Rohmer ou a mise en scène da linguagem

Minha noite com ela

Por Michel Mourlet

Em 1969, Minha noite com ela nos pareceu o filme francês mais sério, o mais inteligente, o mais original e um dos mais compreensivos das verdadeiras vias do cinema que nós víramos há cerca de uma década. Esse julgamento, compartilhado já por um certo número de espectadores, repousava naturalmente sob alguns pressupostos que convêm precisar brevemente. 

O mais sério: o “novo cinema” tinha tentado nos habituar a uma forma assaz desagradável de coquetismo intelectual e estético: a tentativa de impressionar os burgueses, o desprezo pelo público, recusa ou incapacidade de contar claramente uma história coerente (a coisa mais difícil do mundo), recusa ou incapacidade de fazer um “bom trabalho”, esse trabalho profissional, aprimorado e reaprimorado, onde o artesão encontra o seu orgulho. Toda essa falsa cultura, falsa porque não vivida, superficial e publicitária, que ferve nas panelas parisienses, Éric Rohmer evitou, se afirmando como um espírito são, profundo, maduro, longe da moda e da publicidade. E sobretudo, no que ele diz, no que ele mostra, ele se respeita e respeita os outros; ele fala a um auditório ideal que ele supõe capaz de compreendê-lo pois ele faz o que é necessário para ser compreendido. 

O mais inteligente: ainda que a forma e o conteúdo dos seus diálogos se refiram deliberadamente à literatura e mesmo à filosofia, ou até à teologia, Minha noite com ela se situa nos antípodas dos balbucios político-metafísicos que substituem habitualmente o pensamento em tais realizações cinematográficas. Por outro lado, a análise que esse filme propõe das condutas humanas, de maneira geral, e de personagens inscritos de forma precisa na nossa sociedade, essa análise desta vez parece justa, ou seja, ao mesmo tempo clarividente e honesta. O espectador de hoje, ou de sempre, pode se reencontrar nesses seres que vivem perante seus olhos e que não são nem alienados, nem marcianos, nem entidades porta-vozes dos fantasmas do autor. 

O mais original: pela sua forma e seu conteúdo, aliás indissociáveis como convém numa obra bem sucedida e que se rementem um ao outro, Minha noite com ela é uma espécie de desafio. Trata-se de filmar um diálogo privilegiado, uma peça de teatro por assim dizer: uma “conversação sob um lustre”. E filmar isso de tal maneira que o resultado não seja de forma alguma uma peça de teatro, que o diálogo se enraíze e se encarne na realidade concreta, seja animado por uma circulação sanguínea estreitamente conectada ao ambiente social e natural. É bem mais estranho, muito mais raro e fascinante, de observar e escutar sem se entediar, nós diríamos mesmo com paixão, duas ou três pessoas que discutem durante quartos de hora inteiros sobre a aposta de Pascal, o marxismo ou os sacramentos, que ver a trigésima milésima sequência desse insólito varejo com o qual os epígonos do surrealismo, os dementes do cinema de arte e os profetas do conteúdo mental filmado nos importunam há setenta anos. 

Um dos mais compreensivos das verdadeiras vias do cinema: tanto pela estrutura e pelo desenrolar da história, quanto pelo modo de narração, esse filme é um dos mais solidamente realistas. Ora, o realismo sempre foi e será sempre a via central do cinema, já que é de um desejo de realismo absoluto (a reprodução do mundo tal como ele é) que nasceu a técnica de registro de imagens, e visto que a técnica se aperfeiçoa ao longo dos anos para se aproximar cada vez mais desse ideal (som, cor, grande tela, relevo, etc.). 

Cúmulo do exotismo e da audácia, a história começa em seu começo, prossegue em seu meio e se conclui no seu fim. Ela não mistura nem os tempos nem os lugares, conhece uma progressão, incertezas, uma culminação (a noite) e uma recaída reconfortante em direção ao equilíbrio definitivo. Quanto à mise en scène, de uma extrema sobriedade e de um grande rigor, seu classicismo promete à obra uma atualidade duradoura.

