Por Victor Cardozo
Tudo começa com um casamento.
Com a fluidez sinuosa de uma maré cheia, Grémillon segue dois cozinheiros trôpegos que atravessam a chuva a caminho de uma cerimônia improvisada (e que talvez também por isso, carrega algo mais de singeleza e de sagrado, algo mais de espírito comunal). São cozinheiros de navios rivais no ofício de salvar embarcações em naufrágio. O lucro é proporcional ao risco: o mau tempo é promessa de prosperidade e a permanência em casa é mais instável que a certeza de longas horas ou dias no mar. Os demais convidados são os membros da tripulação e suas esposas. Palavras eloquentes são ditas em homenagem ao novo casal (descrevendo o mar como a amante a ser aceita por cada esposa), mas o verdadeiro peso vem do discurso simples e contrafeito de André (Jean Gabin), líder tácito da tripulação de rebocadores e verdadeiro líder espiritual da comunidade como um todo. “O que mais se pode querer”? Yvone (Madeleine Renaud) contrapõe toda atmosfera de heroísmo e bonomia com lágrimas ambivalentes. Ela é a esposa que tudo pressente e nada explica ao marido. Este é um de seus vários gestos de amor: não revelar ao homem que ama o segredo de si mesmo, deixar que ele mesmo descubra por conta própria. A hubris de André está justamente em sua força: acredita piamente em estar sempre a postos, sem distrações, sem ambivalência. Mas, como sempre, o destino, na forma do mar e de suas miragens, tem outros planos.
O filme se dá a ver num discreto entrelaçamento entre pequena e grande forma (poderíamos dizer também: entre classicismo trágico voltado para a intimidade e melodrama comunal, entre paixões interiores e senso de destino externo). Suas imagens, ao sabor dessa condução, se equilibram então entre abstração e concretude, e nada confirma mais essa divisão do que as cenas de tempestade e as cenas de amor. O interior de um barco é de uma materialidade pesada, sólida, madeira e metal. André rege os conflitos e contingências do ofício com pragmatismo e rispidez. E no entanto, essa solidez chacoalha, sofre as ameaças do extracampo e das tensões internas que o capitão tenta em vão controlar. Visto de fora, à mercê das águas, o mar é um belo e frágil brinquedo, seu conteúdo é joguete dos deuses (não consigo me lembrar quando o uso a contragosto de um modelo para cenas externas de perigo foi tão adequado). No entanto, a imagem é completa, indivisível. Entre Yvone e Aimée (Michèle Morgan), André vive o paradoxo de ser amado por ambas mediante o contraponto da recusa. Yvone recusa a concretude cega do mundo de André, vê a fragilidade da sua força e ocupa o seu lado oposto no espectro. Aimée (não ouso chamá-la de Catherine), por sua vez, se recusa a ser transformada em imagem, resiste até o último momento de despedida às idealizações de André, idealizações que permitem a ele se manter firme em sua contradição impossível. Vemos ambas sob o olhar de André como miragem e como mulheres de carne e osso. Nessa alternância, repleta de imagens duplas (mar e céu, estrelas do mar e firmamento, barcos de resgate e aqueles que os resgatam) está a revelação do drama.
Mas o mar, como já se disse, tem outros planos. Se começarmos com um casamento, será com um outro tipo igualmente fatídico de cerimônia que terminaremos. Numa prece, o destino está selado, mas também somos expulsos da intimidade dos personagens e devolvidos à condição de testemunhas do ritual comunal. Mas afinal, é em ambos, no ritual e na intimidade, que abstração e concretude se permitem trocar de lugar diante dos nossos olhos.
Atenção: "Águas Tempestuosas" é o filme do mês no Cineclube da Madonna!
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