Por Waleska Antunes
Em 1981, Anne Charlotte Robertson decide filmar a sua própria vida. A câmera se volta a ela e é possível ver uma miríade de eventos diversos do cotidiano: uma visita a um familiar, um gato, um dia de inverno, o que há na geladeira. Apesar de costumeiro e bastante simplório, os vídeos são entrecortados com o voice-over de Robertson: os comentários vão desde piadas inofensivas até relatos de sua incessante luta contra a depressão, os problemas de auto-imagem, os internamentos no hospital psiquiátrico, o isolamento auto imposto, os surtos psicóticos, os remédios e a dor das diversas perdas. A esse esforço, foi chamado de Five-Year Diary, um filme de 36 horas que levou 16 anos para ser feito.
A história das artes, assim como a história do mundo, é sincrônica: Ao
mesmo tempo, quase geograficamente no mesmo lugar, Nan Goldin se tornava
uma das principais artistas do underground americano com o mesmo impulso:
documentar a si mesma para entender os seus arredores. Nan trabalha em um
outro meio, a fotografia, porém as questões, quando não as mesmas, eram
semelhantes às de Robertson: como tentar entender o mundo sob a ótica
do efêmero e do brutal?
Usando isso como ponto de partida, é possível dizer que o impulso documental
de Nan Goldin (e, consequentemente, de Robertson) em se botar à frente como
forma de questionamento do mundo era produto do seu tempo nos
anos 70 e 80; Artistas como Yvonne Rainer, Chantal Akerman, Carolee
Schneemann e Sophie Calle o fizeram, de maneiras diferentes e em diferentes
expressões artísticas – o que é esperado. O pós-guerra, a desilusão e o impulso
da segunda onda feminista dão a essas obras uma espécie de reverberação e
uma constante busca de um individualismo perdido ou que foi continuamente
massificado nos anos 50 e 60.
O que não é esperado é que, dentro dessa polifonia de expressões, todas
foram reunidas em um grande grupo: a performance. O performático, por si só,
não é demérito algum; no entanto, como é possível considerar performático o
que é visceral – e logo, único? Como acreditar que, ao documentar a própria
vida, não há tanta verdade quanto na ficção?
Essa é uma maneira inicial para pensar All The Beauty and the Bloodshed,
de Laura Poitras. A vida de Nan Goldin é um prisma de muitas faces e no meio
delas, o ativismo e a vida se interligam. Como ela diz no início, uma história pode
ser contada de diversas formas, mas a memória real é algo que,
irremediavelmente, é da ordem do vivido.
Um dos grandes impulsos, tanto de Laura Poitras quanto de Nan Goldin, é o
esforço documental; seja vindo de Poitras, que constrói uma mise-en-scène de
maneira mais analítica e pautada numa espécie de retomada de um cinema
vérité como cerne do seu fazer (principalmente, no que tange às jornadas
políticas de suas matérias filmadas como Edward Snowden em Citizenfour,
sendo o whistleblower americano em fuga, quanto Julian Assange em Risk,
expatriado em uma embaixada), quanto vindo de Nan Goldin, utilizando da
própria vida como matéria primordial de sua obra, ambas as intenções podem
parecer díspares ao longe, mas algo as une: a necessidade de entendimento de
um processo, seja esse processo fílmico, memorialístico ou político perante o
mundo.
Ao mesmo tempo, o processo memorialístico estabelece um limite: Nan
conta a vida de sua própria irmã, uma rebelde, que enlouquece e se suicida. Sua
maior fonte de inspiração ao se rebelar contra o mundo era uma figura
misteriosa, mesmo assim, quando tudo se torna doloroso demais para ser dito –
e, nessa altura, coisas terríveis foram ditas em voz alta – ela diz chega. O maior
ato de alteridade de um bom documentarista é saber a hora de parar. E Poitras
interrompe, sem vermos o rosto de Nan, como se estivéssemos resguardando
um luto de alguém que acabamos de conhecer intimamente.
O delinear das duas narrativas, entre Nan ativista e Nan memorialista se
entrelaçam de uma maneira bastante natural – tal como todas as memórias, o
seu valor é a interligação poderosa entre os fatos – e a maior fortuna (e um trunfo
de Poitras, se comparados aos documentários supracitados que trabalham
unicamente com filmagens contemporâneas) é o acesso aos documentos, fotos
e imagens de arquivo que complementam e preenchem as lacunas deixadas – tanto pelos que partiram quanto pelos que ficaram. Nan ficou, mas ela mostra o custo:
sua luta contra a indústria farmacêutica de opioides e o próprio sistema de saúde
americano (luta essa que vem de anos e, no excerto sobre a epidemia de AIDS
nos anos 90 – um trecho muito tocante e assustador sobre as vozes revoltadas
de pessoas como David Wojnarowicz que se tornaram espectros reféns de todo
tipo de preconceitos) mostra exatamente como o inferno é cheio de boas
intenções: uma família inteira dizimou uma nação com opioides e depois
depositou o dinheiro em grandes galerias de arte, como se toda a arte do mundo
fosse capaz de esconder tanta coisa horrível.
E se na performance (e nesse caso, como um grande
demérito) dos Sackler reside toda a hipocrisia do mundo refletida em uma
instituição e uma fachada falsa, Nan nos mostra que a arte mora em ser quem se é,
de maneira frontal, muitas vezes nua, muitas vezes doente, muitas vezes insana.
E nessa instituição, a beleza e a grandeza residem juntas, mesmo que
dolorosas.
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