Madrugada da traição, de Edgar G. Ulmer


por François Truffaut 

Madrugada da traição é um desses filmezinhos americanos cuja publicidade é tão malfeita que quase os perdemos. A Universal sabota mais que distribui. Tudo acontece como se quisessem impedir que os críticos resenhassem. 

Mas não cederemos às pressões do mercado: Madrugada da traição é um filme barato, poético e violento, terno e engraçado, emocionante e sutil, dotado de uma verve alegre e de uma bela saúde. 

Os créditos passam sobre o assalto a um trem na fronteira mexicana. Um dos bandidos morre nos braços do cúmplice, Santiago (Arthur Kennedy), que depois de vagar durante toda a noite encontra um jovem fazendeiro, Manuel (Eugène Iglesias) e sua encantadora mulher Maria (Betta Saint-John). O filme é a história da viagem de Santiago e Manuel à cidade onde vão vender os relógios roubados, do retorno a casa, passando por um cabaré e do desfecho, bastante movimentado e imprevisto. 

Mas o essencial reside, sobretudo, no relacionamento dos três personagens, de uma fineza e ambigüidade realmente romanesca. Um dos mais belos romances que conheço é Jules e Jim, de Henri-Pierre Roché, que nos mostra dois amigos e sua companheira comum se amarem durante a vida inteira de um amor terno e quase sem choques, graças a uma moral estética e nova incessantemente reconsiderada. Madrugada da traição foi o primeiro filme que me deu a impressão de que é possível um Jules e Jim cinematográfico. 

Edgar G. Ulmer é certamente o mais desconhecido dos cineastas americanos e poucos colegas meus podem se gabar de haver assistido aos poucos filmes dele lançados na França, todos surpreendentes em frescor, sinceridade e inventividade: Flor do mal (The strange woman) (um Mauriac maltratado por Julien Green), Kyra, a escrava de Bagdá (Babes in Bagdad) (“marivaudagem” voltairiana) e O insaciável (Ruthless) (balzaquiano). Esse vienense, nascido com o século, assistente de Max Reinhardt e depois do grande Murnau, não deu sorte em Hollywood, provavelmente por não saber “compor” com o sistema. Seu humor, sua bonomia, sua ternura pelos personagens que retrata nos fazem irresistivelmente pensar em Jean Renoir e Max Ophüls, e no entanto o público do Champs-Elysées vaia levianamente o filme, como o fez a alguns meses com A morte num beijo (Kiss me deadly) de Robert Aldrich. 

Falar de Madrugada da traição equivale a traçar o perfil de seu autor, que advínhamos por trás de cada imagem e temos a sensação de conhecer intimamente ao acender-se a luz. Sensato e indulgente, divertido e sereno, vivo e lúcido, em suma, um benevolente, como todos aqueles de quem o aproximei. 

Madrugada da traição é um desses filmes que sentimos nitidamente terem sido filmados com alegria, em cada plano percebemos o amor pelo cinema e o prazer de realizá-lo. É um filme que se tem prazer em rever e do qual gostamos de falar com os amigos. Um presente que nos chega de Hollywood... 

(1956) 

Texto extraído do livro Os filmes da minha vida, de François Tuffaut (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. pp. 188-9) Tradução: Vera Adami.

Cineclube #13: À Prova de Morte


Miguel Haoni comenta À Prova de Morte (Death Proof, Quentin Tarantino, 2007) 
Edição e captação Wesley Conrado

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Mortalmente perigosa, de Joseph H. Lewis










por Robert Keser

Enquanto O Czar Negro (1949) encarnava o momento histórico, com suas investigações sóbrias e ênfase nos cidadãos exercendo seu poder, o delirante Mortalmente Perigosa (Gun Crazy, 1950) subvertia-o. Apesar de não ser o primeiro filme de amantes criminosos em fuga, foi o primeiro a apresentar a excitação criminosa amoral como libertação sexual, com sua energia profana rompendo as convenções de Hollywood. “Este é um filme em que um assalto a banco é um ato erótico – e os personagens sabem” [1]. Intencionalmente concebido como um filme em que a plateia torce pelos assassinos, sua história não poderia ser contida em um título: inicialmente lançado com o sombrio Fatal é a mulher (Deadly is the female), seu fracasso comercial levou a um também frustrante relançamento oito meses depois como Gun Crazy (Loucos por armas, literalmente, Mortalmente Perigosa no Brasil).

