Rossellini documentarista?

Beaubourg, centre d'art et de culture Georges Pompidou, 1977
         
Por Adriano Aprà

Poder-se-ia dizer que Rossellini nunca foi, ou só o foi ocasionalmente, documentarista. Pode-se dizer de modo igualmente legítimo que sempre o foi. É preciso se entender com os termos.
Seus primeiros curtas-metragens são filmes sobre animais, que não se podem dizer “films animaliers” (documentários sobre a vida animal). São fábulas – alla Esopo ou La Fontaine – onde os casos que se desenrolam debaixo d’água (Fantasia sottomarina), à margem d’água (Il ruscello di Ripasottile) ou em terra (La vispa Teresa, Il Tacchino prepotente) não são senão metáforas dos conflitos “eternos” que dizem respeito aos seres humanos, e que logo depois Rossellini colocará em cena como conflitos circunstanciados pelos acontecimentos bélicos contemporâneos: La Nave Bianca, Un Pilota Ritorna, L’uomo della Croce. Em outras palavras, Rossellini parte de baixo, da origem aquática da vida, para subir gradualmente à superfície e irradiar sua temática moral na água de La Nave Bianca (a marinha), no céu de Un Pilota Ritorna (a aviação) e na terra de L’Uomo della Croce (o exército). Neste último filme também assoma a projeção dos conflitos humanos numa dimensão espiritual mais ampla que as circunstâncias terrenas (a “sagrada família” e a “gruta” de todas as cenas noturnas na izba).
Os animais continuarão a ter papel importante no cinema de Rossellini: ter com estes uma boa relação (ou má) anuncia também boas (ou más) relações com outros seres humanos e com o mundo em volta: veja-se em particular Il Miracolo, Stromboli, Francisco Arauto de Deus, India Matri Bhumi. [1]
Se nos curtas-metragens a ideia de realismo é ausente, onde pelo contrário não se desdenham os “truques”, nos filmes de guerra os elementos que a crítica pôde definir “realistas” derivam também da vontade de Rossellini em documentar-se. Sim, ele o fez nos limites que pôde, dadas as circunstâncias e sua parcial maturidade crítico-histórica. Mas que sua tensão ao realismo passasse através de uma pulsão por documentar, se não propriamente pelo documentário, o podemos perceber nas “narrações débeis” dos dois primeiros filmes (mais articulado narrativamente resulta L’Uomo della Croce, cuja tensão no apólogo antecipa, por exemplo, a “fábula pedagógica” que Europa 51 quer ser). Não por acaso, de resto, grande parte da crítica de então usou, para definir esses filmes tão estranhos ao panorama nacional, a fórmula de “documentário romanceado”, retomada depois também para Roma Cidade Aberta.
Outro sinal da “tensão ao documentário” é a inserção de material de arquivo em La Nave Bianca e Un Pilota Ritorna. No primeiro, sobretudo, é notável a reconstrução “a partir de baixo” – isto é, do ponto de vista dos marinheiros fechados no ventre do navio como “dentro de tantas latas de sardinha” [2] – da batalha de Punta Stilo, a primeira batalha naval combatida pelos italianos na Segunda guerra mundial. O material de arquivo vem neste caso do documentário La Battaglia dello Jonio, rodado pelo Centro Cinematografico del Ministero della Marina, sob supervisão anônima de Francesco de Robertis (supervisor também de La Nave Bianca), durante o combate entre navios italianos e ingleses ao largo de Punta Stilo, na Calábria, entre os dias 8 e 9 de julho de 1940. A valorizar o caráter documentário que vem a assumir esta batalha reconstituída pela ficção está, por exemplo, o fato que De Robertis, anos depois, em Uomini Ombra (1954), um filme bélico de pura ficção, se serve de algumas tomadas de La Nave Bianca (e de La Battaglia dello Jonio), projetadas sobre uma tela como se fossem de arquivo, no momento em que um oficial evoca a batalha de Punta Stilo.

