Variações sobre “A árvore, o prefeito e a mediateca”




ou as pequenas histórias das grandes possibilidades perdidas

Por Serge Bozon

É possivel aquilo que não é necessário não existir”.
Leibniz

Preliminares, hipóteses e condições

Por que começar uma ou algumas historias pelo lembrança de um evento improvável sem o qual todo o resto não teria lugar? “Os sete acasos”, tal é o subtítulo do filme, sete acasos, ou melhor, sete cartelas, sete capítulos exatamente.

Capítulo um:Se, na véspera das eleições regionais de março de 92, a maioria presidencial não tivesse se tornado minoria...

Capítulo dois: Se Julien, após sua derrota, não tivesse bruscamente se apaixonado pela romancista Bérénice Beaurivage...

Capítulo três: "Se o salgueiro branco do terreno municipal não tivesse milagrosamente resistido ao assalto dos anos...

Capítulo quatro:Se Blandine Lenoir, redatora da revista mensal ‘Après-demain’, não tivesse, por inadvertência, querendo gravar o programa da France Culture, desligado sua secretária eletrônica...

Capítulo cinco:Se, na hora da fabricação da revista, Blandine não tivesse justamente ido acompanhar uma missão da UNICEF na Somália...

Capítulo seis:Se Véga, a filha do prefeito, não tivesse acidentalmente jogado sua bola no caminho por onde passava, por acaso, Zoé, a filha do professor...

Capítulo sete:Se um funcionário, seguindo a rotina ou seguindo ordens, não se mostrasse tão zeloso...

Nós que vimos o filme, podemos completar essas frases, mas com uma condição – gramatical, é verdade – como diria no prólogo, o professor Rossignol ensinando aos seus alunos os meandros das proposições subordinadas de condição. Na condição de concordar. Somente um enunciado no passado condicional ou “irreal” pode encadear esses inícios de frase que a narrativa é responsável por completar. Se Julien não tivesse se apaixonado, então ele não teria... Se Blandine não tivesse desligado sua secretária eletrônica, ela não teria podido...

Ao falar no condicional, eu falo de coisas que poderiam ter acontecido. Eu falo portanto de coisas que eram possíveis. Julgar moralmente uma ação implica saber se a pessoa em questão poderia ter agido de outra maneira, se ela poderia ter feito outra coisa diferente daquela que ela fez (“Eu poderia ter parado de me gabar”), se um evento não tivesse acontecido. O que é “poder” fazer algo? O que é uma capacidade? O fósforo pode queimar, a madeira pode dobrar, o fogo pode esquentar. É tão certo... Falar de capacidade, de possibilidade com relação a estas “disposições” físicas talvez não nos leve para o melhor caminho, o caminho das possibilidades rohmerianas. Na verdade é inapropriado dizer que o fogo pode esquentar pois não poderíamos dizer que ele pode não esquentar. Sua possibilidade é uma obrigação. Ele não pode não esquentar. O fogo não “pode” esquentar como uma jornalista “pode” esquecer de ligar sua secretária eletrônica. A primeira capacidade é “obrigatória”, a segunda não. Somente uma possibilidade “livre” nos indicará o lugar do acaso rohmeriano. Trata-se de limitar o que é possivel no cerne dos eventos, quando estes obedecem não mais as capacidades materiais das coisas (flexibilidade, inflamabilidade...), mas as hesitações dos personagens.

Imaginemos Arielle Dombasle, em um filme de Éric Rohmer, observando se aproximar da estação um trem atrasado. Ela sussurra a seu amante: “o trem pode ter sofrido um acidente.” Com isso, ela diz apenas que não sabe se não houve um acidente. Ela diz que ela não sabe nada. Tal situação nunca interessará a Eric Rohmer. O que seria necessário para o cineasta, é uma situação ligeiramente diferente. Imaginemos que Arielle Dombasle saiba que o trem chegou após ter percorrido seu trajeto normal. Ela dirá então uma nova frase, idêntica à precedente com uma nuance a mais, a nuance de um narrador: “poderia ter tido um acidente”. O narrador é o único a saber que aquilo que ele conta, mesmo que falso, poderia ter ocorrido (se...) Dizer que um trem pode ter sofrido um acidente quando eu não sei se houve um ou não, não é o mesmo que dizer que um trem poderia ter sofrido um acidente quando eu sei que não houve um. A narrativa, as mentiras e as histórias que contamos (para esquecer, para seduzir, para dormir...) começam unicamente com o segundo caso. Como diria Marion (ainda Arielle Dombasle) em Pauline na praia descobrindo aquilo que ela não pode admitir, sabendo finalmente aquilo que ela não pode crer (Henri preferiria Louisette): “Seria horrível demais!

O condicional é um tempo curioso. Quando eu escrevo, como Musset “Se eu fosse um grande artista, eu amaria os príncipes” é precisamente porque, não sendo um grande artista, eu não posso amar os príncipes. Como avaliar portanto a verdade do “se” em um condicional irreal, quando, por definição o antecedente (“se eu fosse um grande artista”) e a consequência (“eu amaria os príncipes”) são necessariamente falsos, descrevendo aquilo que não é passado, aquilo que não aconteceu, e nem vai acontecer? Como um condicional irreal pode ser verdadeiro quando sua própria natureza impede toda verificação direta? Nós só conseguimos observar aquilo que acontece no mundo, e não aquilo que poderia ter acontecido. Em uma palavra, como verificar uma possibilidade?

