Um filme como os outros




Sobre O preço da verdade (2019) 

Por Miguel Haoni 

Era uma vez, num mundo não tão distante, uma cidade onde os diretores de cinema eram contratados para fazer filmes. Qualquer tipo de filme. Na Hollywood dita clássica, para cada “autor” que entrava na História da Sétima Arte, uns 20 artesãos anônimos, filmmakers tarefeiros, preparavam o terreno. Cada Nascimento de uma nação, Cidadão Kane ou Um corpo que cai era gerado, não apenas pelo gênio de seus realizadores, mas também por um contexto, um sistema, uma multidão silenciosa de filmes pequenos e médios que alargavam as estradas da criação. Essa era a época do star-system, na qual os atores e atrizes sustentavam a ponte entre as plateias e os filmes. Reis e rainhas no tabuleiro da indústria, eles descobriam diretores, escolhiam as histórias, punham a máquina para funcionar. Era a época também das encomendas, dos produtos que chegavam na mesa dos cineastas praticamente prontos: roteiro, elenco, equipe técnica, trilha sonora, tudo definido. Sobrava então ao metteur en scène, a mise en scène. Dizem que era uma época de ouro, o auge da arte cinematográfica, na qual a criação individual nascia apesar das pressões industriais. Reza a lenda, que nessa época, um diretor chamado Jacques Tourneur fez unicamente filmes de encomenda - à exceção de O testamento de Deus, seu único projeto pessoal –, pôs seu talento técnico a serviço das ordens do estúdio. E nesse gesto, fez também alguns dos filmes mais belos do mundo. 

Olhando em retrospecto, muito depois do fim daquela época, podemos talvez reconhecer que a arte não se fez apesar da indústria, mas graças a ela. E no meio da crise criativa braba que afeta o cinema hollywoodiano nos dias de hoje, procurar uma ou outra resposta no passado talvez ajude. Depois de um ano sem blockbusters, seria justo esperar que Hollywood ressuscitasse os filmes pequenos. No meio de uma paisagem desertada de personagens interessantes, os atores (e principalmente as atrizes) precisaram se desdobrar na dupla função de produtores. Este ano, veteranas (Charlize Theron, Cate Blanchett) e novatas (Elisabeth Moss) tiveram que passar novamente pelas mesas de negociação antes de entrarem nos sets. Podemos esperar que as estrelas tenham mais sorte na sua busca por bons realizadores, artigo, realmente, em falta no mercado. Por fim, esperamos também que mais e melhores encomendas cheguem aos escritórios dos diretores. 

É uma lista de Natal exigente, mas um filme recente conseguiu entregá-la: O preço da verdade. Trata-se de um projeto do ator Mark Ruffalo, que, encantado pela história do advogado Robert Bilott e da sua cruzada contra a megaempresa de produtos químicos DuPont, resolveu levá-la às telas, contratando para isso o cineasta Todd Haynes. Depois de um curto prólogo, em 1975, em que três jovens se divertem tomando banho em águas contaminadas, somos jogados no presente da ação, 23 anos depois, no qual, sem nenhuma preparação, uma reunião de advogados é bruscamente interrompida pela visita não anunciada de um fazendeiro, Wilbur Tennant (Bill Camp). Sem ser convidada e sem pedir licença, é a própria história do filme que invade a primeira cena. A partir daqui, ela será a protagonista. 

O que o Sr. Tennant coloca nas mãos de Bilott é uma coleção de filmes antigos, fitas VHS com registros dos pesadelos vividos na sua fazenda nos últimos anos, graças ao despejo irregular dos dejetos químicos da grande fábrica vizinha à sua propriedade. Tudo o que o fazendeiro mostra para o advogado faz retornar ao primeiro plano um horror reprimido sob a placidez da paisagem americana, que macula, de forma incontornável, a superfície excessivamente limpa do filme. A partir daqui O preço da verdade acompanha as aventuras do advogado e mais uma vez, Hollywood nos conta a história de um homem forte, a lutar sozinho contra tudo e contra todos, enfrentando ventos e marés, disposto a qualquer sacrifício pela vitória dos bons princípios. Ao lado, uma esposa, ambiciosa mas resignada, que começa resistindo mas depois aceita o seu papel no legítimo jogo, de amá-lo e repeitá-lo, na saúde e na doença. Em algum momento, evidentemente, ela saberá se impor e reclamar seus direitos. Já vimos essa história mil vezes. Então como é que um filme fundamentado em clichês tão constrangedoramente paquidérmicos pode ser bom? Uma voz do passado poderia responder: o filme não é bom apesar dos clichês. Ele é bom graças a eles. 

