Do zero




O Beijo Amargo / 1964

Por Axelle Ropert

Surpreendentemente, O Beijo Amargo é um dos filmes mais incômodos do cinema americano. Surpreendentemente porque se Fuller gosta de forçar o paradoxo das situações ao seu ponto de ruptura, ele não é por isto o cineasta do desconforto. Estaria isso ligado ao tema do filme, a pedofilia? Certamente. Uma ex-prostituta busca um novo começo desembarcando em uma cidade pequena. Ela é contratada como enfermeira junto a uma instituição para crianças deficientes. Ela fica noiva do benfeitor da cidade, ela logo descobre que ele é pedófilo e que ela lhe serviu como escudo perante os bons costumes. Ela o mata e se vê encarcerada por assassinato.

Fuller trata o tema, oh, quão difícil e ainda incongruente em 1964, com seu misto habitual de frontalidade e de delicadeza. Tudo é dito sem afetações, mas nada é grosseiramente explorado. Por exemplo, o benfeitor pedófilo possui uma boca generosamente orlada que faz imediatamente compreender a obscenidade do personagem, mas ele não é por isto entregue à punição do espectador. A cena do crime não é mostrada, mas dois planos bastam para tornar inequívoca a sua natureza: as pernas nuas de uma menininha que corre de costas, e um grafite sobre uma parede em forma de avião fálico, escondido pela mão dessa mesma menina. E, durante a cena do testemunho, o cerne não é o relato da agressão, mas a maneira absolutamente escrupulosa com a qual se deve fazer uma criança falar. De nada se esquiva, mas tudo é delicado.

Por que o incômodo perdura, mesmo quando o culpado é finalmente punido? O crime de pedofilia é no fundo a expressão de uma grande desordem, a expressão de um mundo desafinado – e para um cineasta tão musical como Fuller, estar desafinado é um grave defeito. “Não tenho ouvido para música”, assim se define o tira sacana do início. Nada está em seu devido lugar no filme: os adultos querem ter relações sexuais com as crianças, os inocentes são espancados pela polícia e jogados na prisão, as enfermeiras sonham em se tornar prostitutas, as velhinhas praticam um fetichismo perturbador, etc. Nesse mundo onde o lugar certo está perdido, tudo se desenrola em marcha lenta, em um universo estirado entre o desfile grotesco dos desejos adultos e aquele das crianças deficientes às quais nenhuma esperança de recuperação é realmente concedida.

A heroína – Kelly – não escapa a essa dissonância geral. É Constance Towers, a mais marcante das heroínas fullerianas. Vinda de Paixões que Alucinam, de Audazes e Malditos e de Marcha de Heróis de Ford, loira esplêndida com traços aquilinos, atlética, desenvolta, meio-deusa e meio-guerreira, ela possui um físico extraordinário. Ela parece maior do que o normal, deslocada nesses cenários estreitos como se o mundo, pequeno demais, não estivesse à sua medida – onde o cinema hollywoodiano clássico prefere dispor mulheres pequenas em grandes cenários. A heroína é uma mulher que esbarra em tudo.

Mas isso não é tudo. A heroína esbarra em tudo, mas é também golpeada por todos os lados. Por um policial de odiosa má fé, depois por uma multidão que quer linchá-la. É inclusive um calvário feminino com acentos penosamente repetitivos o que o filme desenvolve, e o qual já encontrávamos, sob uma forma mais alegre, na dupla formada por Jean Peters e Richard Widmark em O Anjo do Mal. Por que o que poderia ser insuportável, entre misoginia e sadismo, torna-se aqui comovente? Salvo não pelo erotismo do olhar depositado sobre a atriz (Fuller, cineasta hiper-masculino, por outro lado não fez passar sua libido para seu cinema), nem por uma fascinação por certo trágico feminino, o calvário feminino ganha sua nobreza através da admiração perceptível do cineasta pela resistência das mulheres, pelo seu vigor a toda prova, admiração que encontra seu apogeu nos magníficos planos de Kelly, sozinha, na prisão.




Qual é o remédio que pode suavizar a dissonância do mundo? A música, evidentemente. Disse-se muito que Fuller era um cineasta rítmico, talvez não o suficiente que ele era também um cineasta musical, ou mais exatamente um cineasta que gosta de encenar os benefícios da música – lembremo-nos das cenas ao piano em O Quimono Escarlate. Os personagens de Fuller gostam de ouvir música, e a música para Fuller é antes de tudo melodia. Aqui, a figura de Beethoven assombra o filme, dos acordes da Sonata ao Luar ao plano em que a heroína pousa sonhadora a mão sobre o busto esculpido do músico antes de descobrir a terrível verdade. A música é uma trégua antes da catástrofe. E depois, especialmente, vem uma espantosa sequência: as crianças deficientes, juntas em coro, entoam Mommy Dear sob a batuta de Kelly. A canção, composta por Wayne Shanklin em 1953 sob o título Little Child, é uma das maravilhas da canção popular americana, trabalhada em sutilezas e em emoção contida. Uma harmonia inaudita, no coração de um mundo perfeitamente dissonante, começa a vibrar. A cena é extraordinária, no cruzamento do McCarey de Os Sinos de Santa Maria (1945) e do Tod Browning de Monstros (1932); ela faz surgir a santidade no seio da monstruosidade, com o desprezo incrivelmente lírico de toda verossimilhança.