Se Éric Rohmer fosse Júlio Cezar, ele não estaria vivo no século XX”. “Se Júlio Cezar fosse Éric Rohmer, ele estaria vivo no século XX”. Os dois antecedentes afirmam a mesma coisa, porque a identidade é simétrica (se a = b, então b = a): Éric Rohmer = Júlio Cezar. E portanto, as duas consequências afirmam exatamente o contrário uma da outra, sendo elas simultaneamente verdadeiras! As duas frases são na verdade perfeitamente corretas. “É preciso que uma porta esteja aberta ou fechada” (nunca as duas coisas ao mesmo tempo) a regra parecia contudo irrefutável... O condicional é decididamente um tempo curioso. O tempo das primeiras histórias lançadas por brincadeira aos cúmplices de então: “Eu seria o ladrão, e você seria a polícia”.

Nós não observamos nada além do que acontece no mundo real. Como podemos então ser obrigados a saber o que aconteceria em situações possíveis não reais? Como verificar nossas hipóteses, e também como as diferenciar uma vez que em todo condicional irreal, o antecedente e a consequência são falsas, “falando” daquilo que não aconteceu? Dizer “se eu fosse rico, eu faria cinema como meu pai” implica que eu não sou rico e que eu não faço cinema, diferente de meu pai.

Imaginemos que, pelo gosto do paradoxo, Éric Rohmer dissesse hoje, em 1997, ao diretor geral do CNC “O presidente da república poderia ter sido de esquerda”. Sua frase, como muitas frases modais, é ambígua. Ela quer dizer que Jacques Chirac poderia ter sido de esquerda, ou ainda que alguém de esquerda poderia ter sido presidente, o que quer dizer, qualquer pessoa, contanto que esteja à esquerda (Jospin, Hue, Voynet...). No primeiro caso, nós nos “ligamos” a um indivíduo do mundo real que satisfaz a condição de já ser presidente e nós consideramos uma situação diferente possível. Mas é no segundo caso, mais esperado aqui, que o modo e o condicional abrem verdadeiramente um espaço de possibilidades múltiplas. Neste caso, a frase ambígua parte na verdade de diferentes políticos possivelmente presidentes em diferentes situações possíveis (a única coisa que conta é que esses múltiplos pretendentes sejam de esquerda). E essas situações possíveis são irredutivelmente múltiplas. Nada permite que se limite a um único indivíduo. Talvez mesmo a frase não vise nenhum homem de esquerda, estes não sendo “capazes” de governar. Éric Rohmer crê portanto que o presidente da república poderia ter sido de esquerda. Na primeira interpretação, ele acredita em alguma coisa sobre um indivíduo, mas não na segunda. A diferença é radical.

É um problema difícil. Como é que a declaração de um cineasta na qual “o presidente poderia ter sido de esquerda” pode ela visar um só fato (ser presidente) se a declaração não impede uma multiplicidade de pretendentes legítimos? Como pode existir um só fato para um número indeterminado de indivíduos? A resposta para os sete acasos[1] é simples. Existe apenas um fato, mas ele é realizável em diferentes “mundos possíveis”. Um mundo possível se define precisamente como um mundo segundo o qual uma possibilidade do mundo real é realizada. Esta possibilidade tão evasiva, indescritível, será assim entendida a partir da realidade, sendo que esta tambem pode ser “alternativa”. Trata-se de multiplicar a realidade para desvirtualizar o possível.

Ao invés de dizer “é possível que os cisnes sejam azuis”, nós diremos, como um roteirista que inventa uma história “no mundo x os cisnes são azuis”. Na condição de encontrar o mundo X, na condição de o escrever, o que quer dizer, de fazê-lo possível. A carga de potencialidade é reportada sobre o mundo satisfazendo a condição em questão, trata-se de criar mundos ao invés de criar hipóteses. Eu perguntava no início: como verificar o possível, como julgar a veracidade dos enunciados falando de coisas que, não tendo acontecido, poderiam ter acontecido, como compreender o “é possível que...” por um “é verdade que é possível”? A resposta foi dada. O que é possível é aquilo que é verdadeiro em um outro mundo (possível). Esses outros mundos não são mundos infinitamente distantes do nosso. Não importa o quão grandes sejam as distancias no tempo e espaço, só existe um mundo atual. O condicional irreal irá nos ensinar que um outro mundo não é um mundo infinitamente distante, mas simplesmente um outro mundo possível. As possibilidades não estão relacionadas às regiões mais distantes da realidade que estariam isoladas (pela distância) das nossas, mas às contrapartes da realidade.




O prefeito socialista, interpretado por Pascal Gréggory, acredita que “o Partido Socialista poderia ter ganho as eleições regionais em Saint-Juire”. O problema é saber se ele fala de si mesmo, unicamente de si. Ele pode na verdade, sem se dar conta, não estar falando de si mesmo. O PS poderia talvez ter ganho as eleições, mas com um outro candidato! Nada nos impede de entendermos a frase dessa maneira. Uma tal possibilidade, deixada obrigatoriamente em aberto pela sua suposição consoladora, aponta para a face escondida das crenças políticas desse simpático eleito, os contratempos trágicos de suas esperanças, o lugar de um possível e não perceptível complô lá onde o prefeito abre um espaço, em sua frase “O PS poderia ter ganho as eleições”. Os personagens de Rohmer não sabem até que ponto aquilo que eles dizem deles mesmos seria mais conveniente para os outros, os rivais, para quem eles também preparam o terreno. Decididamente, não sabemos nunca tudo o que dizemos enquanto estamos falando. Thomas Hardy havia apontado esta pequena falha, de forma geral, como a lei dos destinos excessivamente romanescos por não serem aqueles dos heróis de todas nossas histórias: “é uma loucura muito comum na natureza humana, vocês sabem muito bem, pensar que a escolha que não fizemos poderia ter sido a melhor, continua ela com uma doce solicitude acompanhando-a até a porta do quarto”. (Dois concidadãos).

