A hora vazia


Uma investigação sobre os filmes existenciais franceses

Por Axelle Ropert

Um encontro

Há os espectadores que vão ao cinema no fim da tarde. Há aqueles, mais numerosos, que vão apenas à noite. Além disso, há esta coorte de estudantes, de desocupados, de idosos e crianças, em suma, de privilegiados, que frequentam apenas a sessão das 14h, enquanto todos os outros trabalham ou fazem a sesta. Se ir ao cinema no início da tarde preenche as horas vazias, estas, em contrapartida, por vezes se inscrevem na tela em um perturbador efeito de espelho. Veludo vermelho, cercaduras douradas, tela em miniatura. Nessa sala do Quartier Latin, com aromas de alcova libertina, vejo no início da tarde um filme negligenciado até então, apesar de anos de frequentação rohmeriana. Em Amor à Tarde (1972), reencontro, é claro, a grade moral dos filmes de Rohmer, mas um sentimento inédito nele perturba sua clareza. O afeto errante de um personagem, alguns abraços furtivos, a angústia difusa dos começos de tarde, uma incerteza das esperas parecem designar essa perturbação como um sentimento existencial. Não é um deslumbramento, mas, antes, um sentimento persistente que me leva a empreender esta investigação: o que é um filme existencial?

Primeira pista: o beijo de Heloísa

Há dois séculos, um primeiro beijo trocado na obscuridade de um bosque perturbara toda a Europa leitora de A nova Heloísa. “Não, guarde teus beijos, eu não poderia suportá-los. Eles são demasiado acres”, murmurava um homem muito jovem a uma menina muito jovem. O que enfureceu Voltaire e continua a perturbar dois séculos mais tarde é a escolha quase indecente desse adjetivo, “acre”, para qualificar as inquietações de dois jovens que não conhecem nada do amor. Reencontro essa acridez escandalosa, esse sentido do abraço clandestino e do prazer doloroso, em Amor à Tarde. Bernard Verley foge de Zouzou. “Não, guarde teus beijos, eu não poderia suportá-los”, já confessa Saint-Preux. “Eu te amo porque me impressionas... e me impressionas porque te amo”, sussurra, duzentos anos mais tarde, Bernard Verley a sua mulher. Podia-se imaginar Éric Rohmer capaz de tal indecência?

Primeiro enigma: a ausência de Rohmer

Pensando em A Mãe e a Puta (1973) e em O Homem que Amava as Mulheres (1977), tenho a convicção de que Amor à Tarde deslumbrou secretamente seus contemporâneos, Jean Eustache e François Truffaut, cujos filmes talvez não tivessem tido, sem ele, essa febrilidade que ilumina, inquieta toda uma porção do cinema francês dos anos setenta. Se um filme existencial sempre põe em jogo uma “verdade íntima”, essa, amarrada com três nós, de um cineasta, de uma época e de uma geração, como pôde Éric Rohmer, o mais secreto dos cineastas da Nouvelle Vague, cometer Amor à Tarde como se comete um erro, uma indiscrição ou um pecado? Ao contrário de A Mãe e a Puta, O Homem que Amava as Mulheres ou Um Só Pecado (1964), nem experiência privada nem urgência particular parecem alimentar esse filme sustentado por certo “anonimato existencial” do autor. É um enigma: o filme mais íntimo de Rohmer se fez em sua ausência? E esse enigma é acompanhado pela escolha curiosa de se representar através de duplos masculinos um pouco apagados (Bernard Verley para Rohmer, Jean Desailly para Truffaut), escolha que François Truffaut comentava explicando que “essa reserva se aplica às vezes aos meus filmes (Um Só Pecado), ou aos de Rohmer (Amor à Tarde), ela vem de certa modéstia (sim!) dos cineastas autobiográficos, inconscientes do que neles encanta e retém os outros[1]. E se não se pudesse sonhar com um duplo melhor que seu fantasma?