Com resquícios de idealismo do New Deal dos 1930, Lewis continua basicamente firme sob o contrato social, mas o amour fou dos amantes Bart (John Dall) e Laurie (Peggy Cummins) desafia a sociedade com sua busca sem disfarces por adrenalina e livre de culpas. A própria estrutura de Mortalmente Perigosa se baseia na rejeição do ideal de comunidade pelo casal (apesar do apoio e tentativa de resgate dos amigos de Bart), mas se o egoísmo fatal do individualismo não chega a ser uma mensagem modernista, Lewis segue moderno ao recusar sentimentalismos e moralismos sobre as ações de seus protagonistas. Ela é uma assassina impulsiva, ele é um fraco que ama armas mas não suporta a ideia de tirar uma vida.

Lewis não apela a explicações econômicas nem sociais. Ainda que haja uma cena de tribunal no início do filme que ofereça de forma protocolar alguns motivos ocos (“ele precisa de um homem na casa”), Bart simplesmente diz ao juiz: “atirar é o que eu faço bem. Eu me sinto bem quando disparo”. Como afirma Paul Schrader, “não há razão na loucura por armas – é apenas loucura” [2]. Laurie invade a tela pela primeira vez por baixo, precedida por suas pistolas em ação, e percebe Bart imediatamente. Usando uma competição de barraca de tiro como preliminar, eles circulam um ao outro em demonstração mútua e franca de atração física (o assistente depois a reprime “vocês dois, olhando um para o outro, como dois animais selvagens”). Em uma cena de juras de amor, ela provocantemente altera os votos de casamento tradicionais, dizendo, “eu quero ser boa. Eu serei boa. Eu vou tentar. Eu vou tentar mesmo.”

Os papéis de gênero aparecem surpreendentemente alterados, com Laurie chegando a atirar em uma mulher que a critica por usar calças. De fato, ela é puro desejo e necessidade, e ao vestir suas meias-calças escuras, ela não pode deixar de fazer certa chantagem sexual ao dizer “eu fui chutada minha vida toda. De agora em diante, quem chuta sou eu. Quando você vai começar a viver? ” Quando Lewis flutua sua câmera sobre seu corpo recém-saído do banho e termina em sua boca à espera, nós não estamos apenas habitando o ponto de vista de seu amante, mas nos encontramos sob um domínio de carnalidade abstrata. Ao Bart reclamar que “tudo está acontecendo tão rápido... como se nada mais fosse real”, Lewis maximiza a fisicalidade de Laurie em sua resposta: “Olhe para mim deitada ao seu lado. Sou sua. E sou real.”

Nas palavras de Paul Schrader, “as qualidades superlativas de Mortalmente Perigosa são precisamente aquelas que apenas o diretor pode fornecer: uma combinação de ritmo, elã e composição dinâmica” [3]. Lewis prossegue a escalada de roubos, fugas e reencontros, cada um deles encenado com o cuidado de um número musical, inclusive com o uso teatral de fantasias, de trajes do Velho Oeste de franjas longas, até ternos sóbrios com óculos de aros grossos, passando por uniforme militar e jaleco de laboratório. O primeiro e mais célebre assalto a banco – ousadamente concebido como um elaborado longo take sem cortes observado totalmente do banco de trás de um carro – tem os atores improvisando suas falas enquanto nervosamente dirigem em tempo real em ruas que não haviam sido fechadas para a filmagem. Eles correm para roubar a agência, nocauteiam um policial e pulam novamente para dentro do carro, acelerando excitados enquanto escapam. Impotente por não conseguir atirar em um carro de polícia que os persegue, Bart mira então nos pneus (o carro, de forma muito realista, balança para esquerda e direita).

No assalto no matadouro, além de correrem passando por carcaças penduradas, caindo e derrubando dinheiro ao som do alarme, Laurie finalmente assina seus destinos ao matar duas pessoas. Planejando se separarem para fugir, eles se encontram em um transe sanguinário, seu magnetismo animal os atraindo novamente em uma única tomada de câmera de Lewis que gira enquanto Bart abandona seu carro para voltar a Laurie. Procurando mostrar de forma clara que “o seu amor um pelo outro era maior que seu amor por armas” [4], o Liebestod final no pântano de Lewis se aproxima da inevitabilidade presente em grandes tragédias, com Bart instintivamente atirando em sua amada para proteger seus amigos de infância, apenas para ser morto pelos mesmos. 