Os mundos possíveis são como as hipóteses que nossas cartelas rohmerianas indicam cada vez que elas poderiam muito bem não terem se realizado, as outras histórias do nosso mundo. Basta converter cada frase das cartelas removendo o “se”, desmodalização da negação e passagem ao indicativo, e nós estaremos logo na presença desses mundos possíveis dos quais a história não encontrou um lugar, nos quais “nas vésperas das eleições regionais de março de 92, a maioria presidencial não se tornou uma minoria”; “Julien, após sua derrota, não se apaixonou bruscamente pela romancista Bérénice Beaurivage”; “o salgueiro branco do terreno municipal não resistiu ao teste dos anos”; “Véga, a filha do prefeito, não jogou acidentalmente sua bola no caminho por onde passava, por acaso, Zoé, a filha do professor”.

E não esqueçamos, finalmente, que esses mundos eram muito mais prováveis do que aquele que de fato aconteceu, porque Rohmer não deixa de sublinhar, a cada vez, a que ponto só um “acaso”, uma “inadvertência”, um “esquecimento”, um “milagre”, foi capaz de desviar o curso das coisas. A fórmula que abre a sinopse era “Tudo vai bem e continuaria indo melhor ainda, se...”.

A necessidade dos acasos, possível e impossível

Um evento impõe sobre a série dos fatos que ele interrompeu, e parece concluir, um desenho que nós acreditamos ser unicamente possível porque nós não conhecemos aquele que poderia o ter substituído.” Marcel Proust (A Fugitiva).

Se Blandine Lenoir não tivesse desligado sua secretária eletrônica.... Mas ela desligou. Se Julien não tivesse se apaixonado... Mas ele se apaixonou. E assim por diante. O que teria acontecido se ela não a tivesse desligado, se ela não quisesse gravar este programa de filosofia sobre o imponderável, se Julien não tivesse se apaixonado...? Os sete acasos foram por definição imprevisíveis e portanto seria necessário que eles tivessem acontecido para que os encontros, as decepções, os erros – em uma palavra a história – acontecessem. A possibilidade desses acasos é talvez tão livre quanto necessária (ao resto). Chamemos um desses acasos de “p”. Na comédia de Rohmer, se “p” é possível, então “p” se torna tão logo necessário. A comédia, ou melhor, a sequência de falhas involuntárias, assim exige contra as ambições de cada um. Se “p” é possível (por mais improvável que ele seja) então isso implica que é necessário que “p” seja possível. Azar do prefeito socialista que queria uma mediateca, da jornalista um artigo, do professor um combate ecológico, do Partido Socialista uma exclusão. A falta de ambições de cada um não transforma, no entanto, os personagens em brinquedos de um roteiro do qual a falsa despreocupação teria conseguido nos fazer esquecer, no espaço de um instante lúdico, a necessária rigidez final. Como em Renoir, em Estranhas coisas de Paris, são precisamente as derrotas que revelam a humanidade desses ambiciosos, não tendo medo de acreditar neles ainda após seus fracassos. O orgulho é o preço pago por suas derrotas. Éric Rohmer prolonga dessa forma, nunca colocando duas decepções consecutivas, a generosidade da sátira própria a George Meredith: “A Comédia, para combater nosso ceticismo, não se utiliza dessa lupa de relojoeiro, que, em seu círculo luminoso, destaca os mais ínfimos grãos de evidência. O espírito cômico distingue uma certa quantidade de personagens, dos quais as relações são claramente definidas, para na sequência rejeitar tudo que é acessório para se interessar exclusivamente aos personagens e a seus discursos: é uma Consciência, e ela se dedica a descobrir aquilo que, dentro do homem, vem da consciência. Todo seu mérito é feito de clarividência súbita e paixão. Nem por um instante, ele sonha em conquistar a vossa confiança” (O egoísta).

Arielle Dombasle, citadina se é que isso existe, afirma em uma sequência essencial do filme que: “o que as pessoas gostam na cidade, é a infinita possibilidade de encontros”. Ela fala, evidentemente, de encontros amorosos. Chamemos este enunciado “p”. Se “p” é verdadeiro, podemos sem nenhuma dúvida deduzir que “p” é possível. Um enunciado verdadeiro é pelo menos possível porque ele foi confirmado. O real é sempre possível. A prova já aconteceu! Mas se nós adotamos o ponto de vista do prefeito, o enunciado se torna falso. Ele é na verdade um defensor tão implacável do campo, sobretudo quando ele é um campo eleitoral, que poderíamos suspeitar de uma secreta nostalgia pelo direito da primeira noite do antigo regime, se as camponesas fossem menos feias (ironiza Arielle Dombasle). O campo não tem nada a invejar, para ele e matrimonialmente falando, das cidades. Se “p” é falso, “p” é ainda possível? Dizendo de outra maneira, a possibilidade não sendo nada além do que possível de ser verdadeira, se “p” (“o que as pessoas gostam na cidade, é a infinita possibilidade de encontros”) é falso, teria isso podido ser verdadeiro? Nada nos garante. Talvez “p” jamais poderia ter sido verdadeiro. Há erros “na sua essência”. Há enunciados necessariamente falsos (“dois mais dois são cinco”). Não se pode jamais desenhar um círculo quadrado. Recolocamos a questão: se “p” é falso, poderia ele ter sido verdadeiro? “Sim” responde Éric Rohmer, mas sua astúcia, a astúcia dos “sete acasos”, é diabólica. “Sim”, pois o fato de “p” ser falso é ele mesmo um acaso! Se é por acaso que “p” é falso, se a falsidade do enunciado pró-citadino é contingente, então é evidente que nós podemos concluir que “p”, mesmo que falso, continua ainda possível. A superioridade das possibilidades matrimoniais no campo, sendo um fruto do acaso, deixa ser possível que “o que as pessoas gostam na cidade, é a infinita possibilidade de encontros”. Se é por acaso que “p” é falso, então ele poderia evidentemente ter sido verdadeiro. O salgueiro do município tem “milagrosamente” resistido aos anos, então é falso que ele esteja com cupins, mas isso poderia ter sido verdadeiro, porque é um milagre! Chamemos “p” o enunciado “o salgueiro do município morreu”. “p” é falso aqui, no mundo do filme, mas isso é um acaso. Portanto, ele poderia ter sido verdadeiro. Então, ele continua sendo possível. Para dizer de outra forma, existe um mundo possível no qual “p” é verdadeiro. Ao invés de dizer “p” é possível, seria necessário escrever “'p’ é verdadeiro em um (outro) mundo”, e este outro mundo é possível, então “'p’ é verdadeiro em um mundo possível”. A possibilidade se verifica também, na condição de variar os mundos.





