O artifício in natura



Sobre “Montagem proibida” de André Bazin, 1958

Por Jean Narboni 

Reformulação de uma crítica publicada nos Cahiers du Cinéma em julho de 1953 sobre O cavalo branco, filme bem esquecido de Albert Lamorisse, e de um artigo de dezembro de 1957 portando já o título que a publicação de O que é o cinema? em 1958 deveria tornar célebre, “Montagem proibida” é sem dúvida o texto de André Bazin mais frequentemente citado, evocado ou mencionado na história dos textos teóricos sobre o cinema. Brandido mesmo, ou melhor, o seu título, como uma palavra de ordem, um imperativo e um mandamento, as implicações que aí detectamos são frequentemente imbuídas de moral, até mesmo de uma surda religiosidade. Mas fora ele verdadeiramente lido, eu quero dizer, lido por completo e compreendido? Eu descobri esse texto ainda jovem cinéfilo deslumbrado e para ele sempre voltei, surpreso que frequentemente vejam nele um ato de fé na presença sem manipulação das coisas, uma mística do famoso “vestido sem costura da realidade” e, em primeiro lugar, uma queixa contra a onipotência da montagem, criticada pelos seus poderes exorbitantes de imposição de sentido e seu domínio sobre o espectador; queixa de mesma natureza mas mais violenta aqui que aquelas as quais Bazin se dedicou durante toda sua atividade de crítico e teórico. Agarrar-se a essa visão é, contudo, reduzir essas páginas a uma simples fórmula de proibição e desconhecer sua complexidade, as inversões lógicas e uma riqueza em paradoxos ainda mais surpreendentes quando enunciados com calma numa linguagem esplêndida. Eu creio que é possível, pelo contrário, sustentar sem provocação que “Montagem proibida”, longe de ser somente a defesa do respeito ao ser-aí das coisas, elogia os méritos do estratagema e do subterfúgio, para não dizer – o respeito pelo autor nos obriga – da trucagem, das misturas impuras e de um realismo compreendido não mais ontologicamente mas como um pragmatismo. 

As razões que fazem Bazin questionar ao longo dos seus textos os poderes da montagem, e aquelas que o conduzem em “Montagem proibida” a proscrevê-la totalmente em certas circunstâncias diferem sensivelmente. A proibição proclamada da montagem nesse último texto se opõe primeiramente pela sua radicalidade às numerosas páginas nas quais Bazin se limita a questionar sua importância na criação cinematográfica e a marcar sua inclinação estética por outros procedimentos de realização. Nesses, suas reticências sobre a fragmentação de cenas e sua preferência pelos planos longos e a profundidade de campo que respeitam a integridade do espaço respondem a uma exigência quanto à intensidade dramática dos filmes, a pluralidade de signos, a natureza dos encadeamentos entre os fatos representados e a parte de liberdade deixada ao critério do espectador. A ambivalência constitutiva das imagens, a possibilidade de escolha que o espectador dispõe entre os diversos centros de interesse de uma cena ou de um plano, a possibilidade aberta de leituras múltiplas de um acontecimento figurado seriam para Bazin irremediavelmente comprometidas pela autoridade de uma montagem que impõe um sentido em detrimento da riqueza das imagens, uma relação de necessidade no lugar da casualidade e que guia com mão firme um espectador submisso. A ilustração mais célebre desse ponto de vista é sua análise da cena da cozinha em Soberba. É a manutenção por Orson Welles de um único e bem longo plano fixo que, segundo ele, permite obter a maior eficácia dramática. A mudança de tom entre as proposições insignificantes de Fanny sobre a gula do jovem George que está se empanturrando com tortas de creme e suas raras questões inquietas, o contraste entre a agitação gulosa do jovem rapaz e a calma afetada de uma Fanny que esconde mal a sua inveja e sua angústia, são geradores de um “charme pesado” e de uma tensão que a crise de nervos final arremata ao se descarregar. Bazin então, quando ele defende que a realização dessa cena em um único plano lhe dá uma riqueza contrapontista e uma força que sua fragmentação não deixara de alterar, se coloca do ponto de vista do rendimento dramático e da liberdade atribuída à sensibilidade e inteligência do espectador de escolher e de se mover entre os elementos visuais e sonoros da situação representada. 