Fragmento do perfil de Joseph H. Lewis publicado em novembro de 2006 em http://sensesofcinema.com/2006/great-directors/lewis_joseph/. Tradução: Giovanni Comodo.

[1] Michael Covino, “Gun Crazy”, East Bay Express (Oakland, California), July 26, 1991.

[2] Paul Schrader in Cinema, 5 (1), p. 44

[3] Schrader, p. 43.

[4] Lançado um mês antes de Mortalmente Perigosa, Amarga Esperança de Nicholas Ray também segue um casal de amantes desajustados, contudo sua melancolia romântica parece ser o próprio oposto da energia perversa de Lewis. Os inocentes de Ray desejam um vida respeitável “como pessoas de verdade”, enquanto forças externas os reprimem, especialmente suas origens sociais, com o rapaz tendo testemunhado o assassinato do pai e com a garota abandonada pela mãe com seu pai alcoólatra incorrigível.A única comparação possível de Ray com o relacionamento sexual unido por violência de Mortalmente Perigosa é uma cena em que Farley Granger beija Cathy O’Donnell grosseiramente enquanto ela destrói objetos com a arma dele.Além disso, o casal de Ray,de penugem de pêssego e olhos brilhantes, banhado em luzes delicadas em close-up românticos é a antítese do duo amante dos gatilhos de Lewis, caracterizados por Pauline Kael como de um “encardido fascinante”. De fato, a virginal Keechie de Ray não poderia ser mais oposta a libidinal Laurie, chamada por Lewis de “um cruzamento de Annie Oakley e Lady Macbeth”.

A propósito de Le Ciel est à vous

Por Jean Grémillon

Na carreira de Jean Grémillon, Le Ciel est à vous vem na sequência de Remorques (1939-1941) e de Lumière d’été (1943), dois filmes importantes que confirmaram definitivamente seu lugar entre os cineastas franceses de primeiro plano. Baseado em um roteiro de Albert Valentin e Charles Spaak, dialogado por esse último — que Grémillon reencontra ao seu lado pela quinta vez desde La Petite Lise (1930) —, esse novo filme é produzido por Raoul Ploquin do qual, depois dos anos passados na direção das versões francesas da UFA entre 1933 e 1939 (dos quais, já há quatro anos com Jean Grémillon), é a primeira produção independente no comando da sua própria companhia; ele deixou alguns meses anteriormente a direção do Comitê de organização da indústria cinematográfica (C.O.I.C), organismo de tutela criado pelo governo de Vichy em outubro de 1940 e que, como tal, não é aceitado pela maioria dos profissionais. Essa experiência, ao menos, sem dúvida alguma, forneceu algumas vantagens ao produtor para obter, em diversos níveis, as autorizações indispensáveis para efetuar essa produção, cujo tema (história de um casal de pessoas simples das quais a vida é transformada pela sua paixão pela aviação) não tem certamente em si nada de politicamente temerário, mas que apresenta a dificuldade particular, levando em conta a época, de ser necessário inúmeros dias de filmagem num aeródromo. Começada em maio de 1943 no estúdio de Boulogne, a realização do filme continuará nos exteriores a partir de 31 de julho no aeroporto de Bourget, depois, por causa de um bombardeamento, no aeródromo menos exposto de Lyon-Bron, onde as filmagens se concluíram, na metade de agosto. Le Ciel est à vous estreiará nas salas em 2 de fevereiro de 1944. Com a ajuda de seu tema consensual, ele será, de uma maneira geral, bem acolhido, por motivos por vezes contraditórios, mas se encontrará mais tarde, com a chegada da liberação, no centro das polêmicas da qual ele será menos o objeto que a ocasião. Ainda permanece algo dele com os historiadores de cinema, uns vendo nele um filme “pétainista”, outros o próprio exemplo do filme de resistência. O texto abaixo, que permaneceu até então inédito, foi redigido pelo realizador nas primeiras semanas de 1944, nas vésperas da estreia do filme.