Poderíamos abordar Minha noite com ela de várias maneiras pois, esse filme, o contrário de uma obra didática ou de um filme de tese, é, no entanto, uma espécie de ensaio que propõe ao espectador uma soma de reflexões sobre a vida e sobre o mundo. Essas reflexões se organizam em torno de três eixos principais e interdependentes: as relações entre os homens e as mulheres, o cristianismo vivido e, se sobrepondo aos diversos aspectos das relações entre os seres por um lado e, por outro, entre os seres e Deus, o problema do acaso e da providência, da graça para os crentes, da sorte para os outros: Minha noite com ela, tanto pelos recursos da sua dramaturgia quanto pelas declarações de seus personagens, é antes de tudo um ensaio sobre a reconciliação do acaso e do milagre, digamos, sobre o acaso providencial.

O roteiro é construído a partir de alguns encontros aparentemente e talvez, realmente, perfeitamente contingentes: encontro do herói e seu antigo camarada Vidal, encontro de Maud, encontro de Françoise. E esses acasos parecem tão determinantes que a questão se coloca inevitavelmente em saber se eles não são também determinados.

A primeira discussão entre o herói e Vidal sobre a probabilidade de seu encontro é já uma pequena indicação do tema que vai correr entre os fios da intriga. Mas os eventos mais significativos, nesse aspecto, são os encontros sucessivos do herói e Françoise, simples transeunte de bicicleta que enche instantaneamente Jean-Louis da evidência e da certeza que ela está destinada a se tornar sua mulher. A ação, aqui, confundindo-se com o verbo, convém por uma vez citar, não os gestos, mas as palavras:

J.L. - Você acha que fiz mal ao trazê-la?
F. - Não. Eu poderia te dispensar.
J.L. - Eu sempre tive sorte. A prova, você não o fez.
F. - Talvez eu tenha me enganado... É a primeira vez que eu sou abordada desse modo por alguém na rua.
J.L. - É a primeira vez eu abordo alguém que eu não conheço. Felizmente, eu não pensei muito, nunca teria tido coragem de fazê-lo. (...) Eu gosto de me aproveitar do acaso. Mas só tenho sorte para as boas causas. Mesmo se eu quisesse cometer um crime, acho que eu fracassaria.
F. - Assim, você não tem problemas de consciência!
J.L. - Não, muito poucos. Você tem?

Na verdade, o pensamento de Éric Rohmer é muito sutil, muito moderno e muito ocidental, para se satisfazer com uma simples ideia de predeterminação, que estaria de acordo com o fatum dos Antigos ou o “Inch Allah” dos mulçumanos. Se nossa vida pode ser feita de milagres, é preciso também e, talvez sobretudo, o dom de reconhecê-los. Outra definição da liberdade: saber escolher os momentos providenciais.

Notemos, no diálogo, que uma exceção brilhante constitui o essencial desse filme sem desnaturar a natureza fílmica, a frequência de aparição da palavra “escolha” (como das palavras “sorte” e “acaso”).

Mas aqui está o problema posto:

F. - Você não aparenta ser alguém que parece contar com o acaso.
J.L. - Minha vida é feita apenas de acasos.
Sua vida é feita apenas de acasos, mas ele calcula, ele pesa, ele filtra esse acaso. Ele escolhe seus milagres.
J.L. - (...) Eu me relaciono com muita dificuldade. Sim, eu acho idiota se relacionar com alguém porque ele é seu vizinho de mesa ou porque ele tem um escritório ao lado do seu. Você não acha?
Françoise, no entanto, se enganaria. Esse rapaz que a encontra em uma esquina e que decide imediatamente casar-se com ela, há boas razões para estar desconcertado!
F. - (...) Ao contrário de você, eu não acredito na predestinação. Eu penso que, a cada instante de nossa vida, nós estamos livres para escolher. Deus pode nos ajudar nessa escolha, mas há uma escolha.
J.L. - Eu também escolho. Acontece que minha escolha é sempre simples.

No entanto, Jean-Louis termina por expressar completamente sua ideia:

J.L. - Eu amava uma moça, ela não me amava, ela me deixou por outro. E, finalmente, foi bom que ela tenha o escolhido, ele e não eu.
F. - Sim, se ela o amava.
J.L. - Sim, mas eu quero dizer: é bom para mim. Na verdade, eu não a amava realmente... O outro deixou sua mulher e seus filhos por ela. Eu, eu não tinha nem mulher nem filhos para deixar. Mas ela bem sabia que mesmo que eu os tivesse, eu não os teria deixado por ela. Então, essa má sorte é, na verdade, uma sorte.