Em Paisà Rossellini retorna a este emprego das imagens de arquivo, desta vez para entremear os vários episódios entre si, com exceção, porém, do último. Estas imagens de arquivo, acompanhadas de uma voz over, de cinejornais, não servem somente de liaison narrativa entre os vários episódios. Elas adquirem um valor estilístico não diverso daquele que possuíam La Nave Bianca e Un Pilota Ritorna: atenuam a diferença entre documentário e ficção, realizam aquilo que podemos definir como ficção documentada, tanto é verdade que o material de arquivo é excluído da passagem do quinto ao sexto episódio, como se a ficção já houvesse absorvido definitivamente os traços estilísticos do documentário.
Em sua atividade posterior Rossellini alternará filmes de “pura ficção”, “roteirizados” e, porém, baseados sobre uma documentação pormenorizada, pela qual a ficção parece assumir os traços do documentário – é o caso de Roma Cidade Aberta; e já diferentes, mais puramente ficcionais, serão Una Voce Umana, Europa 51 e La Paura, para não falar de Giovanna d’Arco al Rogo – e filmes “orais”, estilisticamente mais grosseiros, ao menos aparentemente, como Alemanha Ano Zero, O Milagre, Stromboli, (onde torna o emprego de imagens de arquivo na erupção do vulcão [3]) e Francisco, Arauto de Deus.
No meio situa-se um filme de certa forma anômalo como Viagem à Itália. Aqui é a distância analítica, com a qual Rossellini radiografa as peripécias do casal inglês postos em confronto ao calor meridional, a consentir falar de filme “etnográfico” (o confronto - desencontro entre duas culturas) ou, como fez Jacques Rivette, de filme ensaístico. [4]
Cinema ensaístico, cinema didático, cinema etnográfico. India Matri Bhumi assinala uma reviravolta radical na obra de Rossellini, mesmo se retrospectivamente possamos discernir seus traços nos filmes precedentes. “É um filme que muito amo porque [...] foi nele que procurei realizar uma tentativa de renovação no campo do conhecimento, da informação: uma informação que não seja estritamente científica ou estatística, mas que seja também uma espécie de documentação dos sentimentos e do modo de se comportar dos homens. É também, se se quiser, de certa forma, um filme etnográfico”. [5]
India Matri Bhumi, que é um filme de ficção em quatro episódios entremeados de material documentário rodado por Rossellini (e, presumivelmente, também de imagens de arquivo de operários trabalhando, no episódio da represa de Hirakud), deve ser visto ao par de J’ai fait un beau Voyage/ L’India vista da Rossellini, a série documentária que constitui o ponto de chegada de parte das “inspeções” filmadas com (ou feitas se fazer por) Aldo Tonti antes das gravações do filme, e por outro lado da ideia de aproveitar a viagem para realizar também uma série de curtas-metragens. Se India Matri Bhumi é um filme de ficção com aparência de documentário, não diferentemente de Paisà, do qual retoma a escansão episódica, J’ai fait un bon Voyage (melhor que sua contraparte italiana L’India vista da Rossellini, na qual o jornalista que conversa com Rossellini parece mais “surdo” e bronco que seu colega francês) é um experimento muito original, espécie para a época de jornalismo ensaístico, com um Rossellini que comenta de modo muito descontraído, e dando a impressão de improvisar, aquilo que se passa na tela: quase uma conferência “multimídia” (que Rossellini não improvise no sentido próprio do termo mas – como quando realiza seus filmes – se baseie senão num roteiro com ideias muito claras, é confirmado pelo fato de que, seja na versão francesa, seja na italiana, diz praticamente as mesmas coisas, com as mesmas palavras).
A oposição entre ficção e documentário, escrita e oralidade, prosseguirá de maneira ainda mais declarada com Il Generale Della Rovere e Era notte a Roma, que são releituras “à distância”, resfriadas, do calor “documentário” que caracterizava filmes do imediato pós-guerra como Roma Cidade Aberta e Paisà, aos quais evidentemente remetem. No mesmo período, a Il Generale della Rovere e a Era notte a Roma se opõem não só India Matri Bhumi mas também Viva L’Italia, uma espécie de Paisà do risorgimento, e o primeiro filme a explicitar a conversão de Rossellini a um cinema “enciclopédico histórico”, depois da tentativa indiana de cinema “enciclopédico geográfico”. [6]