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Quem dentre vocês nunca se debruçou, quando pequeno, sobre as imagens da astronomia popular do Almanaque Hachette? Elas representavam um homem, um homem bem pequeno sobre uma rota muito longa. Ao fundo aparecia seu vilarejo, o lugar onde ele vive. E, imensa, acima dele, a abóboda celeste, cheia de constelações e estrelas costuradas ao ponto da tela. 

Você também, provavelmente, as observou como Thérèse e Pierre Gauthier observaram essa estranha e fiel cosmografia. Você sabe muito bem... Há Andrômeda, a Cabeleira de Berenice, a coroa boreal, o Cruzeiro do Sul e miríades de outras. Provavelmente nenhum destino particular estava ali inscrito aos seus olhos. Ao menos eles o pensavam. 

Pois Pierre e Thérèse Gauthier não têm ideias particulares. Pierre pensa simplesmente que aquele que faz o pão trabalha para aquele que corta as roupas, e este que corta as roupas o faz para aquele que ensina o alfabeto, a aritmética e o vocabulário. Sua mulher, Thérèse, pensa também que é um trabalho, um trabalho útil aquele de cozinhar os alimentos, que é um trabalho de amor como aquele que embeleza sua vida e a de suas crianças.



Eles são como todo mundo. Não são heróis. Eles estão afogados na multidão. E nesse fragmento de suas vidas que conta Le Ciel est à vous, há muitas aparências frívolas, hesitações, mentes pequenas (como em todas as vidas) que três em cada quatro vezes bem arriscam de arrebatá-los até o dia em que, finalmente, uma grande coisa é realizada. 

Nesse fragmento de suas vidas há apenas o esperado, um pouco de banalidades e muitos lugares comuns com, todavia, esse acento de simplicidade e despojamento que é próprio das pessoas simples. Tudo se encadeia na vida de M. e Mme. Gauthier com um rigor que condena as reviravoltas de teatro e as paixões excepcionais. E, contudo, algo de grande acontece, tão grande e tão simples que sua história se torna extraordinária.
A glória em si não tem para eles nenhum valor. O que os anima, é um elã impetuoso do coração, e a aviação será aí somente um pretexto para a transfiguração da realidade de um meio em uma realidade superior. 

Aqueles que poderiam pensar que esse filme glorifica o espírito de aventura que nasce no seio de uma família honesta de artesãos se enganariam tanto quanto aqueles que, ao observar a vida desse casal hábil e trabalhador, esperavam que à custa de tantas virtudes providenciais, eles receberiam a recompensa merecida e subiriam na hierarquia social. 

É uma história bem mais simples que tudo isso: há tantos prazeres e alegrias sobre a terra, apesar de tantas misérias e pesares, há tantas maneiras e espaços para apreciá-los que Thérèse e Pierre estão certos de se deter um dia sob uma árvore. E se, através do verde e de seus galhos eles veem ainda o céu, eles ali descobrirão sempre, como todos aqueles que olham bem no fundo de suas almas, no fundo do céu que está neles, a constelação, a pequena estrela cadente que era o símbolo das suas esperanças. 

À propos du Ciel est à vous foi publicado no livro Le cinéma? Plus qu’un art!...– Écrits et propos (1925 – 1959), coletânea de textos de Jean Grémillon. Tradução: Letícia Weber Jarek.

(Link para o filme com legendas em inglês.)

Os vigilantes




Por Jean-Philippe Tessé

Na varanda, uma mulher vigia na noite, a espingarda sobre os joelhos e a Bíblia ao alcance da mão. Do lado de fora, o diabo também vigia, ele nina a velha mulher sussurrando um cântico, ele espera que ela se canse, e ela, ela está prestes a ceder, a se fundir com ele no canto, sob a lua, “Leaning, leaning on the everlasting arms...”, ela está prestes a abrir sua porta ao demônio, este caçador noturno que veio pegar suas crianças e levá-las consigo – “então ele não dorme nunca?” perguntava uma das crianças. Nunca. A luz de uma vela apaga as marcas da silhueta do caçador no breu da noite. Ele escapou da vigilância da velha; desta vez, é certo, ele vai entrar na casa para devorar as crianças. É isso, ele está lá, mas a velha dá um tiro de espingarda e o demônio galopa em direção ao celeiro gritando como um demente.