Assim, os acontecimentos se combinam às vezes com uma certa felicidade, mas frequentemente em vão, pois muitos homens e mulheres não veem ou se recusam a aceitar essa mão que lhes é estendida. Nosso herói não é um desses.

A sorte ou a graça, pode ser aquela de encontrar Deus, é também, no grande vaivém de homens e mulheres, alguns encontros para toda uma vida, e algumas vezes o germe de um milagre. Ainda, é preciso, nós o vimos, que os dois seres sejam igualmente dotados dessa faculdade de reconhecer o milagre, caso contrário, o germe abortado se diluirá no decorrer dos dias. Quantos homens e mulheres passam ao lado da felicidade, os olhos fixados em uma miragem e que é, ainda, medíocre. Assim, Maud poderia ser a miragem de Jean-Louis. Mas esse último, a despeito da sua banalidade aparente, é de fato um ser excepcional; é nisso que ele nos interessa excepcionalmente: ele tem o dom, ele percebe o instante — ou o ser — providencial. Uma desconhecida passa de bicicleta e é a mulher de sua vida.



  
É preciso ser beata em Saint-Germain-de-Près ou monge no monte Athos para acreditar por um momento que Jean-Louis se enganou por não preferir Maud. Essa moça charmosa, brilhante e complicada devido suas provações é a última a poder preencher a vida de um Jean-Louis complicado pelos escrúpulos da sua moral e os meandros do seu espírito. É da simplicidade, da nitidez, de um charme um pouco mais discreto, de uma ternura menos tensa, menos praticada que ele necessita; para que ele descanse, que ele se tranquilize, que ele faça as pazes para sempre. O equilíbrio que o seu bom senso lhe designa, Françoise lhe proporcionará. Eles correrão em direção ao mar, segurando seu filho pela mão: um dos belos planos evidentes e simples, à la Flaherty, à la Dwan, da antologia cinematográfica da felicidade. 

Esse bom senso, em vias de extinção nos seus contemporâneos, Jean-Louis o secreta em abundância e sem se perder nas suas frases, como a aranha desenrola seu fio interminável, enreda-o, tece-o e, concluída a teia, se encontra instalada no centro. O amor tal como ele o concebe não é nem o amor louco de adolescentes tardios que se libertam nos seus escritos da mediocridade de suas vidas, nem como as quadrilhas nas quais trocamos sem cessar de cavaleiro sem trocar de música, diversão bem monótona e muito própria para engendrar a melancolia. O amor não deve ser nem uma paixão devastadora nem a troca de duas fantasias, mas o florescimento de dois seres um pelo outro, nos seus corações e nas suas carnes: 

Maud - Então, se você encontrasse aquela que você procura hoje, você se casaria imediatamente e juraria ser fiel a ela para sempre? 
 J.-L. - Com certeza. 
M. - Você tem certeza que seria fiel a sua mulher? 
 J.-L. - Sim, evidentemente. 
 M. - E se ela te trair? 
 J. –L. - Se ela me ama, ela não me trairá. 
 M. - O amor não é eterno. 
 J.-L. - Sim, ele é, tal como eu o concebo. Se há uma coisa que não compreendo, é a infidelidade. Nem que seja só por amor próprio, não quero dizer branco depois de ter dito preto; se eu não a amasse mais, eu a desprezaria. 

Essas palavras sobre a fidelidade fazem um som bem estranho em pleno concerto de absurdos que difundimos hoje, em todos os lugares e a cada instante, para persuadir os homens que lhes interessa tornarem-se, no que diz respeito ao amor, tão disponíveis quanto os cães. E contudo, onde está o problema?

J.-L.- (...) Quando amamos verdadeiramente uma moça, não temos vontade de dormir com outra. Não há problema. 

E então, o amor não é uma doença ou uma fatalidade que se lança sobre o pobre mundo e ao qual nós somos entregues com as mãos atadas. Para que seja duradouro e construtivo, é preciso, como qualquer coisa humana, o controle da razão e a obediência a uma disciplina. 

M. - Eu não gosto da sua maneira de amar sob condição. 
 J. - L - Eu não lhe disse que era preciso amar com condições, eu lhe disse que era preciso amar somente uma mulher. Eu não vejo onde está a condição. 
 M. - Eu não falo disso, mas da sua maneira de calcular, de prever, de classificar... 