Uma segunda pista: o fantasma de Proust (e uma falsa pista: Akerman contra Oliveira)

Essa presença fantasmática que não se compromete e prefere esperar sua hora é também a de Marcel Proust, cuja obra impõe uma mesma convocação das mulheres amadas, uma mesma vertigem diante das possíveis aventuras femininas encarnadas pelas passantes parisienses dissimulando uma mulher única e sempre outra, um mesmo surgimento de um pequeno mundo de desejos unicamente a partir da angústia de uma hora do dia, uma mesma Paris desértica reduzida a seus lugares intimamente estratégicos...[2] Se, “para liberar essa tristeza, esse sentimento do irreparável, essas angústias que preparam o amor, é preciso o risco de um fracasso”, a sedosa teia proustiana nem sempre basta para fazer surgir a aranha existencial, e A Prisioneira (2000), de Chantal Akerman é o exemplo mais recente disso. Se o luxo dos meios empregados já o afasta da pobreza desse cinema, A Prisioneira me parece ser sobretudo uma versão cultural de A Carta (1999), de Oliveira, de que o filme toma de empréstimo muitos partis pris (atores jovens demais para seus papéis, languidez das cenas, cores, Paris fantasmática...). Por que o que espanta em Oliveira, como a repetição de certas cenas em Francisca (1981), irrita em Akerman, como a repetição de certos diálogos em A Prisioneira? Talvez seja esse humor oliveiriano, tão difícil de definir, o que separa A Carta de A Prisioneira, esse humor que dá a última palavra da história e que não se pode reduzir, como em O Convento, a uma ironia barroquizante colocando lado a lado atores, réplicas e cenários, tão jesuíta que se torna às vezes asfixiante. O humor de Oliveira é sua ingenuidade, maneira de dar a suas invenções um perfume de descoberta, como se, aventureiro encalhado em uma ilha do tesouro, não deixasse de descobrir os loucos achados que, no entanto, ele mesmo inventou: poses dos atores, dicções, quadros. Onde Oliveira torna ingênuos seus partis pris radicais, Akerman os culturaliza dando-lhes uma patente de nobreza, isto é, signos identificáveis da presença da “Grande Arte”. Mas a investigação se extravia um pouco.

Segundo enigma: filmes de exceção, filmes de narradores




Seja Quatro Noites de Um Sonhador (1972) e suas cenas, na beira do Sena, de farniente musical de que não se imaginava que Bresson fosse capaz, seja O Segredo Íntimo de Lola (1968) e seu sentido da errância hippie de que não se pensava que Demy fosse entusiasta. Assim como Amor à Tarde, esses dois filmes, ignorados e únicos na filmografia de seus autores, verificam um mesmo segredo de fabricação: são os amantes de ficção — Rohmer, Bresson, Demy, Eustache — que fazem os mais belos filmes existenciais, ao passo que esses últimos poderiam prescindir do sentido estratégico da economia narrativa. O que o domínio ficcional dos narradores pode trazer ao filme existencial? 

Existe o exemplo, estritamente inverso, de um cineasta autor de um filme magnificamente ficcional no seio de uma obra que não é nem um pouco ficcional. Em La Maison des Bois, de Maurice Pialat (1971), é a obrigação de ceder à narrativa, senão à telenovela (trata-se de uma encomenda da televisão), que libera um sentimento insuspeitado no resto da obra de Pialat, a reconciliação (entre si e si, entre si e os outros), para além de todos os dramas, que confere à narrativa uma serenidade de longo prazo que o Charles Dickens de Grandes Esperanças não teria renegado. Aqui, a ficção apazigua e o sentimento existencial exaspera, a primeira amplifica o que o segundo rasura amargamente, em suma, o contrário de nossos contistas minimalistas.

Segunda pista falsa: o falso pudor

Um sentimento existencial pode ser acadêmico? Um personagem se recolhe de costas ou de meio-perfil diante de uma janela banhada por uma luz azulada e uma pequena música grave no piano desfia suas notas e toma conta... Ou então, no seio de uma conversa íntima, as frases se suspendem, os rostos de fecham e a montagem muito cut (“cut-cut-cut”, arrulham as espectadoras-galinhas) sobressignifica esse corte mútico do luto que entusiasmava o Claude Sautet tardio (Minha Secretária, 1995). Quantas vezes vimos isso recentemente, principalmente nesses filmes consagrados ao grande tema, cheio de contrição, do “Luto”? Se um sentimento se torna acadêmico quando é reduzido a ser apenas o signo de sua presença, ou melhor, a demonstração das precauções de uso com as quais rodeia-se sua manifestação, então essa maneira de fazer ostensivamente prova de pudor, de magnificar a elipse “arte e ensaio” contra os grandes quinquilharias psicológico-explicativas dos filmes comerciais, tornou-se o sinal agregador de todos esses filmes especializados nos não-ditos retumbantes que supostamente abririam o abismo de uma rachadura, essa rachadura que perdeu muito de sua elegância fitzgeraldiana.