A última vez que tínhamos ouvido seu grito de besta em fúria, ele tinha lodo até as coxas, os cabelos descontrolados, os dentes cerrados, a faca na mão: diante dele, as crianças deslizavam sobre o rio, numa noite ainda mais negra, ainda mais estrelada. Sobre a correnteza do rio, velam dois coelhos gigantescos e outros plácidos bichinhos. Mesmo se a América atravessa a sua Grande Depressão, miserável e debilitada, há sempre alguém para cuidar de duas crianças abandonadas. É preciso descer o rio para encontrar este vigilante. Se não é o velho na sua cabana, que vê passar o barco a vapor e se embebeda de álcool e de desgosto, serão os gentis animais nictalopes e a vovó da espingarda. Vigiar e proteger contra este demônio disfarçado de pastor maníaco, que se arrasta em seu delírio. Para agradecer à vigilante por tê-lo salvado da faca do caçador, John, o garoto, lhe oferece uma pequena maçã enrolada num paninho. Nunca ninguém tinha oferecido um tão belo presente. Este é O mensageiro do diabo, este é o mais belo filme do mundo.

Les veilleurs foi publicado na revista Cahiers du Cinéma, n° 684, dezembro de 2012. Tradução: Miguel Haoni.

Jean-Luc Godard: Made in USA




por Adriano Aprà

Cinema Bidimensional. Presença móvel confinada entre duas paredes - aquela da câmera-tela-espectador, que lhe está adiante, e aquela de uma "superfície", que lhe está detrás - Anna Karina-Paula Nelson, compelida a sair pelas bordas do enquadramento-prisão, em fuga. Este procedimento estilístico dá a impressão inesperada, e salutar, de um cinema "diferente", onde nós, espectadores, não nos reconhecemos - para melhor conhecermo-nos. Uma regressão a Lumière, ou melhor, para antes de Lumière (quanta profundidade de campo em seus breves planos-sequência!), que é, ao mesmo tempo, uma mímese-crítica das formas mais difusas da visualidade contemporânea, da publicidade aos quadrinhos, é o "modus vivendi" proposto por Godard.

Cor pura. Cor-objeto, não objeto colorido: a superfície da tela se apresenta como uma justaposição de elementos díspares (um vermelho + um amarelo + um azul) onde perdemos o senso de continuidade e na qual, de repente, parece possível evidenciar sem ambiguidade os "cinèmi" pasolinianos (uma Anna Karina sobre uma parede amarela...); onde, ao contrário, a ambiguidade se re-apresenta como negação programática de uma harmonia pré-concebida: a justaposição de cores autossuficientes basta para provocar o desequilíbrio, inserindo-se escandalosamente num mundo da visão dominado até ontem por sua equilibrada contraposição ou composição.

Cinema Estático. Não a dissolução do real em fotogramas únicos mas sua conservação real, isto é, a revelação de sua natureza (cultural), e a do cinema. Godard-Zenão destrói a ilusão da realidade como contínua e a do cinema como movimento (muito menos timidamente que - Une femme Mariée, Alphaville - quando se limitava a inverter a película, fazendo do negativo positivo, para destruir a ilusão realista do cinema). As coisas se seguem com indiferença, sem que o ataque da montagem ou a continuidade técnica do plano-sequência insinuem uma hipótese determinada e codificada de relação entre ambas. Não resta, diante da dissolução das combinações recebidas, senão a possibilidade de inventarmos nós mesmos novas hipóteses, novas combinações. Shklovskij dizia (interrogando-se, em 1923, sobre um cinema original, como aquele sobre o qual, em 1967, se interroga Godard): "O mundo contínuo é o mundo da visão. O mundo descontínuo é o mundo do reconhecimento. O cinema é filho do mundo descontínuo [...]. O cinematógrafo não se move, mas é como se se movesse. O movimento puro, o movimento em si mesmo não será jamais restituído ao cinema, que deve ter relação somente com o movimento-signo, com o movimento semântico. Não o simples movimento, mas movimento-ação, eis a esfera do cinema. O movimento semântico-signo percebe-se pelo nosso ato de reconhecimento, depois completado por nós em seu desenho". Made in USA, fazendo explodir o cinema, rompe nosso hábito de pensar o cinema e o mundo como contínuos, e torna ferozmente atual o grito de alarme que Shklovskij, otimista em suas esperanças, lançava: "Não, este século passará e o pensamento humano transporá os termos colocados pela teoria dos limites, aprenderá a pensar mediante processos racionais e, de novo, perceberá o mundo como um todo contínuo. Então o cinema deixará de existir".