Notemos que tal concepção do amor, que repousa sobre a fidelidade, poderia muito bem ser defendida por um descrente. Um mal entendido quer que seja a religião que imponha essa regra, quando se trata inicialmente de um imperativo psicológico elementar — o sentido da propriedade sexual — que a religião só fez ratificar, para garantir na união de dois seres maiores chances de estabilidade, estado que beneficia tanto a sociedade quanto o indivíduo. 

Mas acontece que o nosso herói é católico, praticante, preocupado com os problemas da fé e não é a menor particularidade do filme, ele nos propor esse personagem absolutamente novo de um rapaz que vive quotidianamente seu cristianismo. Jean-Louis mantém com o cristianismo uma relação dupla: por um lado, ele procura harmonizá-la com a sua vida, por outro, ele extrai da religião princípios de harmonia para a condução de sua vida. Do mesmo modo que ele é um amante racional, ele é um cristão racional, pouco atormentado, que aspira ao equilíbrio e o alcança. 

Falamos, a propósito do diálogo, de Valéry, Diderot e mesmo de Marivaux e Voltaire. O que quer dizer um estilo profundamente francês. Renovamos aqui uma tradição bem viva, feita de clareza, de precisão, de ordem e de lógica. Aqui, prazer realmente soberano, as névoas do Norte e a logomaquia da Europa Central derretem como a neve ao sol. Mas seria passar ao lado do essencial, ao não ver até que ponto esse diálogo é, na verdade, uma ação, a ação do filme, seu motor. E essa ação completamente moral se inscreve em um cenário jamais abstrato, sempre presente: a vida provincial, uma cidade (Clermont-Ferrand), a missa, o restaurante, a livraria, o dia, a noite, uma rua decorada para o Natal, a neve que cai, uma paisagem sob a neve, uma praia, os ruídos da circulação. Minha noite com ela é um belo filme, pois é um filme encarnado, onde a inteligência não se torna jamais teórica ou dissecante. Ela está aqui como a fonte que vivifica o mármore — ou o celulóide. Porque ele está na contracorrente da derrocada que ameaça nossa civilização, porque ele mantém contra tudo e contra todos os direitos do bom senso e do rigor, Éric Rohmer encontra-se numa situação bem precária no nosso presente. Mas, precursor de um novo classicismo, ele tem — sem dúvida — o futuro ao seu favor. 

Os aprendizados de Perceval 


O espectador desprevenido que assiste as primeiras cenas de Perceval, o Gaulês acredita ter caído em outro planeta. Árvores de metal cortado representam uma floresta. Uma fachada de castelo feito de material leve, sempre a mesma, representa todos os castelos que demarcam a narrativa. Só mudam os brasões em cima da porta. Um céu e um sol pintados, interiores de decoração variada que dissimula uma arquitetura única são os lugares dos deslocamentos circulares dos atores, que ali evoluem como sobre um palco de circo. A ação é sublinhada por coros de jovens que arranham alguns instrumentos medievais.


E o que dizem, esses atores vestidos com uma extrema precisão histórica e cuja naturalidade perfeita contrasta com a estilização do cenário? Um poema em octossílabos de Chrétien de Troyes.

Ao menos que não nos deixemos desencorajar logo no início, o charme opera insensivelmente. A qualidade plástica dos planos, os movimentos sutis dos personagens, a beleza dos rostos, a elegância das atitudes, o ritmo do texto e a sua delicadeza (às vezes, sua comicidade), compõem uma cantata culta, repetitiva, que impregna e encanta. Uma ação de graças.

O autor de Perceval ou o conto do Graal, Chrétien de Troyes, nascido na capital de Champanha por volta de 1137, morto provavelmente em 1190, é considerado como o maior poeta francês de seu tempo e iniciador do romance moderno. Recordemos que, inicialmente, “romance” significa poema em língua romana, intermediário entre o latim tardio e o francês. Le roman de Renart, por exemplo, é uma coletânea de fábulas, um bestiário antropomórfico sem a mínima relação com aquilo que nós chamamos hoje de romance. Os romances de Chrétien de Troyes, em compensação, mesmo que escritos em versos, introduzem na ação evoluções psicológicas e morais, análises de comportamento, uma ironia que já não é o cômico das fábulas e, sobretudo, técnicas de narração bem elaboradas: narração e diálogo, individualização nuançada dos personagens, entrelaçamentos das intrigas.