Country roads, take me home 

O preço da verdade é um filme completamente convencional. E é preciso entender que o conjunto de convenções, normas e regras que cercam um período artístico, uma escola ou uma produção nacional não são, a priori, inimigos da criação. No caso hollywoodiano, as sempre mutantes regras do jogo ofereceram uma larga margem de manobra para o nascimento de diversas estéticas, mais ou menos livres. Além disso, um clichê não vira clichê à toa. Os motivos recorrentes, sedimentados na memória coletiva, servem como atalhos emocionais, linhas retas de comunicação entre as origens e os destinos criativos. Caminhos mais curtos, mas não menos belos. Tomemos por exemplo, o percurso de Robert Bilott (Mark Ruffalo), o herói da história. Ele começa o filme resistindo em tomar parte na luta da comunidade, numa cidade controlada pelos donos do dinheiro, cujo vilão oferece a ele um lugar seguro ao seu lado, mas abaixo. Para demovê-lo é preciso apelar para a memória afetiva, falar da avó, da terra-natal, das lembranças da infância. Só assim ele pode acessar dentro de si o fio de humanidade que lhe dará a força necessária para enfrentar os inimigos. Essa é a descrição sumária dos faroestes que Anthony Mann realizou com James Stewart no anos 50. Billot trabalha num escritório rico, mas veio da pobreza. Quando, ainda na primeira parte do filme, Phil Donnelly (Victor Garber) lhe chama de caipira no meio de um jantar elegante, Billot recebe o último impulso que precisava para a reconciliação consigo mesmo, através do encontro com suas raízes. A partir dali, o caipira declara a sua guerra. 

No cinema clássico, James Stewart encarnava o americano por excelência. Seus personagens eram sempre muito carismáticos, mas com uma dose suficiente de neutralidade para que os espectadores pudessem se projetar neles. Mark Ruffalo passa, com o corpo pesado e o ar cansado, obsessivo mas ligeiramente ausente, pelos melhores momentos de Stewart: além de Anthony Mann, lembramos de Frank Capra (o defensor da virtude que luta, sozinho e exausto, contra o sistema), Alfred Hitchcock (a testemunha ávida de ficção, o investigador fóbico, enlouquecido pelo seu caso) e John Ford (o homem civilizado que precisa revisitar as regras do oeste selvagem para se reconciliar com a História). As flores mortas cultivadas por Sarah Bilott (Anne Hathaway) tem alguma coisa de crepuscular, lembram o cactus rosebud no túmulo do homem que matou o facínora. No meio do longo esclarecimento que o advogado apresenta para a sua esposa (e através dela para o espectador), uma complexa montagem paralela mostra, entre outros, o episódio do nascimento de um dos filhos. Num plano curto, uma porta se fecha para Bilott, separando-o de sua família. Ninguém dirá “Let’s go home” para este cowboy solitário. E não é à toa que os créditos subirão sob o canto melancólico de Johnny Cash. 




Mas apesar do respeito às convenções históricas, e mesmo carregado de nostalgia, é no tratamento dos clichês contemporâneos que o filme mostra a sua melhor face. Se O preço da verdade é, por todas as razões dramáticas mencionadas, um arquetípico “filme de Oscar” ele é ainda mais convencional do ponto de vista formal. A fotografia dominada pelos filtros azuis e amarelos, no contraste entre interior e exterior, espaços quentes e frios são as novas regras de um certo anonimato estilístico. Lá onde James Gray, por exemplo, imprimia seus dramas, aqui essas luzes aparecem como uma forma acadêmica, mas não menos sedutora. As soluções dramáticas de decupagem são também arquibatidas. O filme é estruturado em três atos principais: no primeiro o personagem é engajado na história, no segundo ele encampa a investigação e no terceiro o filme vira para os tribunais, com as ascensões e quedas do herói. Nos três um motivo cênico se repete: a inversão entre as consequências e as causas da ação dramática. É o que garante o suspense na cena do ataque da vaca louca, ou a surpresa na cena em que o advogado local protocola o processo contra a DuPont. É também o que imprime o sentimento de medo na cena em que o personagem hesita em dar a ignição no carro. 