“Montagem proibida” responde a uma exigência bem diferente: ela não diz respeito a um problema de qualidade do drama, de riqueza dos significados ou de posição do espectador, mas àquele de sua crença e dos meios implementados pelo cineasta para suscitá-la. Bem cedo no texto Bazin adianta uma fórmula distanciada de qualquer fé ingênua no “vestido sem costura” e na verdade imaculada: “O que é preciso, para a plenitude estética do empreendimento, é que nós possamos crer na realidade dos acontecimentos, sabendo que eles são trucados”. Sublinhando os termos “crer” e “sabendo”, ele descreve com muita exatidão o mecanismo da negação (“eu sei bem mas mesmo assim”) como fundamento da crença do espectador de cinema e o maior desafio para o cineasta. Um pouco antes, ele já afirmava a necessidade de uma “margem de trucagem”, de uma “margem de subterfúgio” para pôr em movimento o imaginário do espectador e desencadear essa crença. Sobre qual elemento e em qual momento do filme deve então intervir a famosa proibição radical da montagem proclamada pelo título como garantia da veracidade dos eventos representados? A análise de Bazin é aqui infinitamente sutil e paradoxal, sobretudo nas passagens dedicadas a O cavalo branco. Trata-se de um média-metragem realizado em 1952 por Albert Lamorisse, autor também, entre outros filmes, de O balão vermelho ao qual Hou Hsiao-hsien prestou homenagem em 2007 com seu A Viagem do balão vermelho. Muito apreciado e louvado no seu tempo, muitas vezes premiado, tendo mesmo ganhado um Oscar, esse conto retraça as aventuras em Camarga de um cavalo selvagem e de um garotinho arisco que seus temperamentos e as circunstâncias vão aproximar e atar numa amizade fabulosa. Sem parecer chocado de modo algum, Bazin recorda que a filmagem recorreu a três ou quatro cavalos diferentes (até seis segundo testemunhas da época), que foi preciso puxar as ventas do animal com um fio de nylon para lhe fazer virar a cabeça no tempo desejado, e que na cena perigosa na qual a criança é arrastada pelo cavalo galopando, é Albert Lamorisse em pessoa que substituiu o garoto. Não só ele não se chocou com esses artifícios, mas ele afirma a sua necessidade sem os quais, segundo ele, o filme seria apenas o registro mecânico de uma performance de adestramento sem interesse estético, pois incapaz de jogar com o “eu sei bem mas mesmo assim” da negação que comanda a crença cinematográfica. É somente a propósito de um episódio e de uma imagem ausente que Bazin proclama a sua interdição da montagem: quando o cavalo desacelera e para, Lamorisse teria cometido o erro de não mostrar ao menos uma vez o animal e a criança no mesmo plano. Esse grave erro, continua Bazin, Lamorisse não o tinha cometido um pouco antes no filme no momento da caça ao coelho no qual ele enquadrava simultaneamente o cavalo, a criança e as presas. Surge então sob sua pluma o que ele não hesita em chamar de uma lei estética: “Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem é proibida.” E para apoiar esse princípio, ele convoca dois exemplos esclarecedores de recusa da montagem: o longo plano em História de Louisiana em que o crocodilo apanha uma garça e aquele de O Circo de Chaplin que mostra o herói e o leão encarcerados na mesma jaula e no mesmo quadro. 

Os comentários suscitados por “Montagem proibida” desde sua publicação, a glória duradoura que esse texto conheceu e sua limitação a uma fórmula sacramental de prescrição não ajudaram para que fosse esclarecida a relação, contudo, marcada com insistência por Bazin entre essa imagem de contiguidade espacial necessária à credibilidade de uma situação e o filme no seu conjunto. É aí, contudo, que o paradoxo fundamental do texto beira à provocação, arruinando de antemão qualquer piedade interpretativa. Se a presença simultânea de fatores da ação, indispensável para a crença num certo acontecimento, só valesse como prova em si e isoladamente, ela permaneceria limitada a si mesma e sem incidência sobre o conjunto da narrativa. É exatamente a isso que Bazin não a reduz. Para ele, essa imagem “teria autenticado retrospectivamente todos os planos anteriores”, e teria sido suficiente, para que a narrativa de O cavalo branco reencontre sua realidade, que “somente um de seus planos, convenientemente escolhido, reúna os elementos outrora dispersados pela montagem”. A fórmula da negação que faz crer na verdade de acontecimentos que nós, no entanto, sabemos trucados se encontra invertida pelo movimento do próprio pensamento do seu autor: é porque nós sabemos que é verdadeira a imagem de um acontecimento representado que nós acreditamos em todos os planos trucados dos quais ela é a exceção. A autenticação, a junção pela virtude de um único plano de elementos outrora dispersados pela montagem e logo a legitimação através de uma imagem de todos os subterfúgios precedentes aparentam a operação a uma transmutação mágica do chumbo das trucagens no ouro da verdade, a uma precipitação ou conversão do artificio in natura. Eu só recorro, aliás, a essas comparações de ordem química ou física (incluindo o uso do termo equívoco de conversão) pois o próprio Bazin pede frequentemente emprestado a essas disciplinas (assim como à geologia ou à geografia), a propósito particularmente da noção de impureza cinematográfica que ele atualizou, analisou e promoveu como programa estranho à toda acepção religiosa e mesmo moral. 