“Pensamos, sinala Éric Rohmer, que esses romances eram destinados a um público essencialmente feminino [1]. A mulher ocupa um lugar muito importante em todos os romances de Chrétien de Troyes. Quer se trate de Perceval, de Lancelote ou o Cavaleiro do leão, são histórias de amor.”

Essas histórias prefiguram, dessa maneira, o romance cortês do século XIII e as adaptações em prosa (séculos XV e XVI) de ciclos cavalheirescos, caminhos que levam ao romance tal como nós o entendemos desde o século XVII. A obra de Chrétien de Troyes se coloca contra uma visão fatalista da paixão que resulta da lenda céltica, para preconizar um voluntarismo do amor livremente consentido. Concepção extremamente moderna que implica que suas narrativas sejam, particularmente, “educações sentimentais” cujos heróis devem passar por suas provas. De todos seus romances, Perceval é certamente o mais engajado nas vias da educação. É, por excelência, o romance de formação.

Pertencendo ao ciclo arturiano, ele conta as aventuras de um jovem Gaulês ingênuo, nascido em um castelo no coração da floresta. Sua mãe, que perdeu seu esposo e seus outros filhos no combate, tenta preservá-lo dos perigos educando-o na ignorância da cavalaria. Mas um dia, na caça, ele encontra cavaleiros tão belos em suas armaduras que os toma pelo Espírito Santo cercado pelos seus anjos. Para a tristeza de sua mãe, ele decide tornar-se cavaleiro.

A sucessão de episódios que marcam seu itinerário descreve uma linha de progresso constante, a despeito dos obstáculos e dos erros: da ingenuidade à sabedoria, de um egocentrismo quase animal ao respeito pelo outro, da credulidade à fé. Educação física, sentimental, moral, social e religiosa.

“Todavia, indica Éric Rohmer, eu não exagerei essa ingenuidade nem forcei o seu lado cômico. Para preservar o tom elegante desse romance para castelãs, eu não quis cair na grande farsa, mesmo se muitos momentos do texto são bem fortes, bem engraçados. Eu disse que havia um pouco de Buster Keaton em Perceval ou, melhor dizendo, que há em Buster Keaton um pouco de Perceval. Mas a sua comédia é mais engraçada porque de ordem essencialmente física enquanto que, em Perceval, ela provém só do texto.”

“Só o texto”, nós o veremos mais adiante, é a chave de Perceval o Gaulês como de todos os filmes de Rohmer. É por isso que não era supérfluo considerar seu contexto histórico e literário.

Sobre o plano da forma, o projeto parece bem singular. Não se referindo a nenhum modelo conhecido, ele é, no entanto, imediatamente assimilável e perfeitamente legível. Definição e privilégio das grandes obras cuja forma, por assim dizer, transpira de maneira natural os motivos que as inspiram. Ainda que essa espontaneidade seja frequentemente, e aqui mais do que em qualquer outro lugar, o fruto de um trabalho obstinado.

A singularidade do filme provém, por um lado e de maneira notável, de seu cenário único, polivalente, rigorosamente artificial que, segundo o metteur en scène, “constitui uma homenagem ao teatro da Idade Média (...) um pouco no espírito da representação dos mistérios, onde cenários fixos representam o céu, o inferno, etc..., permaneciam em cena e, às vezes, se deslocavam sobre rodas.”

Ao certificado de novidade atribuído a essa obra, poderíamos objetar que não se trata do primeiro cenário estilizado e construído em um estúdio de cinema. Alguns cineastas do período expressionista pintaram ruas convulsivas, cercadas de casas bizarramente titubeantes. Mas os atores exageravam e se contorciam em uníssono. O temperamento de Éric Rohmer, que o leva as antípodas do exagero expressionista, não poderia se conformar com tais exemplos. Seus intérpretes atuam com a maior naturalidade, em figurinos completamente realistas. A exatidão histórica conduziu também a escolha pelos objetos que manipulam, armas e instrumentos diversos. Esse contraste entre o ambiente e o utensílio traduz, simultaneamente, o pouco de atenção que Chrétien de Troyes deu às paisagens e à presença concreta, insistente, de objetos na sua narrativa. Além disso, podemos ver aí, ainda que Rohmer se defenda, uma alusão a várias miniaturas anteriores ao século XIV, que reúnem um verismo ingênuo de personagens no primeiro plano e de suas atividades industriais ou militares em fundos simplificados, simbólicos, ou mesmo puramente decorativos.