Terceira pista: o verdadeiro pudor

Há, creio, uma outra forma de pudor nos filmes existenciais, uma forma inexpugnável, afirmativa, que, vencida, prefere ainda dar-se a máscara desse mortuário muito francês que encontramos no subtítulo crístico escolhido por Jacques Rivette para Out 1: “Noli me tangere”. Dois escritores talvez tenham inspirado essa forma de mortuário, Charles Péguy e Jean Paulhan, cuja associação antinatural condensa essa mistura de ardor e paragem, de retidão moral e de provocação, de palavras de ordem e de regras paradoxais. Penso, evidentemente, na juventude refratária dos filmes de Bresson, nesse gosto pelo feitiço frio (a cena do ônibus em O Diabo, Provavelmente, 1977), juventude que reencontramos no herói taciturno de O Segredo Íntimo de Lola ou no orgulho comatoso dos Cinéphiles de Skorecki (1988), na febre do Jean-Pierre Léaud de Out 1 (1970), nos enfants terribles da muito jovem Ferreira-Barbosa (Paris ficelle, 1982), na exaltação do herói de Patricia Mazuy (Travolta e eu, 1993), na obstinação do adolescente de Pierre Léon (L’Adolescent, 2001).

Terceira pista falsa: arre, afetos

De quais sentimentos tratam os filmes existenciais? Existe uma palavra que evoca uma maneira muito contemporânea de experimentar um sentimento, o “afeto”. Ter “afetos” é uma maneira de sofrer decantada pelo gosto da análise. É também fazer prova de uma autoironia, de uma forma de relativismo elegante de que são testemunhas as inquietações barthesianas dos Fragmentos de um discurso amoroso e cujo equivalente cinematográfico seria talvez o fading dos filmes dos anos sessenta de Antonioni. É muito chique, é uma coleção de sentimentos carregados de modo negligente, de que por vezes desvelamos, sem sermos otários da moda, o forro costurado com fios brancos, para logo voltar a se aprumar, não insatisfeito com os acabamentos: os fios brancos são de seda. Essa pose que encontrarmos em todos esses diários íntimos contemporâneos, geralmente masculinos, com frases elípticas e vagamente desgostosas, evoca-me o cacoete apontado por Marivaux para criticar os moralistas de seu tempo, o de um pessimismo de bom gosto que bajula, antes de tudo, o exercício saciado de sua lucidez. Rohmer já não declarava: “Sou extremamente sensível a esse charme existencial do cinema, por exemplo, tal como se manifesta hoje em Antonioni ou em Wim Wenders (...), o que não impede que eu continue sendo a favor de um cinema ‘otimista’”?[3] Nossos filmes existenciais recusam-se a submeter-se à clarividência desabusada do diagnóstico, e se falo de diagnóstico é porque esses filmes põem de fato a questão da doença, mas de um modo romano, até mesmo ciceroniano: “Seremos curados se quisermos”. A cura é mais misteriosa que a doença.

Quarta pista: a cor de um sentimento




Não sei se há um sentimento comum a todos esses filmes, mas uma cor, certamente. Verde-anis das paredes, malva de uma saia, ocre de uma gravata, amarelo escuro de uma camisa, bordô rosado de um lenço, verde-petróleo de uma gabardina, marrom alaranjado de um canapé, rosa velho de uma sombra... que tonalidade declina esse camaïeu*? É uma cor intermediária, não franca, como que tornada lânguida pela incerteza, que hesita entre o desejo e sua realização, a cor da espera consentida, da disponibilidade tardia, da hora vazia. É também uma cor envelhecida, desbotada pela angústia dessa espera, recoberta por um verniz, ou melhor, por um véu, como uma fina poeira depositada ao longo das horas, como um veludo puído. É a cor de uma época, a de um decênio prodigioso para o cinema existencial francês, que se abre em 1972 com Amor à Tarde e se fecha, em 1980, com Simone Barbès ou a Virtude (Marie-Claude Treilhou).