Viva L’Italia nos introduz num outro aspecto do Rossellini documentarista, ou melhor, “documentado”, que está na base de todo o seu cinema didático, de A Idade do Ferro a O Messias (isto é, a parte mais consistente, ao menos em termos quantitativos de minutagem, de sua atividade, e de todo modo aquela a qual era notoriamente mais apegado, desinteressado, como se proclamava, daquela anterior, pela qual era e permanece mais apreciado) [7]. Nos filmes didáticos Rossellini muda radicalmente o próprio método de trabalho. Seus roteiros que eram, no mínimo, elusivos quanto ao filme realizado são agora bastante precisos e respeitados, precedidos de um longo trabalho de documentação, quase como se ele quisesse limitar-se a obter, com os filmes, um documento em forma de ficção baseado o mais possível em fontes autênticas (mas, a se indagar, o quanto de subjetivo, seja no nível dos fatos pré-escolhidos quanto àquele do estilo, penetra nestes projetos declaradamente “objetivos”). Este modo de proceder transforma aquelas fontes que são, ainda assim, ficção, em ensaios em forma de ficção. Em certos aspectos, mesmo que as escolhas estilísticas sejam muito diferentes entre si, pode-se aproximar o modo de proceder de Rossellini, que se distancia das formas tradicionais de narração (mesmo suas próprias), àquele quase contemporâneo de Chris Marker, Jean-Luc Godard e Alexander Kluge: o eclipse do cinema como estória e o surgimento do cinema como ensaio.
Um traço de documentarismo mais explícito nos filmes didáticos de Rossellini encontramos no momento em que sua enciclopédia tem que se ver com épocas mais próximas aos nossos dias: em A Idade do Ferro, o quinto e último episódio é quase que inteiramente baseado em material de arquivo acompanhado de voz over; A Luta do homem pela Sobrevivência procede do mesmo modo nos episódios dez, onze e doze (intitulados Esta nossa grandiosa civilização da pressa, Uma arte nova num mundo de máquinas e Não obstante tudo, ainda além). Naturalmente o material de arquivo, embora fornecendo uma base objetiva ao discurso ensaístico de Rossellini, vem ligado, seja na seleção, seja na montagem, ao tanto de subjetivo que ele não pode passar sem nos introduzir. [8]
Neste período registra-se ainda seu projeto sobre A Ciência (c. 1970), para o qual não só rodou algumas “provas” (tomadas ao microscópio, sobretudo), como também uma série de entrevistas com cientistas da Rice University de Houston, Texas, que depois utilizou no documentário – aliás jamais transmitido mas que sobrevive nos arquivos da RAI – intitulado, precisamente, Rice University. [9]
Explicitamente documentário é então Idea di un’Isola, filme realizado sob comissão de maneira bastante tradicional (a onipresente voz over) mas que decalca os interesses didáticos de Rossellini com sua evocação, seja sobre os aspectos contemporâneos, seja sobre os históricos, da Sicília.
A Entrevista com Salvador Allende (conhecida também como La Forza e la Ragione), um documento de excepcional importância de testemunho, mesmo se rodado como qualquer especial televisivo, devia fazer parte de um projeto mais vasto de entrevistas com os líderes da Terra, entre os quais Mao Tsé-Tung, projeto do qual permanece o único realizado: primeira peça de uma “enciclopédia política”?
Até aqui devemos dizer que, com exceção de J’ai fait un beau Voyage, a atividade propriamente documentária de Rossellini é, seja como empenho ou como resultado, no todo, “secundária”, enquanto que, como foi visto, seu “ponto de vista documentado”, tanto no período didático quanto no precedente, aparece central. Podemos contudo afirmar que, à conclusão de sua atividade, reacende-se um clarão propriamente documentário nas suas duas ultimíssimas obras: Concerto per Michelangelo e Le Centre Georges Pompidou. Ambos os filmes são reflexões sobre duas “máquinas artísticas”, espaços institucionais de exibição de arte. O primeiro, comissionado pela RAI e pelo Vaticano para o Sábado santo de páscoa, é interessante, para além do autorretrato talvez involuntário que se torna para ele Michelangelo, como experimento: o único no qual Rossellini entrelaça cinema e vídeo, ou melhor, tomada eletrônica direta; o segundo é, por sua vez, uma tentativa exemplar numa direção nova: aquela da “constatação” documentarística. Envolta dos esparsos sons dos visitantes, na ausência de voz over, a câmera se move entre o “continente” – a arquitetura ultramoderna de Renzo Piano e outros – e o “conteúdo” – as obras de arte expostas – com uma curiosidade descritiva que não esconde um velado ceticismo de fundo (estamos bem longe de qualquer tipo de “celebração”). De um lado Rossellini reflete sobre a relação clássica entre arte e Igreja, de outro sobre aquele moderno entre arte e instituição laica. Em ambos os casos identifica a arte como processo de produção, além ou antes de seus resultados expressivos.