Outra fonte de surpresa nesse filme: o diálogo. Os versos quase inalterados, ligeiramente adaptados aqui e ali, quando a velha língua se torna incompreensível. Tradução — de Rohmer — muito respeitosa, que preserva o charme do texto ao ponto de manter a narração na terceira pessoa quando um personagem, para descrever sua própria situação, recita trechos não dialogados no poema. Depois de alguns instantes, a convenção é aceita e assimilada tão facilmente quanto aquela do cenário.

Que os diálogos versificados passem ao ecrã, nós o sabíamos há muito tempo: por Sacha Guitry, Abel Gance (Cyrano contre d’Artagnan), a televisão (Renaud et Armide de Cocteau; Racine, Molière...). É por outra razão que o conteúdo verbal de Perceval o Gaulês nos interessa. Uma razão pela qual esse filme representa o resultado extremo do projeto cinematográfico completamente original de Éric Rohmer; razão pela qual também a vontade de respeitar o texto, que reforça a homenagem do cenário ao teatro medieval, vai muito além de um simples reflexo de humanista.

Talvez à exceção de Mankiewicz, solicitado pelo problema sem conseguir realmente resolvê-lo, os filmes de Rohmer são os únicos a considerar o diálogo como o próprio assunto de sua mise en scène e não como o complemento da ação. Em todos os outros cineastas, inclusos aqueles que, como Pagnol e Guitry, filmam seu próprio teatro, a ação determina a fala e a conduz; a preexiste de certo modo, mesmo se de uma fala provém uma ação, pois é uma outra ação que, agora, se desenvolve, de onde surgirá uma outra fala.

Em Rohmer, ao contrário, o diálogo preexiste à ação. Profundamente, ele é por si só a ação: confrontação dialética em Minha noite com ela, narrativa cavalheiresca em Perceval. O deslocamento dos atores no espaço como o desenrolar dos acontecimentos no tempo sustentam, prolongam, concretizam os movimentos do pensamento e da linguagem que formam o verdadeiro nó, central e dinâmico, da ação filmada.

Assim, compreendemos melhor como uma troca tão abstrata como o debate entre um cristão e um marxista, em Minha noite com ela, torna-se um fascinante trecho de cinema. E porque, quando Perceval diz, falando dele próprio, “ele faz isso e aquilo”, já o fazendo, nós não nos chocamos nem pela terceira pessoa nem pelo pleonasmo. Nós assistimos, não à mise en scène de uma ação comentada pela linguagem, mas a mise en scène da linguagem.

O país real

Éric Rohmer foi primeiramente, em seus textos, um dos pioneiros de uma compreensão do cinema que encontrou seu coroamento lógico no que nós chamamos de mac-mahonismo, para além do qual, se ela quisesse se distinguir, a crítica só poderia regressar em direção ao impressionismo ou à política, ou falar de outra coisa como a semiologia. Passando da teoria para a prática, Rohmer soube exprimir nos seus filmes a admiração que ele carregava nos seus textos críticos por Murnau e por Flaherty: a raiz do belo está na contemplação da verdade. Nada mais convencional, nada mais contrário à moda e às ideologias ambientes que essas obras em que se fala exclusivamente da felicidade e da fidelidade do casal.

E, no entanto, não existe filme francês, hoje, que dê de certos aspectos da vida real e atual na França, notadamente na província, uma imagem tão leal, tão escrupulosamente realista e, ao mesmo tempo, amigável. Poderíamos pensar que o mesmo que acontece com os filmes de Rohmer, acontece com a França de Maurras: há o país legal e o país real. O país legal é tudo que diz respeito à efervescência midiática e ao microclima parisiense: os dogmas e os tabus da intelligentsia, a televisão, o aborto, o MLF, a revolução à la Godard e a “nova pedagogia [2]”. Mil tentativas de afagar o pelo da História e desagregar o que ainda se mantém. Em última análise, muito barulho por um punhado de dólares. O país real são os homens e mulheres que trabalham, que constroem uma família, que ainda conhecem o preço da tranquilidade, do equilíbrio, e o ritmo das estações.