Quarta pista falsa: Philippe Garrel ou a fotogenia existencial

Sentido da pose lânguida, mutismo das conversas, desleixo elegante, sim, foi de fato Philippe Garrel quem, por sua constância, impôs o filme existencial como gênero cinematográfico. E, no entanto, de onde vem esse sentimento de que há planos que posso amar nele, muitas vezes de uma delicadeza espantosa, mas raramente um filme inteiro? Vangloriado por ter recuperado a dita “magia” do cinema mudo, o plano garreliano me parece muitas vezes guiado por um sentido consciente demais dessa graça epifânica de um suposto cinema das origens — e eu trocaria de bom grado Os Jovens Desajustados (1964) por La Imitación del Ángel (Adolfo Arrieta). Digamos que muitas vezes tenho a impressão de que é a fotogenia imediata de tal ou tal quadro, tal ou tal postura dos atores, que guia as escolhas de uma mise en scène que obedece de antemão a um princípio de “(n)iconização” da dor — enquanto os filmes existenciais de Rohmer, Truffaut e outros raramente são acompanhados por belezas plásticas imediatas. Encontraremos, é claro, em outro foto-cineasta amante do êxtase imediato, Sternberg, essa veneração pelas vidas das mulheres à altura de sua aura trágica, mas inseparável, neste último, de uma crueldade que falta em Garrel. Esse sentido exacerbado da fotogenia condena seu cinema a uma “fixação” sobre os anos sessenta e setenta, de que é testemunha essa escolha do branco e preto, em Inocência Selvagem (2001) por exemplo, esperando reencontrar o branco granuloso e o preto esfumaçado desses anos que conferiam, então, uma força de irradiação aos sentimentos. E essa fixação o conduz, em seus últimos filmes, a um dolorismo simplificador encarnado, em O Nascimento do Amor (1993), por essa sequência em que um dos personagens, mostrando uma janela, diz: “Foi aqui que Jean se defenestrou”, ou então pelo suicídio de Daniel Duval em O Vento da Noite (1999)... A “tenuidade” milagrosa da mise en scène garreliana, especialista em confeccionar uma renda existencial em que a delicadeza do ponto se acomoda à leveza do toque, revela-se rapidamente ultrapassada pelas cenas “pesadas”, em todo caso impotente a resistir diante de sua violência. Para dizer as coisas de modo trivial, Garrel é forte quando filma cenas fracas (dramaticamente) e fraco quando filme cenas fortes (dramaticamente). Talvez falte-lhe essa distância entre si (a experiência) e si (a filmagem), esse “repouso de intervalo” caro a Proust.

Quinta pista: o sentimento existencial francês é exportável?

Os jovens taciturnos de Corrida Sem Fim (Hellman, 1971) não se parecem com os heróis de O Segredo Íntimo de Lola (Demy) que evocam os de Quatro Noites de um Sonhador (Bresson) com os quais se aparentam os personagens dos Cinéphiles (Skorecki, 1988) que reencontram as poses de Férias Permanentes (Jarmusch, 1982) para melhor fundir-se nos abraços de Echoes of Silence (Peter Emmanuel Goldmann, 1966) que não teriam sido recusados pelo aprendiz de vampiro de Martin (George Romero, 1977)...? Sem dúvida, mas a aliança mais impressionante me parecer ter acontecido em outro lugar, em 1979, em O Fator Humano, o último filme de Preminger. Diante dessa miniaturização aterrorizante do mundo deixando desdobrar-se uma brincadeira de crianças em grande escala, que o Rivette de Out 1 não teria renegado, eu reencontro, muito longe da sofisticação corrediça dos célebres movimentos de câmera premingerianos (substituídos aqui por zooms), uma forma de desenvoltura inquieta própria a todos os filmes de Zucca e a certos Chabrol (cf. o epílogo de Negócios à Parte), um mesmo sentido da demência teórica vinda diretamente de Klossowski. Assim, as cenas de esconde-esconde silvestre entre espiões poderiam abrigar as palhaçadas de um Michel Bouquet disfarçado de asno em Vincent mît l’âne dans um pré (Pierre Zucca, 1975): nesses “bosques onde se apinha uma infância bufã” (Rimbaud), a angústia estrangula o riso. Quanto ao gesto que fecha o filme, quando o herói pega o telefone, escuta, desmorona e chora, como não pensar na última cena, estritamente idêntica, de O Segredo Íntimo de Lola? Nesse instante, quando Preminger retoma pela segunda vez, por meio de um suntuoso movimento de reenquadramento lateral, sua aposta de cineasta, fazendo troça in fine da pobreza plástica que doravante lhe sobreveio, impõe-se, à mostra, um encontro fulminante entre a morte de Hollywood e o sentido muito francês da existência perseguido nestas páginas.