Um fato possível é um fato que, não tendo acontecido, poderia ter acontecido. O salgueiro poderia ter tido cupins. Um fato contingente é um fato que, tendo acontecido, poderia não ter acontecido. O salgueiro poderia não ter resistido à passagem dos anos. Um fato aleatório é um fato que poderia muito bem ter acontecido como não ter acontecido, quer dizer que é igualmente suscetível de ter acontecido como de não ter acontecido. As causas tem como natureza iniciar “alguma coisa”. Elas não são portanto incompatíveis com o acaso que não é nada além do que a falta de razões (de iniciar alguma coisa mais do que não iniciar nada). O acaso não é a ausência de causa, mas sim uma causa, a causa de tudo aquilo que é inexplicável, de tudo aquilo que tem igualmente razões de ser e de não ser. Toda a genialidade dos sete acasos está aqui. Aquilo que aconteceu é só contingente, aquilo que não aconteceu continua (ainda) possível.

Quando nós dizemos que um enunciado é necessário, nós não afirmamos unicamente que ele é verdadeiro. Imaginemos que Paul está com fome nesse momento. O enunciado “Paul está com fome” será então verdadeiro, mas não necessário, pois Paul poderia não ter tido fome. Sua fome depende de circunstâncias concretas e flutuantes. O enunciado em questão é verdadeiro aqui e agora, e isso é tudo. Ele não é necessário pois sua negação é possível: “Paul não está com fome” pode ser verdadeiro (em outras circunstâncias). O enunciado “Paul está com fome” não torna falso o enunciado “Paul poderia não ter tido fome” precisamente porque ele não é necessário. Um enunciado necessário é um enunciado que, pelo contrário, será verdadeiro em quaisquer circunstancias. É um enunciado que não é unicamente verdadeiro aqui e agora, em nosso mundo. Como o definir senão dizendo, como Leibniz, que não é um enunciado verdadeiro (unicamente) em nosso mundo, mas em todos os mundos possíveis. Peguemos o enunciado “Chove ou não chove”. Este enunciado de forma “p ou não p” será verdadeiro se chover (p) ou se não chover (não p). Qualquer uma das possibilidades verifica o enunciado. Imaginemos que esteja chovendo aqui ou em outro lugar, em nosso mundo ou em outro mundo. O enunciado é então verdadeiro. Imaginemos que não esteja chovendo, nem aqui, nem em outro lugar, em nosso mundo ou em outro mundo. Ele ainda é verdadeiro. E como não há uma terceira possibilidade entre a chuva e a ausência de chuva, o enunciado será verdadeiro em qualquer situação, em qualquer mundo. Imaginemos mesmo um mundo em que chover seja fisicamente impossível. O enunciado é ainda verdadeiro sendo que, a fortiori, será legítimo dizer “não chove”! Todo enunciado da forma “p ou não p” é não somente verdadeiro, mas necessário (não somente verdadeiro em nosso mundo, mas verdadeiro em todos os mundos possíveis).

Resta saber se é concebível propor possibilidades que não se realizarão jamais, as possibilidades “puras”. O professor pode ter verdadeiramente não se apaixonado por sua árvore? “digna de um Ruysdael” segundo seus próprios termos? O que nos garante isso? Uma possibilidade, uma vez que realizada, não só se torna verdadeira como necessária, porque é irrevogável. Como evitar de destruir a possibilidade diante do peso que trás o presente? Como diria Leibniz, se nada fosse possível para além daquilo que Deus efetivamente criou, então o que Deus criou, e do mesmo modo as coisas contingentes, seriam necessárias. No entanto, outras coisas seriam possíveis. Mas como provar? Qual é a “reserva” do possível?

A aposta da sorte: provável e improvável

Nada obriga algo a acontecer apenas porque outra coisa aconteceu. É uma necessidade apenas lógica”. Wittgenstein.

Sobre a difícil questão da reserva do possível, Minha noite com ela já soube responder. Só uma aposta poderá contrabalancear as incertezas do acaso sem “esgotar” o possível. Lembremos desse plano de uma obra sobre as possibilidades matemáticas, em Minha noite com ela, mas também do documentário de Éric Rohmer sobre os jogos de salão. Seja numa aposta de cara ou coroa onde cada jogador coloca um franco, e o ganhador fica com tudo. A “esperança matemática” da aposta é a soma de dois eventos, o abandono da aposta inicial, já certo (a obrigação de perder um franco: 1 x –1) e o ganho da aposta, provável (uma chance em dois de ganhar dois francos (1/2 x 2). O que dá -1 +1 = 0. A aposta não era vantajosa, mas simplesmente equitativa. Ela não valia a pena. Em A árvore, o prefeito e a mediateca, a aposta do editor chefe, autorizado talvez pelos “elefantes do Partido Socialista”, é mais complicada. Como ele poderia prever que a jornalista Blandine seria fisgada pelo charme do prefeito socialista, e portanto iria entrevistá-lo, assim o permitindo traficar seu artigo enquanto ela seria enviada “por acaso” ao estrangeiro, arruinando assim o projeto, senão toda a ambição do perfeito? (Essa conjuntura maquiavélica, considerada na abertura do primeiro capítulo e no encerramento do último, termina, evidentemente, sendo apenas hipotética). Como ele poderia prever eventos tão improváveis?