O conhecimento exato e inquieto desse preço, desse ritmo, disso que os ameaça, constitui a matéria dos filmes límpidos de Éric Rohmer. Se a modernidade se manifesta na faculdade de exprimir nossa época despojando-a de falsos semblantes e a originalidade através de um timbre como nenhum outro, ainda que de alcance universal, Éric Rohmer é o cineasta francês mais moderno e o mais original. Ele é também o cineasta moderno mais originalmente francês, o menos influenciado por estilos ou problemas estranhos ao nosso gênio. Quando nossos descendentes procurarão nosso verdadeiro rosto sob a poeira dos séculos, eles o encontrarão mais seguramente na realidade das ficções de Rohmer que na ficção de reportagens ou de pesquisas.

É porque Rohmer tem o olhar muito treinado e penetrante para perceber a constância dos seres humanos. Essa permanência mostrada no concreto do seu cenário atual, captada nas suas instâncias íntimas que são essencialmente aquelas da relação sucessivamente ambígua, atormentada e solar entre o homem e a mulher, forma todo o tema de seus filmes. O celulóide, como uma hera, prende-se ao Beijo de Rodin.

Ela forma também, evidentemente, o tema dos Seis Contos Morais que Éric Rohmer publicou pelas Éditions de l’Herne. Esses Contos são, se quisermos, os roteiros de seus filmes: A padeira do bairroA carreira de SuzanneMinha noite com elaA colecionadoraO joelho de ClaireAmor à tarde. Na verdade, são histórias suficientemente escritas para justificar sua publicação. Rohmer maneja a pluma com a mesma elegância que a câmera. Seu passado de crítico e seu presente de dialoguista poderiam nos fazer pressenti-la.

Esses Seis Contos Morais compõem muitas variações sobre um mesmo tema, assim definido: “Enquanto o narrador está à procura de uma mulher, ele encontra outra, que retém a sua atenção até o momento em que ele reencontra a primeira.” Rohmer adora brincar sutilmente com as palavras: “moral”, isso significa tanto “de onde podemos tirar uma moral” quanto “retraçar um itinerário puramente moral” em oposição a uma ação exterior. Quanto à moral, ela nunca se impõe: cabe ao leitor — como ao espectador — dela extrair finas análises psicológicas e indicações de pormenores que se entrelaçam sobre a trama do conto.

Quando mensuramos a energia com a qual, normalmente, o público e a crítica rejeitam os alimentos que não foram previamente mastigados e que lhes são destinados, devemos admitir que o sucesso de Éric Rohmer parece um milagre.


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[1] Chrétien de Troyes escrevia para as cortes: aquela de Champanha, depois para a de Flandres. Perceval ou o conto do Graal foi composto entre 1180 e 1190 para Philippe d’Alsace, conde de Flandres. Lancelote, o conto da carreta, por volta de 1168, para Marie de Champagne. Outros romances do poeta chegaram a nós: Cligès (por volta de 1175), romance do amor conjugal, Yvain, o cavaleiro do dragãoÉrec et Enide, e uma obra de juventude inspirada nas Metamorfoses de Ovídio: Philoména. Entre as obras perdidas, devemos lamentar, sem dúvida, especialmente le livre du roi Marc et d’Yseut la blonde, que teria sido apaixonante comparar com os fragmentos conservados das versões de Thomas e Béroul.
Perceval se apresenta sob a forma de um poema com mais de 9000 versos octossílabos (o decassílabo é reservado às canções de gesta), provavelmente escrito segundo um poema anterior do qual só conhecemos uma versão inglesa. O autor morreu sem ter concluído sua obra, retomada e adaptada em versos e em prosa por seus discípulos franceses. Na Alemanha, no começo do século seguinte, Perceval foi copiado por Wolfram d’Eschenbach no seu poema Parzival, do qual Richard Wagner se apoderou para redigir o libreto de Parsifal.

[2] Escrito nos anos 1970. A lista de 1987 seria diferente, mas igualmente bizarra e significativa.


Rohmer ou la mise en scène du langage foi publicado em Sur un art ignoré - La mise en scène comme langage, Henri Veyrier, 1987. Tradução: Letícia Weber Jarek. 
  

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