Por Gabriel Linhares Falcão
Para além da máxima “todo documentário é uma ficção”, podemos nos aprofundar e perceber que alguns verbos intrínsecos a composição prática do documentar revelam componentes de ficção presentes na realidade (na vida, na mente, e onde mais quisermos ir). Investigar, rememorar, contar, narrar, apresentar, visitar, entrevistar, refletir são alguns exemplos de ação que nos remetem a necessidade de um interlocutor, que mesmo quando realizadas solitariamente, em pensamento, pressupõem um outro imaginário a receber essas ideias enquanto ouvinte ou até mesmo agente, formulando assim desejos ficcionais.
Vladimir Léon, já no início de Meus queridos espiões, revela, ao introduzir o filme, que espera encontrar os mistérios da família que excitam sua imaginação desde a infância. Narrador, protagonista e diretor francês do filme, decide abrir o baú sobre o passado de seus avós russos, deportados da França nos anos 1930 por suspeita de “atividade política perigosa”. Eram eles espiões soviéticos? A memória da família não responde essa pergunta. Documentos, cartas e fotos, não clareiam em nada a história, mas foram deixados em uma mala organizada pela família como se demandassem uma investigação futura. Pelo menos este é o sentimento de Vladimir, que convida seu irmão Pierre Léon, cineasta ficcionista de marca maior, para dividir e comungar junto com ele os papeis de protagonista e condutor, ajudando na atividade documental do irmão-diretor nunca presa a esquemas fáceis de classificação.
No caso de Meus queridos espiões, investiguemos as indicações concisas já presentes no título: a troca de cartas e a espionagem. Da primeira, ficamos com o contar, comunicar, esconder, inventar, relatar, registrar. Claro, é necessário aqui o tal interlocutor imaginário, que assume no processo de escrita o papel do referido destinatário distante. Do segundo, ficamos com o observar, aproximar, investigar, descobrir, falsear, revelar, além dos verbos presentes já na primeira parte, utilizados agora a serviço de um poder ou ideal maior. Claro, é necessário aqui que o interlocutor não perceba o espião por completo, para que assim algo passe despercebido.
Os irmãos partem de uma dúvida acerca de seus avós, e já na primeira conversa com os amigos franceses alguns questionamentos ramificados escapam de suas palavras enquanto certeza, por impulso ficcional. “Você agora está afirmando?”, Léon questiona o outro Léon. Com a dúvida e o impulso debaixo dos braços, seguem em jornada para a Rússia em busca de arquivos, conhecidos, locais e histórias, almejando antes de tudo a verdadeira reposta.
Os entrevistados confirmam o nevoeiro cultural a respeito dos passados de suas famílias. A lição difundida no período stalinista em que era melhor não investigar suas origens ecoa até hoje. Prisões, exílios e mortes têm justificativas imprecisas e duvidosas. A Rússia se apresenta receptiva, porém impenetrável, tão clara quanto vigilante. Em poucos dias, a dupla é apresentada na TV local, Pierre é entrevistado inofensivamente e conta mais sobre sua família e o projeto do filme francês. Se havia da parte dos irmãos alguma pretensão espiã ficcional em sua empreitada, esta foi por água abaixo. Suas caras estão estampadas publicamente. Esta abordagem por parte da televisão, seria uma receptividade planejada para que algo passe despercebido? Uma aproximação para se observar mais de perto? Por que um filme independente ganha tanto destaque?
Os órgãos estatais como a sede da antiga KGB e a Direção Geral de Segurança Nacional em pouco ou nada ajudam. É subentendida nas respostas uma queima de arquivo. Memoriais que investigam o horror do período stalinista e defendem os direitos humanos na Rússia são qualificados como “agentes estrangeiros” por Vladimir Putin por conta de seus financiamentos internacionais, termo que remete à Guerra Fria. Após uma série de tentativas inconclusas de adentrar um passado blindado, os dois irmãos parecem ser aos poucos e transparentemente qualificados pelo Estado ao papel de espiões. Aqueles que querem saber demais. Civis inquietos. O pessoal é negado pela política. Por motivos de força maior, o filme é constantemente relegado à categoria de ficção, para que a espionagem dos avós pareça uma invenção dos netos, agora “agentes estrangeiros”. Os irmãos Léon precisam, por fim, ir contra seu impulso inicial, esquecer os desejos ficcionais da imaginação excitada e seguir com aquilo que se torna sua maior força enquanto cineastas: o documental. Mesmo que cada vez mais longe da verdade por trás de suas linhagens.
Atenção: "Meus queridos espiões" é o filme da semana no Cineclube da Madonna:
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