Chamaremos “p” qualquer uma dessas hipóteses maléficas. O conjunto mais ou menos grande de possibilidades de “p” ser realizado define seu “espaço de liberdade”, segundo os termos de Johannes von Kries. A primeira opção que torna possível um cálculo de probabilidades, é que os diferentes eventos possíveis englobam os “espaços de liberdade” comparáveis. Esta condição é preenchida por exemplo no caso do jogo de dados, porque a quantidade dos arranjos que levariam como resultado 1, 2, 3, 4, 5, 6, são todos iguais. Os seis “complexos” são da mesma grandeza. 1 tem as mesmas chances de cair que 2, que tem as mesmas chances de cair que 3, que tem as mesmas chances de cair que 4, que tem as mesmas chances de cair que 5, que tem as mesmas chances de cair que 6. “Por consequência, atribuir as possibilidades iguais aos seis resultados possíveis é como dividir o espaço de liberdade total que é próprio do comportamento do dado em seis partes iguais, dos quais cada um corresponde ao conjunto de combinações de circunstancias diversas, que, se realizadas, levarão ao resultado considerado.” (Johannes von Kries) É impossível de imaginar uma causa que, após um longo número de jogadas, poderia conferir um privilégio durável a um dos resultados possíveis, a menos que o dado não esteja viciado... Esta condição de igualdade dos “espaços de liberdade”, evidentemente não é levada em conta pelo cálculo do editor chefe. Não há mais nem moeda (com dois lados), nem dado (com seis faces). Como cantavam Elli e Jacno em Noites de lua cheia, já antecipando a impossibilidade de confiar, em nossas vidas, no acaso: “os dados estão viciados”. Será portanto impossível para o editor chefe de especular com relação a seus projetos nefastos, sobre uma probabilidade de condições iguais para cada um dos eventos possíveis. Blandine pode se tornar indiferente ou amorosa, raivosa ou simpática... Ela pode tanto tanto entrevistar o professor quanto não o entrevistar... E nada pode garantir ao editor chefe que outros eventos possiveis, os quais ele nem mesmo pensou, não se realizarão. Talvez, por exemplo, que o envio de Blandine ao estrangeiro, acontecerá antes da entrevista, a impedindo assim de escrever seu artigo. O editor não pode portanto calcular as chances de realizar seu complô. Ele não calculou, ele apostou. Toda a diferença está aqui. O acaso o impede de dominar as condições de realização de seu projeto e a totalidade dos eventos possíveis, só o resta apostar (sobre o improvável).




Imaginemos que o mundo seja analisável em “eventos” e em “consequências”, uma aposta sendo a aplicação de um evento distinto ao conjunto das consequências. Apenas tal hipótese irá novamente dar alguma consistência ao enredo aparentemente inviável do editor chefe pois, contrariamente aos costumes e ao enredo pascaliano de antes, ela define a aposta antes da probabilidade. Não trata-se mais de apostar em eventos em função de suas probabilidades, pois o editor chefe não dispõe de um conhecimento real delas. O apostador não dirá mais algo como “Se eu tiver duas chances de cinco, eu tento”, mas diretamente “eu tento”, não conhecendo a probabilidade exata dos eventos em jogo. A aposta é “pura” pois cabe precisamente a ele (unicamente) de distribuir no espaço de suas consequências, suas próprias chances de conseguir. Trata-se de definir a probabilidade de acerto (incalculável antes da aposta), pela aposta em si, considerando suas consequências! O evento A não será mais provável que o evento B, se a consequência da aposta no A tem um valor inferior ou igual à consequência da aposta no B. As peripécias do editor é na verdade, e eu já disse, uma aposta sobre possibilidades elas mesmas aleatórias (como ter certeza de que alguém se apaixonará por uma pessoa?). Em uma partida de cara ou coroa, há unicamente dois eventos virtuais possíveis, o que supõe uma perfeita simetria. Entretanto, nós sabemos que falta uma tal simetria nos meandros dos acasos de nossa história. É por isso mesmo que trata-se de se colocar duplamente na aposta. É preciso apostar não apenas nas chances de vitória mas também nas possibilidades da sorte. Só uma aposta pode tornar os eventos prováveis apesar da dissimetria do acaso. Como dira Gaspard de Conto de verão, aceitando, no prazer distorcido do orgulho, essa entrega à aposta “Eu não gosto de provocar o acaso, mas eu gosto que o acaso me provoque”.

Que uma jovem escolha se casar e reivindique esse casamento para a eternidade não é a essência nem a origem de Um casamento perfeito. O que incomoda Rohmer é que ela poderia ter escolhido não se casar, em outra época, com exatamente a mesma certeza absoluta. A escolha não é ocasional, ela é aleatória, porque ela deve se repetir, mas nunca de forma idêntica. Esse deslocamento muda tudo quando se trata da ideia da causa de um evento. Dizemos que um evento A é a causa de um evento B quando B acontece se A acontecer. O que supõe que A e B são passiveis de repetição. Não podemos falar de causa quando se trata de um evento único, porque nada permite verificar que B acontecerá de novo se A acontecer. A só é uma causa de B se A sempre ocasionar B. Mas qual será a causa então desses eventos que acontecem somente uma vez na vida, eventos mais “eventuais” do que outros (primeira comunhão, formatura, primeira desilusão amorosa...) eventos romanescos por excelência, eventos únicos? François Truffaut não gostava de filmar adolescentes por uma única razão, “tudo que eles fazem, eles fazem pela primeira vez” ? Se A só ocasiona uma vez B, quem nos garante que não se trata de um acaso, que não é por causa de um outro fato, de uma outra razão? A mesma questão, a questão rohmeriana por excelência, insiste ainda e sempre: como ter certeza? O mistério de eventos que são tão únicos para que possam ter sido causados, são eles mesmos um falso mistério. O verdadeiro problema em Rohmer tem menos a ver com a primeira vez do que com a segunda. A repetição, mais do que a ocorrência única, deixa na verdade uma liberdade muito particular e profunda ao acaso.