Quinta pista falsa: contra o close

De agora em diante, quando um filme começa com um close, eu suspiro pesadamente. Essa irritação reenvia a uma questão: de onde vem a intimidade tão discreta quanto imperativa que nossos filmes existenciais instalam entre o autor, seus personagens e o espectador? Na maior parte dos filmes atuais, quando um cineasta quer instalar tal intimidade, ele utiliza de partida o primeiro plano, frequentemente com a câmera na mão, como se a proximidade do rosto e o espasmo do quadro reproduzissem à discrição esse precioso tremor existencial. Os filmes de Rohmer, Eustache, Demy ou Bresson se utilizam pouco do close e quase nunca da câmera na mão, preferindo o plano médio e fixo que alguns julgarão maçante. Essa distância intermediária permite, contudo, intercedendo entre o falso anonimato do plano distanciado e a implicação do plano aproximado, organizar uma delonga das efusões. Mas o que se espera exatamente?

Uma primeira chave: o lapso existencial




O resvalo entre a tensão interna da narrativa e o peso externo de uma época se condensa na invenção de um gesto, recorrente nos filmes aqui em jogo, que chamarei pomposamente de “lapso existencial”. É, por exemplo, no fim de Simone Barbès ou a Virtude, esse instante em que Michel Delahaye, nosso Burgess Meredith (o homem desfalecente do cinema de Preminger), assume os hábitos do crupiê para seduzir sua motorista, joga o jogo do encontro e então, de repente, descola seu bigode postiço e o coloca novamente como se não tivesse acontecido nada. Penso também nesta cena, em Les Cinéphiles, em que um menino faz três vezes a mímica de uma carícia (no peito de um outro) que jamais acontecerá. Penso na gag da coruja de faiança em O Fator Humano. Ou ainda em Philippe Léotard, em Rouge-gorge (Pierre Zucca), desatando seu lenço e revelando um pescoço ileso, sem a mítica cicatriz que lhe dava uma aura de aventureiro. Além disso, certamente, em Michel Piccoli prostrando-se sob o golpe de um “vou para casa[4] fechando o filme de Oliveira.

A cada vez, no desvelamento de uma impostura de pobreza digna dos truques de prestidigitação do Magic Show de Orson Welles, a ficção declara sua renúncia e deixa aparecer, assim, uma realidade patética e suntuosa, a da solidão dos personagens. “Pois em uma breve iluminação ele entrevira um lampejo de luta e de valentia humanas” (Carson McCullers). Mas o controle desse peso documentário é imediatamente recuperado por uma ficção sempre valente que terá deixado inscrever-se furtivamente uma cicatriz testemunhando, diante de nossos olhos incrédulos, essa ferida.