O espírito de vingança, totalmente estranho a um Fuller, cineasta de pulsões, mas amante da retidão, é maltratado. Ele é primeiro estritamente recusado ao espectador, que, estranhamente, nunca deseja a morte do pedófilo – como se a questão se situasse alhures. Ele se abate sobre a única personagem admirável, a heroína, graças a um desses paradoxos de que Fuller guarda o segredo. Uma cena, cortada na montagem, onde a heroína dizia o que pensava sobre a multidão linchadora, teria criado um irmão mais novo de Fúria (1936), de Fritz Lang. Entretanto, a lição de moral está lá, encarnada em uma cena de ação muito mais fulleriana do que um apelo oral. No meio do filme, Kelly faz uma visita a uma cafetina que subornou, com vinte e cinco dólares, uma jovem, para fazer dela prostituta. Ela vai lhe dar uma lição, mas sem belos discursos. Bizarramente, ela se joga de repente sobre a outra e lhe enfia na boca as notas que serviram ao desvio moral. Tudo está dito. A moral fulleriana é o elogio da literalidade: a heroína literalmente paga na mesma moeda a culpada. Nada a ver com a Lei de Talião, mas novamente uma forma de concretude impelida ao extremo: o que foi injustamente distribuído deve retornar ao expedidor, devemos meter o nariz do culpado no “lamaçal” de seus esquemas, devemos recolocar as coisas em seu devido lugar. Em Falkenau, Fuller não fará diferentemente, filmando os aldeões tchecos obrigados a ir à cena do crime, o nariz no “lamaçal” dos fatos. Fuller é tanto um pioneiro quanto um soldado experiente de 1939-1945, que conhece o preço real das coisas.

Essa moral tão literal não se assenta, por isso, sobre uma desconfiança dos princípios abstratos ou do pensamento, Fuller admira demais os grandes espíritos da humanidade para isso. Como prova, o pequeno diálogo em torno de Goethe entre Kelly e um policial, que nunca ouviu falar dele. À incultura reivindicada do tira (“Goe... quem?”), a heroína responde: “Goethe condenou justamente a ignorância”. Se o tira faz mal seu trabalho e a coloca na prisão injustamente, é porque, no fundo, ele despreza Goethe. Essa crença de que o “grande espírito” e a moral andam de mãos dadas é testemunha de um otimismo clássico – esse mesmo otimismo clássico que acha muito natural que uma pequena prostituta cite Goethe, onde um Tarantino e seus mafiosos letrados fariam disso um efeito de preciosidade premeditada.

Enfim, voltemos ao início. O filme inventa a abertura mais impressionante do cinema americano. Kelly briga violentamente com seu cafetão, golpeia ruidosamente e acaba por perder sua magnífica cabeleira – na verdade uma peruca –, desvelando uma cabeça raspada. Se a mulher careca é a heroína dos tempos modernos e a infâmia o signo secreto da eleição (Duras e Genet não dirão melhor), todo Fuller está contido nessa sequência. No fundo, um único princípio está no âmago de seu cinema: o da tábula rasa. Um princípio rítmico, então: varrer selvagemente o cenário. Um princípio moral: derrotar as falsidades, fazer uma “viagem de ida e volta” (tabefes, deslocamentos a Falkenau, dólares, etc.). Um princípio de mise en scène: um plano caça o outro. Mas o mais importante é o que vem depois da tábula rasa: uma vez varridos os falsos valores, deve-se construir um mundo novo. Cão Branco não narra outra coisa: para reeducar o cão racista, deve-se não somente destruir a semente do mal, como também lhe construir um novo cérebro. Um escritor vem à mente, um escritor inglês do século XVIIII com quem o Fuller de Cão Branco partilha inquietantes similaridades: Daniel Defoe. Em Robinson Crusoé, Defoe inventa um herói que, após ter agido mal, se vê sozinho em uma ilha e deve tudo reconstruir a partir do nada. Mesma tábula rasa como princípio geral, mesmo minimalismo, mesma ausência de narcisismo ou de interioridade psicológica dos personagens, mesmo combate contra o nada, mesma voz humana que grita absurdamente no deserto, mesma relação prosaica com a contagem do tempo, mesma solidão radical do herói, mesma força de trabalho como única ajuda possível, mesma concepção de escrita ou de mise en scène como perfuradora de uma página virgem, mesmo céu branco do desespero – pois, sim, o vigor extraordinário de Fuller é às vezes ensombrado por um pessimismo latente.

Por que Fuller, que não é evidentemente um cineasta do calibre de Ford, Lang ou Preminger, é tão cativante e mil vezes mais precioso do que um simples pequeno mestre? Por que ele é até mesmo indispensável? Moral clara e ao alcance da mão, tonicidade das ideias, amor exigente pelos grandes espíritos, temperamento incorruptível, economia da mise en scène: como Howard Hawks, Fuller é adstringente, ele lava o olho e o espírito de todos os falsos valores. Ambos colocam as ideias de volta ao seu lugar no mundo desafinado no qual vivemos.

À zero foi originalmente publicado na coletânea Samuel Fuller : Le choc et la caresse (organizada por Jacques Déniel e Jean-François Rauger), Paris, Yellow Now, 2017, pp. 270-275. Tradução : Luiz Fernando Coutinho.

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