“Montagem proibida”, longe de ser um texto à parte na obra de Bazin, limitado ao âmbito de um cinema documentário implicando particularmente situações em que um dos protagonistas está em perigo, constitui um caso particular do seu campo principal de pesquisa, a preocupação constante de O que é o cinema?: a atualização nos filmes – para utilizar seus próprios termos – de uma dialética do abstrato e do concreto, do real e do imaginário, do artificio e da natureza, e a identificação nas suas composições de, ao menos, sempre dois regimes ou registros contrários e em tensão. Em “Montagem proibida”, essa abordagem, longe de sacralizar a presença de um momento único para se ater a ele como um absoluto, insistia na autenticação de todas as trucagens anteriores através dessa imagem, logo, nas suas ligações e sua inseparabilidade. Mais amplamente, não são somente os documentários mas também as maiores ficções que ilustram, em Bazin, a mesma interação transformadora de elementos contraditórios e a estranha química que os faz mudar de natureza. É por isso que esse texto não serve tanto para ser comparado àqueles em que o autor contesta a preeminência da montagem quanto às páginas – aparentemente sem relação com esse procedimento – em que ele descreve essa dialética dos opostos. Daquelas, por exemplo, sobre As damas do Bois de Boulogne: “A realidade da chuva, o ruído de uma cascata, o da terra que se derrama de um vaso quebrado, o trote de um cavalo sobre a calçada não se opõem unicamente às simplificações do cenário, à convenção dos figurinos, e ainda, ao tom literário e anacrônico dos diálogos; a necessidade de sua intrusão não é a da antítese dramática ou do contraste decorativo: eles estão ali pela sua indiferença e sua perfeita situação de ‘estrangeiros’, como o grão de areia na máquina para emperrar o mecanismo. Se o arbitrário de sua escolha se assemelha a uma abstração, é então a do concreto integral: ela arranha a imagem para denunciar sua transparência como uma poeira de diamante. Ela é a impureza em estado puro.” Ou ainda: “Bastou apenas o barulho de um limpador de para-brisa sobre um texto de Diderot para fazer dele um diálogo raciniano.” Ou ainda, dessa vez sobre A paixão de Joana D’Arc de Dreyer: “... nada menos realista do que esse tribunal no cemitério ou aquela ponte levadiça e, no entanto, tudo é iluminado pela luz do sol e o coveiro joga no buraco uma pá de terra de verdade. São esses detalhes ‘secundários’ e aparentemente contrários à estética geral da obra que lhe conferem, no entanto, sua natureza cinematográfica.” (Éric Rohmer, o mais baziniano dos cineastas, se lembrará dessa análise em uma cena de Perceval, o Gaulês) É numa linguagem igualmente bela que a lei dessa alquimia será enfim anunciada por Bazin: “... o isolamento do catalisador estético que bastará para introduzir uma dose infinitesimal na mise en scène, para que ela precipite totalmente in ‘natura’. A floresta de concreto dos Nibelungos por mais que pareça infinita, nós não acreditamos no seu espaço; quando o tremor de um simples galho de uma bétula ao vento, sob o sol, poderia bastar para evocar todas as florestas do mundo.” Cocteau, dialoguista “raciniano” de As damas do Bois de Boulogne e cineasta admirado por Bazin, tornou-se mestre na arte de isolar o infinitesimal catalisador estético, o elemento heterogêneo capaz de emperrar as máquinas mais bem estruturadas. Eu torno a refletir sobre um momento surpreendente de um filme, todavia, não revisto há muito tempo, A Bela e a Fera, no qual em pleno clima fantástico alguns lençóis suspendidos num pátio de fazenda caem na terra. Chega então a Bela que os recolhe e exclama: “Mas esses lençóis vão se sujar!” O efeito de choque e a mudança radical de natureza da cena que provocam esse gesto e essas poucas palavras ilustram uma outra metáfora cara a Bazin, aquela da cristalização, transformação de uma solução sobressaturada sob o efeito de um agente exterior dosado levemente. É por isso que Cocteau podia se autorizar a definir A Bela e a Fera – contra os estetas vaporosos – como um conto, mas um conto de fatos


A redução unidimensional de cada exemplo dado em “Montagem proibida” a um aspecto separado de seu aspecto complementar, sua redução a uma palavra de ordem intimidante, poderia encontrar seu prolongamento engraçado num uso social, hoje, mundialmente crescente: aquele da selfie. O que procuram com efeito seus adeptos, praticando sem o saber um bazinismo insípido como o Burguês fidalgo fazia da prosa, senão um traço de sua proximidade física com uma celebridade esportiva, política ou mediática, Cristiano Ronaldo, Stromae ou Emmanuel Macron? A imagem duramente cobiçada destina-se a provar que o autor esteve ao menos uma vez no mesmo quadro que o seu parceiro de eleição, como Carlitos e o leão na jaula. Mas assim, tão hesitante e limitada a si mesma, sem poder de autenticação retroativo de nada, a imagem permanece um catalisador sem uso e sem solução. Na ausência de um esforço de montagem através do qual os autores de selfies poderiam se tornar verdadeiramente bazinianos. 

L’artifice en nature foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 100 (edição comemorativa intitulada L’écran, l’écrit), no inverno de 2016. Tradução: Leticia Weber Jarek.

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