O acaso não é a ausência de causas, pois temos sempre uma razão para nos casarmos, mesmo que tenhamos também tão boas razões para não nos casarmos. O acaso é o fato de que a regularidade das coisas e dos eventos é apenas estatística. Todo o mistério da escolha está aqui. A característica de uma declaração estatística como “90% das pessoas de um determinado país têm tendências a sucumbir à uma certa tentação”, é que ela nada diz a respeito do evento individual, que no caso é a tentação de cada indivíduo. O enunciado não exprime um fato, mas a média de um conjunto de fatos. Ele apresenta então a extraordinária particularidade de se aplicar aos indivíduos considerados como os elementos de uma classe (“as pessoas de tal país”) ao mesmo tempo em que não se aplica a ninguém dentre eles em particular. Essas leis governam o comportamento do indivíduo no primeiro aspecto (membro de uma classe), sem em nada governar seu comportamento individual, o deixando livre para sucumbir (ou não) à tentação, e por todas as razões que ele desejar. Mas como elas podem reger um comportamento “sem tocá-lo”? A lei da estatística não nos diz a causa dos eventos individuais e das escolhas. O que resta de um comportamento quando eliminamos sua individualidade? Nada, estaríamos tentados a responder. As estatísticas e a sociologia rohmeriana são decididamente fascinantes (“Quem tem duas mulheres perde sua alma, quem tem duas casas perde sua razão”). Parece no entanto muito difícil de exprimir o que elas nos ensinam. Sua legalidade geral torna a causalidade supérflua. Ou mais ainda, o que a ideia de causa de um evento, a razão de uma escolha, adiciona as regularidades estatísticas, nós não saberemos jamais. Em Rohmer, o conflito não acontece entre o acaso, o determinismo e a escolha moral, mas entre o provável, o aleatório e a escolha moral. Pois perguntar se um evento poderia não ter acontecido não é a mesma coisa que questionar se a causa fosse do tipo (estatístico) X ou Y. Respondendo a segunda questão, deixamos a primeira sem resposta. Pouco importa se ignoramos as causas, o essencial é que elas variam pouco. Indo nesse sentido, as escolhas dos heróis de Rohmer são ao mesmo tempo aleatórias e absolutas.

Dolorosas certezas e confiantes incertezas: a duplicidade do “se”

Só porque você é amiga de um garoto não significa que você não estaria tão sucetível quanto se estivesse apaixonada” (Conto de verão)

O fósforo pode queimar. Ele queima se o riscarmos. “Poder” alguma coisa, é a mesma coisa que fazer alguma coisa se (uma condição é preenchida)? Nossas grandes leis da natureza teriam assim irredutivelmente necessidade do condicional, do tempo do possível. “Se a pedra não tivesse sofrido a atração terrestre, ela não teria caído.” O que afirma uma frase como “se eu risco um fósforo, ele deve acender” senão que um fósforo é inflamável? Falar do possível, contar histórias do possível, poderíamos fazer isso evitando os meandros e os paradoxos do “se” dos sete acasos, substituindo esse “se” por capacidades, por disposições (irritabilidade, inflamabilidade, simpatia, flexibilidade...). Além das propriedades observáveis das coisas, dos eventos, dos fatos e gestos, haveria também tudo aquilo que pode acontecer, as ameaças e as promessas. “Se dissolver” é verdadeiro para objetos que possuem a propriedade atual de desmanchar, quando eles são imersos na água, de um estado sólido tangível, a uma parte visualmente inseparável do todo líquido. “Solúvel” por outro lado, é verdadeiro para objetos que possuem uma propriedade mais estranha, que é ao mesmo tempo potencial e antecipada. Mas como diferenciar as coisas virtuais das coisas reais, como diferenciar as capacidades dos atos? Dizer que uma coisa é dura, é talvez tanto um enunciado de potencialidade quanto dizer que ela é flexível. Um objeto flexível é um objeto que pode dobrar sob suficiente pressão, um objeto duro é um objeto que pode resistir à ação abrasiva de outros objetos. Se dizer que um objeto é flexível é afirmar que ele sempre se curva quando uma pressão suficiente é aplicada sobre ele, nada nos impede então de sustentar por flexível um objeto que não dobra, supondo simplesmente que uma pressão suficiente nunca lhe foi aplicada. Talvez, todos os objetos sejam flexíveis.

Se tudo que acontece tem uma causa precedente, uma vez que a causa seja produzida (o telefone desconectado, a bola jogada, as eleições perdidas...), a coisa em si deve acontecer e nada mais poderia acontecer. Uma vez que a causa seja “provocada”, nada além do que aconteceu poderá acontecer. Só o real foi possível. Como escreveu T. S. Elliot no primeiro de seus Quatro Quartetos, “what might have been and what has been point to one end, wich is always present”. Tal variação de potencialidades não poderá nunca ser evitada se identificamos o “poder” com a realidade condicionada, ou com “fazer se”. O erro (do determinismo) estava aqui. Seria necessário não confundir “Eu poderia se eu tivesse decidido” e “Eu teria feito se eu tivesse decidido”. Seria necessário não entender “eu posso” como “eu faria se”. Seria necessário não acreditar que todo “se” é causal. Em alguns casos, o “se” define bem a condição necessária e indispensável, em uma palavra, a causa, aquilo que ela torna possível, mas não em todos. Da frase “posso me espremer se for magro o suficiente”, não é possível de deduzir “posso me espremer sendo magro ou não”, e ainda menos “posso me espremer” simplesmente. Neste caso, o se é causal. Ele é a condição de uma possibilidade (se espremer). Nesse caso “eu posso” é equivalente à “eu faria se”. Enquanto que, por exemplo na frase “eu posso fazer, se eu decidir”, é legítimo de deduzir que “eu posso fazer, decidindo ou não”, então “eu posso” simplesmente. O fato de não decidir não me impede de poder. Todo “se” não é portanto casual.