Como não ver nestas obras involuntariamente últimas uma reflexão de Rossellini sobre a própria arte? Emaranhado de política, de economia, de técnica, de documentário e de ficção em cujos limites, mas influenciado também pelos estímulos de tais limites, ele se exprime.
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[1] Remeto a esse respeito a um ensaio meu, Rossellini et les animaux de “Fantaisie sous-marine” à “India”, no precioso Nathalie Bourgeois, Bernard Bénoliel, com Alain Bergala, India. Rossellini et les animaux, Cinémathèque Française, Paris, 1997.
[2] Francesco Savio, Cinecittà anni Trenta. Parlano 116 protagonisti del secondo cinema italiano (1930-1943), organizado por Tullio Kezich, vol.III (NAZ-ZAV), Bulzoni, Roma, 1979, p.963 (entrevista radiofônica em 22 de setembro de 1974). Na mesma página Rossellini fala do filme, ainda que retrospectivamente, como “um filme didático sobre como se desenrolava uma batalha naval”.
[3] O sabor documentário de Stromboli deriva também de uma das fontes de inspiração do filme: os documentários realizados pela Panaria Film, Tonnara (Francesco Alliata, Quintino di Napoli, Pietro Moncada, 1947), Bianche Eolie (Di Napoli, Moncada, Fosco Maraini, 1947) e Isole di Cenere (Di Napoli, Moncada, Maraini, 1947). Claude Mauriac, numa revisão ao filme na saída deste em França, considera erroneamente que a cena da pesca ao atum tenha sido realizada empregando-se material de arquivo, confirmando indiretamente, assim, o sabor documentário do filme: cf. Claude Mauriac, L’Amour du Cinema, Fratelli Fabbri, Milano, 1957, p. 131.
[4] “Havia O Rio Sagrado, primeiro poema didático: agora há Viagem à Itália, que, com clareza perfeita, oferece enfim ao cinema, até agora obrigado à narrativa, a possibilidade do ensaio” (Jacques Rivette, Carta sobre Rossellini, “Cahiers du Cinema”, nº 46, abril de 1955, p.20).
[5] Conversazioni Televisive, declarações de 1962 registradas para a televisão francesa mas nunca transmitidas; agora em Roberto Rossellini, Il mio Metodo. Scritti e interviste, organizado por Adriano Aprà, Marsilio, Veneza, 2006, p. 203.
[6] A enciclopédia geográfica seria desenvolvida, logo depois de India Matri Bhumi, com Geografia della Fame, uma adaptação do ensaio Geopolítica da Fome (1951) de Josué de Castro, sociólogo e etnólogo brasileiro, que Rossellini provavelmente leu na versão italiana editada pela Leonardo da Vinci, Bari, em 1954, com prefácio de Carlo Levi; para este projeto, que herdou de Cesare Zavattini e Sergio Amidei, Rossellini viajou ao Brasil em agosto de 1958, encontrando De Castro. Prolongamentos da enciclopédia geográfica podem ser retraçados no projeto de série para televisão La straordinaria storia della nostra alimentazione (c.1964) e em A Question of People, onde Rossellini (e seus colaboradores) utilizam não só tomadas feitas na Índia em 1957 mas também outras tomadas, destinadas a projetos não realizados, feitas no Brasil (talvez em vista do projeto La civiltà dei conquistadores, c. 1970) e na África.
[7] “Apêndices” de Viva l’Italia, concebidos como o filme em ocasião das celebrações do centenário da Unidade Italiana, podem ser considerados os documentários (um media-metragem para a televisão, o outro um curta-metragem para o cinema) Torino nei cent’anni e Torino tra due secoli. Ambos, apesar de decalcar temáticas didáticas caras ao Rossellini do período, resultam de fato filmes comissionados não particularmente memoráveis.
[8] No campo dos filmes de imagens de arquivo (ou de montagem, ou de compilação, se se quiser) pouco ou nenhum relevo tem Benito Mussolini, que explicita ainda nos títulos “un film di Roberto Rossellini”. De fato, ele se limitou a fazer-se de fiador de uma operação que na época se contrapunha “do centro”, juntamente com Benito Mussolini: anatomia di un dittatore (1962) de Mino Loy, à reconstrução “de esquerda” do ventennio feita pelo senão admirável All’armi siam fascisti! (1962) de Lino Del Fra, Cecilia Mangini e Lino Miccichè, com comentário de Franco Fortini.
[9] Traços deste projeto se encontram no média-metragem de Claudio Bondi Roberto Rossellini. Sognando la scienza (1997).

Publicado como posfácio em Luca Caminati, Roberto Rossellini documentarista. Uma cultura da realidade, Carocci/MiBAC-Centro Sperimentale di Cinematografia, Roma 2012, pp. 125-131.

Publicado online em http://www.adrianoapra.it/?p=1158. Tradução de Eduardo Savella.

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