entre ele e o cinema existisse um elo privilegiado o qual cabia-nos vigiar. Sabíamos já que sua carreira não era fácil, que ela seria interrompida. Mais que Welles, Ray possuía o perfil do grande looser. Exceto que, às vezes, perder é ganhar. Pathos? Romantismo fácil? Sim, mas sabíamos também - ele havia dito em uma entrevista para os Cahiers – que, para ele, o cinema havia apenas começado e que nós só podíamos o entrever, que ele ainda nos surpreenderia. Estranha proposição para um cineasta hollywoodiano. Proposição que ele não deve ter esquecido. Apresentado em Cannes em 1973, redescoberto após sua morte em 1980, contrabandeado e programado em inglês no Action-République [1] durante uma semana, We Can’t Go Home Again nos diz que nós tínhamos razão. Nós tínhamos razão de colocá-lo "à parte", porque ele que não filmava mais, conclui, postumamente, um ciclo no cinema. Trajetória única: ele é o único a ter seguido seus dois objetos de predileção - os jovens e o cinema - em suas aventuras mais recentes. Desde seu exílio, sua retirada, no início dos anos 70, ele é o único cineasta de sua geração a testemunhar in vivo o que os jovens e o cinema se tornaram. E não porque, na falta de algo melhor, ele teria se entregado tardiamente à “experimentação”, mas porque ele faz parte desses cineastas que só podem ser contemporâneos. Por isso que Godard o amara tanto. Por isso que, em nossa imaginação, Ray não envelhecia, não mais que o cinema. We Can’t Go Home Again é simplesmente mais um filme de Ray, desta vez de 1973. Mais um filme sobre a juventude, aquela do pós-1968, generosa e tagarela, drogada e pragmática, violenta e sentimental. Mais um filme sobre a educação, o grande tema rayniano, com, desta vez, o cineasta se colocando em cena a partir daquilo que ele é: um nome, uma glória murcha, o professor de cinema que fez, em seu tempo, Juventude Transviada. Mais um filme sobre os pais que não sabem ser pais, que forjam o édipo, imitando suas mortes, que amarram nós que não poderemos mais cortar. Ray, cineasta gordiniano [2]: no fim do filme, ele se enforca diante de seus alunos aterrorizados, à noite, em uma granja. A voz off do enforcado murmura a um jovem casal "Take care of each other". Como não pensar em Amarga Esperança? Mais um filme sobre a impossibilidade do retorno, sobre a fuga, sobre a falta de um lar. Pois o filme é único: nele, o cineasta desintegra e recompõe o que fazia a própria matéria de seu filme. A tela é povoada de imagens menores que vibram, que coexistem e que se embaralham. Gritos e confissões flutuam sobre um fundo preto, mas esse fundo preto é por vezes a sombra de uma casa, com um telhado, como àquelas desenhadas por crianças. Não mais uma casa para os personagens, mas uma casa para as imagens "que não têm mais uma casa": o cinema. Não podemos mais retornar para a nossa casa... Em 1977, a primeira semana dos Cahiers assolou New York, no Bleecker. Descobri que Ray - que dava um curso em um bloco de lá - acabara de abandonar a sala durante a projeção de Numéro Deux. Eu corri atrás dele. Nós nos apresentamos. Ele não tinha gostado do filme de Godard, muito duro, intelectual, autodestrutivo. Eu ria escondido. Acrescentara, ele mesmo, que havia feito um filme desse tipo, antes de Godard, mas as bobinas tinham sido perdidas durante a remontagem. Em 1980, sua viúva, Susan Ray veio a Paris com o filme debaixo dos braços. Ela queria concluir o filme, remontá-lo e adicionar algumas coisas, conforme o desejo de Ray, a quem o filme não satisfazia. Ela tem razão? Não tenho certeza. O que é certo é que nenhuma cinemateca no mundo deveria dormir tranquila com a ideia de não possuir, nos seus bunkers, uma cópia de We Can’t Go Home Again.
[1] NdT: Antiga sala de cinema parisiense.
[2] NdT: O termo nó gordiniano designa, metaforicamente, um problema que não apresenta solução aparente e que só pode ser resolvido de forma radical.
Nick Ray et la maison des imagens foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, nº 310, abril de 1980. Tradução: Evandro Scorsin.