Se eu não sou magro, eu não posso me espremer enquanto que se eu não me decido, eu sempre posso ainda (me decidir). As hipóteses alternativas indicadas pelas cartelas em nosso filme não são “apagadas” pelo que o filme conta, precisamente por essa razão. O “se” não é causal, apesar das aparências. Como entender tal sésamo, como entender esse jogo de dados que abre as narrativas de A árvore, o prefeito e a mediateca? Tudo acontece em torno da primeira palavra de cada cartela, o “se”. É verdade que essas cartelas definem as causas improváveis que ocasionam a história. Mas são apenas cartelas que chamam atenção para uma condição, a possibilidade do que aconteceu. Mas o que aconteceu, essas cartelas não dizem. É preciso ver. São as cenas efetivas da história que substituem os pontos de suspensão. É o próprio filme que completa cada uma das cartelas. Ele não as deixa em seu estado original. Toda a força da mise en scène rohmeriana, é precisamente transformar esse “se” causal (sem “x”, não poderíamos ter “y”) em um “se” mais perturbador e mais livre. O espectador não pensa mais nessas hipóteses, ele assiste simplesmente as aventuras ao mesmo tempo leves e absurdas. Poderíamos dizer desse espectador aquilo que Stendhal escreveu sobre Julien Sorel: “Sua imaginação se extinguiu pelo cálculo dos possíveis.” Não unicamente as hipóteses são substituídas pelos fatos (que as dão razão), mas elas mesmas são contaminadas pelas incertezas do presente, pela indecisão do tempo que passa, que comunica em cada plano a mise en scène de Éric Rohmer. Nas cartelas o “se” é causal. Mas não no filme. O “se” no filme é – eu acredito – o mesmo que em “tem biscoitos na mesa se você quiser” de onde podemos deduzir “tem biscoitos, caso você queira ou não”, portanto “tem biscoitos” simplesmente. É um “se” que não é casual, quer dizer que ele não hipoteca a possibilidade de um evento sob uma condição causal. Um “se” que deixa ao possível uma dimensão iredutível à realidade, um “se” que aponta para essa reserva do possível buscada mais acima.

Entendemos melhor portanto porque “poder” é um verbo que não tem imperativo. Se ha de fato uma ordem que ninguém será considerado culpado por não obedecer, é “Pode!”. O possível não é um fato do qual falta uma causa, uma condição. “Eu posso fazer A” não quer dizer que “eu faria A se”. Uma possíbilidade não é simplesmente algo potencialmente factual se (tais ou tais condições forem relizadas). Não é o “se” do condicional causal, mas um “se” de hesitação, o “se” de um convite cordial, do pudor maligno e da esquiva amorosa: “Você pode, se você deseja”, portanto “você pode, desejando ou não”, portanto, “você pode”. O “se”, arma sagrada dos homens políticos prudentes, sabe muito bem evitar a franqueza causal (quando é preciso), acomodando assim os inconciliáveis. Quando Jean-Louis Debré declara, sobre as informações que implicam seus amigos “estou surpreso, e se as informações se confirmam, indignado”, portanto, ele ao mesmo tempo já está indignado (para a opinião pública) e na espera de ficar (para seus amigos). Entre estar indignado ao mesmo tempo que não estar, somente um “se” politicamente duplo, e portanto não causal, pode permitir.

Os heróis de Éric Rohmer acreditam poder se orgulhar de não ter cedido à uma jovem garota que, na verdade, talvez nem os desejasse. Essa cena primitiva da crença masculina define uma estranha e recorrente estratégia, de Minha noite com ela à Conto de verão passando por A Colecionadora... Perspicazes diplomatas da conquista amorosa, certos de que pensam em tudo e de que nada deixam ao acaso, eles se parecem com um especialista do xadrez jogando exatamente “como se deve”, com todas as jogadas à sua disposição, com todas as nuances. Ele deixaria a mão sobre a peça deslocada. Pensando ter conseguido um movimento irresistível, ele na verdade não teria feito jogada nenhuma. Ao se proibir de ir até o final com aquilo que eles avançam (peões, desejos, cantadas), os heróis de Éric Rohmer obedecem apenas uma única coisa, e que é suficiente para eles (azar o deles), a certeza a priori de ganhar em todas as jogadas, porque eles não podem perder. Para poder perder, é preciso levantar a mão.




Já há muito tempo o cinema de Éric Rohmer nos ensinou a não mais procurar causas, mas estipulações, hesitações, concessões, pois não há mais possibilidades no “poder” do que no “fazer se” (tal ou tal causa está presente). O “se”, dentro do filme, não liga um antecedente à um consequente como uma causa à seu efeito. A capacidade, como a hesitação amorosa, escapa da condição causal. A ausência de meios é uma economia, mas não somente de dinheiro. O que o produtor Éric Rohmer economiza são as certezas, pois sempre temos muitas certezas no cinema, e uma filmagem não coloca à disposição nada além do que disponibilidades. O "se" não escrito dos planos libera uma potencialidade que não está mais sob condição. Ele libera uma potencialidade teatral, quer dizer a possibilidade para cada ator de “abrir o jogo”,de variar não os fatos, mas as expressões dos fatos. Como diz de forma magnífica o herói de O joelho de Claire, em uma frase profundamente kleistiana, “esse gesto que eu acreditava ser um gesto de desejo, ela o considerou como um gesto de consolação”. Como não pensar na modalização final de A Marquesa d’O: “Jamais ela o havia observado como um demônio, naquele dia, se ela não o tivesse visto como um anjo durante sua primeira aparição”?