A perda de identidade. A personagem é a última hipótese de coesão para o universo de esfacelamento, uma garantia de reconhecimento da realidade fílmica, para além das fragmentações múltiplas no nível do enquadramento, da montagem, da estrutura narrativa. Godard destrói também esta esperança. E o faz - autodestrutivo - partindo do modelo estereotipado do detetive, unificador, nos tão amados filmes noir de Hawks, Walsh, Fuller, de um récit amiúde tão desenvolto e "livre" de lógicas espaço-temporais, como aquele Godardiano: a personagem, sobrepondo a continuidade da própria presença humana ao aparentemente descontínuo, tornava hipotética e impotente aquela liberdade. Pelo contrário, Anna Karina jamais é Paula Nelson, senão ironicamente, enquanto alusão estranha a uma personagem (Bogart, por exemplo) apenas revivida pelo Godard cinéfilo, logo dissolvida. É uma presença física mutante, entra num enquadramento para dele sair, para entrar no enquadramento (descontinuamente) seguinte como num outro filme: isto é, num outro tempo e num outro espaço, que estabelecem com os primeiros relações abstratas e metafóricas (um pouco como nas comédias de Chaplin ou de Laurel e Hardy). Suspensos numa dimensão que custamos a reconhecer como nossa (e contudo, veremos, lhe é a imagem mais fiel), os enquadramentos se apresentam descompostos e, ausente a "personagem", não-recomponíveis, nem mesmo por um hipotético espectador "ativo": a escolha estilística de Godard é a recusa a todos os níveis de continuidade espaço-temporal como código de segurança cinematográfica.

La vie moderne. "Vivemos até hoje num universo fechado. O cinema se nutria de cinema. Se auto-emulava. Percebi que, nos meus primeiros filmes, se eu fazia certas coisas, era porque já as tinha visto sendo feitas no cinema"; "estou no meu décimo-terceiro filme e, contudo, tenho a impressão de que só agora começo a me interessar pelo mundo"; "houve períodos de organização e de imitação, e períodos de ruptura. Encontramo-nos num período de ruptura. É preciso retornar à vida. Hoje, é preciso ir de encontro à vida moderna com um olhar virgem". A novidade desconcertante do cinema de Godard é aquela de uma tomada direta do mundo tão intensa que custamos a reconhecê-lo, o mundo e o cinema. Seu não é um discurso sobre o cinema e, logo, sobre a vida moderna, mas o discurso da vida moderna e, portanto, do cinema; é, em outras palavras, a hipótese louca, que o aproxima de tantos cineastas contemporâneos, de um cinema-vida que postule a abolição das fronteiras, a superação dos limites, recusando a contemplação em favor da ação. Nesse sentido, Godard fala cinema para falar vida. A destruição dos códigos tem uma função imediata: trata-se de ensinar a enxergar-escutar a quem sabia apenas ver-ouvir. Godard filma por muito tempo um magnetofone insignificante e registra em volume muito alto uma voz confusa? Justamente, não é o que se vê-ouve que conta, mas o próprio fato de (re)ver e de ouvir (de novo): o meio, ou melhor, o cinema - portanto o mundo, um e outro enxergados e escutados pela primeira vez - é a mensagem.