Uma passagem, porém, retém um pouco mais a atenção. No meio do filme, exausto e desesperançado, Bilott observa os seus filhos brincando, fora de foco e de campo. Um golpe do acaso revela a capa de um livro infantil no qual se lê a palavra “Teeth”. Corta para o flashback de uma cena vista no início do filme, as meninas andando de bicicleta, e um detalhe é revelado em câmera lenta: um sorriso com os dentes pretos. A cena volta para o presente. Campo-contracampo: lento zoom na capa do livro, lento zoom no rosto do ator que vai se iluminando gradualmente enquanto uma ideia nasce (ao mesmo tempo em que a música vai crescendo). Corte brusco, explosão musical: Bilott corre pro telefone, liga para o técnico e descobre que um dos efeitos do consumo excessivo do flúor é o escurecimento dos dentes. Voilà: a DuPont contamina a cidade através da água. E de novo: já vimos essa cena mil vezes. É quase um passo a passo no protocolo do cinema comercial contemporâneo das cenas de “descoberta por acaso” ou de “nascimento da ideia”. Mas quando esta cena entra neste momento do filme, nada disso importa. É um pouco o que acontece nas passagens aludidas no parágrafo anterior: uma arte do tempo, quase culinária, de inserir os ingredientes certos na hora certa. Como disse um velho amigo a muito tempo atrás, “não se trata aqui de cinema novo, mas de cinema de novo”. E ainda bem. 

Ainda estou aqui 

Podemos atribuir a força de O preço da verdade ao “gênio do sistema”, a este encontro entre alguns talentos com as condições ideais para o seu desenvolvimento . Mas também não podemos ignorar que o filme tem um diretor e esse diretor se chama Todd Haynes. Como obriga a Política dos Autores. Confesso, porém, que o esforço de enquadrar o filme no percurso estilístico de Poison, Velvet Goldmine e I’m not there me interessa muito menos do que ver esse filme por suas virtudes próprias, produto de uma encomenda, impessoal, no qual o diretor me parece ter humildemente posto a sua expertise técnica a serviço da história. E onde as partes mais interessantes não são necessariamente as mais originais. Pensando em Malmkrog, o filme mais original que eu vi neste duro ano de 2020 (apesar de ter lido aqui e ali sobre uma suposta filiação à Manoel de Oliveira ou aos filmes mais hostis de Rohmer, A inglesa e o duque e Agente triplo, proposição que não me convence absolutamente), com o seu dédalo discursivo, sua estrutura ambiciosa, seu rigor no agenciamento espaço-temporal, seu trabalho árduo com as durações que me deixaram absolutamente indiferente, talvez a aparente falta de originalidade de O preço da verdade, seja na verdade menos vício do que virtude. Uma arte escondida, ancestral e ainda hoje ignorada. 




Durante a já mencionada explicação que o advogado deu à sua esposa, Bilott descreve o momento em que descobriu, durante a exaustiva análise dos documentos, a história de Bucky Bailey, a criança deformada cuja mãe trabalhava na linha de produção da fábrica durante a gravidez. Este personagem nasce em O preço da verdade como uma ideia comunicada. Numa cena chave, na parte final do filme, Bilott submete o então atual presidente da DuPont à apresentação exaustiva dos relatórios da própria empresa sobre os riscos da sua produção. Em determinado momento, a montagem aproxima três ocorrências de uma das figuras retóricas centrais do advogado: “You see that? You see that? You see that?”. Evidentemente, ele não viu nada. Quando a sessão é encerrada, Bilott saca a sua última carta, a foto de Bucky bebê. Saímos do texto para a imagem e o efeito é muito mais forte. Algumas cenas à frente, num posto de gasolina, um homem pergunta o placar do jogo. É o Bucky Bailey em pessoa! O verdadeiro, agora adulto, com a força da sua presença, seu olho deformado e seu bom-humor desarmante. E o verbo se fez carne, saímos enfim da fotografia e entramos no cinema. Quando, no último plano do filme, Mark Ruffalo responde à provocação do juiz: “I’m still here”, podemos ouvir nessa réplica um pouco da voz desse cinema. Um cinema antigo, invisível, que às vezes parece morto. Só às vezes.

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