Falsas crenças e ficção

Não conseguíamos pensar em nada” (trecho de A mulher do aviador)

Ao observar Natacha suspeitando que Eva lhe tinha roubado uma joia, Jeanne pergunta a si mesma se Natacha não seria uma mentirosa e “casamenteira”, por amor ao seu pai, à quem ela se destinaria. Essa é a premissa de Conto de Primavera. Quem está errado? Quem está mentindo? O espectador assiste alguém que acredita. Não vemos o que Natacha pensa, mas aquilo que ela faz acreditando nos seus próprios atos. E se começamos a acreditar nela, vemos também aquilo que ela acredita ver. O que é acreditar em alguma coisa? Às vezes é cansativo pensar, mas nunca é cansativo acreditar. Certamente a Rainha Branca de Lewis Caroll dizia poder se cansar acreditando intensamente todos os dias antes do café da manhã. Mas é preciso reconhecer que a Rainha Branca era atípica. Como compreender essa diferença entre o pensamento e a crença? Pensar é uma atividade que, como toda atividade, pode ser cansativa. Acreditar, não sendo jamais cansativo, talvez não seja nem mesmo uma atividade! Crer seria então mais uma disposição do que uma atividade. Se é possível ter maus pensamentos, não é possível ter uma má crença. A “bruxa” de Dies Irae encarna eternamente o paradoxo dessa culpabilidade impossível. Ninguém tinha o direito de condenar a heroína. Não se pode ter uma má crença. A crença, sendo ela católica ou demoníaca, é sempre (obrigatoriamente) inocente. Ela tem a inocência de uma disposição.

Repitamos a questão de Conto de Primavera: o que é acreditar em alguma coisa? Se uma crença é verdadeira, alguma coisa de real deve corresponder a ela. Vamos chamar essa alguma coisa de fato, como por exemplo o roubo de uma joia. Mas se esta crença estiver errada... O que diremos? Estaríamos tentados a dizer que nesse caso nada corresponde a ela. Nenhum fato pode ser objeto de uma crença falsa. Uma crença é falsa precisamente quando nada corresponde a ela. Sabemos que a mentira sempre fascinou Éric Rohmer. Para além da mentira, contudo, reina o erro traiçoeiro, ou mais precisamente as crenças erradas. E os mentirosos seriam herois se não houvesse ninguém para acreditar neles. “Se só pensarmos nos julgamentos verdadeiros, a ideia que eles têm dos objetos é plausível: um fato que nós descrevemos como ‘A morte de Charles I na guilhotina’ pode ser utilizado como objeto de julgamento ‘Charles I morreu na guilhotina’. Mas qual é o objeto do julgamento? Charles I morreu na cama? Não existiu o fato ‘a morte de Charles I na cama’” (Bertrand Russel). Tudo isso é evidente. Exceto por um enigma, aquele de Conto de Primavera. Pois se nada corresponde a uma crença falsa, então torna-se impossível de responder a uma questão inevitável: o que acreditamos quando nossa crença está errada? Se nada corresponde a ela, a crença falsa se torna sem objeto, portanto, não é uma crença. Se a crença não é a crença em nada, ela em nada é uma crença. E, contudo, ninguém pode negar que Natacha crê em “alguma coisa”, mesmo que ela esteja errada. Parece existir somente uma maneira de sair desse impasse, dizer que uma crença tem sempre um objeto, este objeto sendo, se a crença é correta, um fato (o roubo da joia por Eve) e, se a crença estiver errada, ... como chamaremos o equivalente do fato para as falsas crenças? Russel propôs um nome muito simples para o objeto das crenças erradas: “ficção”. O fato e a ficção são os únicos objetos possíveis de nossas crenças, sendo que nossas crenças não podem ser nada além do que verdadeiras ou falas. A ficção, é aquilo que devolve para a crença sua possibilidade, mesmo quando esta crença é errada. A ficção, portanto, não seria definida pela história, pelos personagens... mas por aquilo que ela torna possível, acreditar em coisas falsas.

Havia um tempo em que eu pensava que existiam ficções, mas me parece hoje pouco plausível que tenha existido, além de fatos, coisas tão fantásticas como ‘hoje é quarta-feira’ quando na verdade é terça” (Bertrand Russel). Não seria melhor abandonar a ficção ao invés de criar um objeto (um objeto de crenças falsas)? Não, “não seria melhor” pois, acreditar em coisas que não foram possíveis, mas que quase foram (se...), nós temos essa necessidade de um outro mundo (possível), nós temos essa necessidade por uma única razão. “Não somos nem tão orgulhosos nem tão felizes quanto poderíamos ter sido” (Friedrich Nietzche). Não, não seria melhor pois, um filme de Rohmer talvez seja isso. “Hoje é quarta-feira.” Então, vamos ao cinema.

Philosophical guest stars: Nelson Goodman, W.V. Quine, Saul Kripke, Jaako Hintikka, Hilary Putnam, David Lewis.

[1] NdT: Os Sete Acasos (Les sept hasards) é também o título alternativo, em francês, para árvore, o prefeito, e a mediateca.

Variations sur L’arbre, le maire et la médiqthèque foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°1, outubro de 1996. Tradução: Evandro Scorsin.

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