Made in USA. Feito nos Estados Unidos dos clássicos do cinema, mas também naquele dos autores "underground". A operação estilística de Godard, de fato, destrói o código instituído do cinema tão amado na juventude para fundar um outro cinema que, talvez, já realiza o que teorizam os Brakhage, Warhol, Cavanaugh. Por trás das preocupações de Godard está a urgência de limpar a linguagem, regenerá-la, para restituir-lhe a possibilidade de uma comunicação não-alienada, não-ilusória, para fazê-la falar sem ser falada, libertando-a das estratificações de sentido que esta traz consigo, antes mesmo de ser empregada. Fazer um primeiro plano como se se o inventasse, destruindo a lembrança obsessiva dos primeiros planos de Cukor, Hawks ou Griffith. Restituir a linguagem a um grau zero, no qual ver e ouvir não signifiquem rever e ouvir de novo. Masculin féminin foi talvez o primeiro filme em que Godard, depois de haver buscado exaustivamente sua própria linguagem, começava a dizer alguma coisa. Made in USA parece, entretanto, levar adiante a fase experimental, numa ulterior, mais radical destruição de convenções e estratificações estilísticas. O tridimensional reverte-se em bidimensional, o dinâmico em estático, o contínuo em descontínuo; não existe mais personagem, nem mesmo a "obra" como universo fechado, concluído (ao todo substituem-se seus fragmentos, dos quais não se postula mais nem mesmo a sistematização, como ainda era o caso de Vivre sa vie e Une femme mariée; o não-finito e a contradição estilística substituíram definitivamente a coesão da obra tradicional). Tudo explode, o cinema é, sem cessar, interrogado naquilo que críamos indiscutível, sobretudo em seu "naturalismo" e em sua "verossimilhança"; a deformação assume em Godard a função de revelar a imagem em sua ambiguidade (e não de privá-la de tal ambiguidade, através de uma redução codificada dos sentidos possíveis). Tal revelação parece, enfim, fazer parte de um projeto sistemático, se formos crer em Jean-Louis Comolli que, no nº 191, junho de 1967, dos Cahiers du Cinéma, descreve assim Anticipation ou L'Amour en l'an 2000, último filme "rodado" por Godard (não mais disponível como tal na França e, presume-se, na Itália, depois das "alterações" feitas pela produção): "Encontramo-nos diante de um outro experimento, diverso até daquele de filmar: a tentativa e a tentação de destruir a própria imagem, isto é, a matéria-prima e vital do cinema [...]. Talvez o experimento para saber a que ponto, exatamente, a imagem pode autodestruir-se, qual é seu limite de resistência: se, estampando-a em negativo, monocromática, falseando seus valores de luz e sombra, espremendo-a de todas as maneiras, no fim obtém-se aquela mesma coisa qualquer, na qual se encontraria ainda o coração profundo do cinema, a alma para além de toda superfície e aparência". Repetiremos por fim em relação a Godard que "através de técnicas e modalidades diversas [...] a operação [da nova vanguarda] é a negação da comunicação linguística comum enquanto revelação de sua natureza reificada, e é assunção da língua-coisa como objeto e fim do programa combinatório que se apresenta como programa de combinação de "coisas", de "matéria", de partes de língua em seu discretum, não em seu continuum ou linearidade, extirpados ao fluxo ou sistema comunicacional, reconstituídos (segundo diferentes modelos de combinação) em novas unidades de comunicação e significação negativas ("grupos", "séries", "seções", etc.) derivadas, precisamente, da desestruturação dos planos (sintagmático e paradigmático, contextual e sistemático) do sistema comunicativo linguístico" (Gianni Scalia).

Cinema e filme. Falar de Godard quer dizer falar de cinema; quando não de cinema-Godard, se Godard assimilou todo o cinema feito até hoje para inventar - e continuar inventando - o outro cinema. A relação entre um filme de Godard e outro filme seu é, portanto, antes aquela entre uma hipótese de cinema e outra hipótese de cinema, ou entre os diversos estágios de uma mesma hipótese de cinema. Também aqui, nenhuma continuidade: se destrói o cinema visto para construir um outro cinema, Godard vai até o fim, e destrói os próprios filmes para construir outros a serem destruídos. Seu movimento é incessante, um movimento vital, no qual os "filmes", como unidade, não subsistem. Estes são pedras de um mosaico em movimento que se forma no tempo, digo, que se monta no tempo; de um filme-monstro, pois que se chama "cinema", e muda de sentido a cada novo ataque e espera. Morre um filme para que viva o próximo e, nisto, reviva a ideia de cinema que se cristalizara momentaneamente no primeiro. E nisso tudo o crítico sente a urgência de superar este mapa que queima, de fugir de algum modo ao grande incêndio, para aludir àquele senso plenamente vivido e vivente que é o cinema de Godard.

Publicado, com o título A propósito de um não-reconciliado permanente, em "Cinema &Film", nº 3, verão de 1967, pp. 323-325. Disponível online em http://www.adrianoapra.it/?p=1860. Tradução: Eduardo Savella.