Uma segunda chave: o risco da ingratidão

Eu falava da escolha do “plano médio” nos filmes existenciais e da suspensão do instante das efusões. Poderia também falar da impressão de “feiura plástica” que Amor à Tarde ou O Fator Humano deixaram em diversos espectadores de primeira hora, dessa morosidade dos cenários, personagens e atmosferas, que torna pesado os primeiros minutos dos filmes existenciais, dessa imersão nas águas assoreadas e dormentes da ficção, hall de um cinema pornô (Simone Barbès), escritório de tonalidade azinhavre pompidoliana (Amor à Tarde), despensa em que vegetam espiões meio senis (O Fator Humano). Esse sentimento de uma disponibilidade da narrativa é, portanto, inseparável da recusa de uma sedução imediata. Como a trivialidade pode servir assim ao despojamento progressivo do filme? Isso vai ao encontro, creio, de uma outra questão já posta: por que os grandes narradores minimalistas fizeram os mais belos filmes existenciais? A resposta é a mesma nos dois casos. Ter o sentido da narrativa, isto é, da economia da narrativa, permite que não se ceda às sereias impacientes do fervor imediato às quais até mesmo Godard, desde Atenção à Direita, não sabe mais resistir. “É isso que é formidável em Stromboli, isso foi meu caminho de Damasco: no meio do filme, fui convertido e mudei de óptica”, confessa Éric Rohmer[5]. No fundo, todos os filmes existenciais franceses têm algo do ascetismo de uma Via-Sacra rosselliniana: perseverança, espera, erupção. O milagre é simplesmente substituído pelo desmoronamento. Uma das qualidades dos contadores de histórias, a paciência, essa arte não de esperar, mas de deixar para mais tarde, permite empurrar o prazo de vencimento para melhor preencher, em uma cena final, todas as esperas — o esplendor terá a última palavra (e unicamente a última)[6]. Um cineasta deve saber esperar sua hora (vazia).

Uma terceira e última chave: a cena final

Mas de que desenlace se fala? Todos esses filmes são secretamente orientados a um mesmo tipo de cena final, a saber, um desmoronamento frontal do herói (Amor à Tarde, A Mãe e a Puta, O Segredo Íntimo de Lola, Simone Barbès, O Fator Humano...). Perguntava-me se um sentimento podia ter uma cor. Essa persistência na memória das cores dos filmes existenciais vem do fato de que os sentimentos aparecem neles pouco a pouco em sua materialidade escamada. Isso poderia ser uma definição do filme existencial francês: um filme sobre um personagem torna-se um documentário sobre seus sentimentos, em que a verdade de um sentimento não é outra que seu desamparo final.

Para terminar

Eu falava de certo anonimato existencial, desse deslumbramento fosco em que se escondem Rohmer, Bresson, Demy, Treilhou e os outros. É uma forma de reserva, voluntária pela recusa da narrativa diretamente autobiográfica, involuntária pois proveniente de uma verdadeira reticência em se expor, e tática, uma vez que só o desvio — por um personagem, um trajeto, uma ficção — permite o surgimento de uma verdade fulgurante, pois convertida, deslumbrando o espectador que, graças a essa cintilação, percebe o rosto do autor pego no flagra. Sim, creio que, no fim de Amor à Tarde, nas lágrimas inexauríveis de Bernard Verley, reflete-se o rosto surpreso de Éric Rohmer.

[1] Correspondance, carta a Paula Delsol, 12 de abril de 1977.
[2] cf. “La Passerelle”, La lettre du cinéma nº 6.
[3] “Le temps de la critique”, in Le Goût de la Beauté.
* [NdT]: termo sem correspondente em português, trata-se de uma técnica que trabalha com diferentes tonalidades ou matizes de uma mesma cor.
[4] Como não pensar em Um Rei em Nova York, no amargor político avassalador da última cena, quando o herói (interpretado por Charles Chaplin) compreende que o menino traiu seus pais? Nos dois filmes, o burlesco minimalista, que, muito rápido, tomou conta descaradamente do drama, interrompe-se in fine quando dois idosos ultrajantemente maquiados, herói joyceano ou rei desvanecido, se reencontram subitamente sozinhos diante de um neto órfão ou de uma criança traidora impossível. São duas maneiras de confessar-se vencido, duas formas de rendição, uma privada e outra política, ambas loucamente abstratas.
[5] “Le temps de la critique”, in Le Goût de la Beauté.
[6] Como sempre, há uma exceção a essa regra: em O Inocente, de Visconti, é justamente a opulência do aparato que, pacientemente saqueada por zooms intempestivos e pelo exagero dos sentimentos, serve à desolação final.

L'heure creuse foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°20, outubro/novembro/dezembro de 2002. Tradução: Rafael Zambonelli.

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