As feridas do macho


Sobre Harvey Keitel

Por Philippe Ortoli

Sedutor devorado por uma paixão absoluta por Kate Winslet, Harvey Keitel, em Fogo sagrado!, atua sobre uma corda que ele jamais cessou de esticar: a de um homem que, fazendo do seu corpo o berço de uma dúvida permanente, termina por queimá-lo como uma forma de expiação.

Quando ele chega no aeroporto, com suas botas, sustentando seu passo rígido, P. J. Waters, especialista em desencantamento, parece um verdadeiro cowboy; quando, no final, com vestido vermelho, maquiagem e pés nus enlameados, ele rasteja em frente a Ruth (Kate Winslet), ele é apenas uma drag queen pateticamente apaixonada. Entre essas duas imagens, nós seguimos o itinerário de um corpo em direção à destruição de sua suposta solidez, o de Harvey Keitel: o ator retorna ao universo de Jane Campion depois de O Piano, para efetuar um novo jogo de chacina da figura do macho americano. Alguns acharão caricatural, multiplicando os signos exteriores do dilaceramento (choros, gritos, tripudiadas, cair por terra), mas a angústia transmitida por esse físico de impávidas aparências não é um simples exercício de estilo para os adeptos do exibicionismo: é a expressão de um mal-estar.

Esse mal-estar é primeiramente o de um tipo, o herói americano que fez da retidão postural e da firmeza de uma marcha um eloquente substituto do falo. Mas ver nesse despedaçamento sistemático um puro e simples ato masoquista em que se pode ler a (já antiga) crise de identidade do macho é singularmente redutor. A ferida encarnada por Keitel não é apenas assimilável como uma questão sexual. Claro que ele joga com um corpo de uma ambivalência reivindicada, de uma carga erótica evidente: frequentemente nu na tela, a valorização do seu busto (em O Piano ou em Vício Frenético) alia uma montanha peitoral extremamente desenhada a um ventre de generosa circularidade inclinando para quadris mais largos: essa mistura do ângulo e da curva determina um ser entre anima e animus, entre feminidade circular (ele ama dançar, se enroscar ou envolver) e virilidade cortante (ele pode matar, espancar ou despedaçar) que o consagra homem do entremeio.

Mas essa ambivalência não se limita a essa dimensão: de forma mais geral, o ator está no cruzamento das duas tipologias de atuação que distinguia Moullet em Política dos atores: o underplaying, ou uma atuação mais contida (da qual Gary Cooper e Clint Eastwood seriam os representantes mais ilustres), e o overplaying, uma superatuação frenética (Jack Nicholson compõe as melhores demonstrações), que ele intercala no seio das suas próprias criações. No primeiro contato, Keitel é frequentemente sóbrio: de Cães de aluguel à Caminhos perigosos, ele adora se apresentar como uma silhueta que evolui com grande confiança, implicando gestos comedidos e falas parcimoniosas, a própria fantasia do profissional hawksiano. Mas há sempre um momento da obra (mesmo longamente maturado como em Fogo sagrado!) em que ele romperá essa sobriedade, distenderá seus traços e confessará, nos movimentos mais extremos, sua ferida interior: são os soluços em Vício Frenético ou em Um olhar a cada dia, as explosões de desejo em O piano, as crises de violência em City on fire ou em Alice não mora mais aqui, as tendências sado-masô em A ordem é matar (surpreendente filme policial de Roberto Faenza, 1984). Essas idas e vindas incessantes entre esses dois registros acabam, por efeito, resultando numa reflexão sobre a economia expressiva do ator americano, entendida geralmente como um sintoma de sua legitimidade heroica, que se torna, em Keitel, a síndrome de um recalque. Essa última não é apenas a de um passado sombrio: ela condensa pulsões de morte, desejos sexuais e, mais em geral, uma infinitude de vertentes autodestrutivas.




Nessas composições que consagram essa emergência regozijante do reprimido, o sentimento de provocação predomina. Podemos efetuar um paralelo com Brando, que procura sempre dilacerar o clichê de papel crepom que O selvagem tinha estruturado à espreita, entre A caçada humana ou O último tango em Paris, dos sinais de uma mutilação metafórica. De fato, a dúvida transmitida pela atuação de Keitel, ator desestabilizante se for, é tipicamente cinematográfica: trata-se da dúvida de uma criatura que luta com um envelope exterior muito pesado para assumir e que busca, assim, colocá-lo em perigo custe o que custar. Eis seu verdadeiro calcanhar de Aquiles: Keitel cria personagens apenas para melhor proclamar o quanto eles sufocam. Ele perscruta, persegue, grita sua sede do absoluto na tela relativa na qual se exibe sua estatura. Ele é a oscilação permanente, o desequilíbrio-encarnado, sempre na busca de um lugar para se colocar, sempre na espera de uma decolagem: seu famoso olhar fixado no fora de campo parece ser um convite permanente a não se limitar ao cenário...

Paradoxalmente, esse corpo é muitas vezes o porta-voz de uma instituição (o exército em Os duelistas, a polícia em Vício Frenético ou o meio ítalo-americano em Caminhos perigosos), da qual ele encarna a autoridade, para logo fazê-la cair para o lado do incongruente, do desvio, da paixão. Se entrega então a esse rosto fechado no seu mutismo a complexidade de um combate sem piedade, esse que um corpo deve liderar para se liberar dos preconceitos que a ordem moral (e o grupo social que a emite) dispôs em torno dele. Essa temática prometeica está no cerne do ator, pois essas tentativas de restaurar a primazia do desejo sobre as exigências do dever abordam a própria questão da sua função. Efetivamente, para além do seu lado tangível, é a libertação que é buscada, a da máscara, e quando ela é concedida, ela só pode ser acompanhada por um sofrimento, pois não se quebra impunemente a lei da máscara: essas diversas escarificações com ares sacrificiais (a obsessão pelo fogo que acaricia em Caminhos perigosos, o prego cravado no lábio em Quem bate à minha porta, o consumo de drogas em Olhos de serpente e Vício frenético), são as provas inscritas na carne para aceitar que os transbordamentos pulsionais ou afetivos o façam alcançar a transcendência. A superfície física se contorce, urra sua dor, grita seu desejo, chora sua imperfeição, e, com ela, a ordem que ela representa se racha e deixa filtrar o ser humano, perdido, atordoado, procurando um lugar impossível.

Exteriorizar assim o pecado e sua redenção (servindo, nesse sentido, às obsessões de Scorsese e de Ferrara, sem dúvida os cineastas que mais contribuiram para gravar a imagem saint-sulpiciana do ator) é, claro, representativo do Actor's Studio, onde o ator foi aluno (como DeNiro, aliás), mas Keitel não é redutível a uma escola, por mais prestigiosa que ela seja. Sua busca permanente pela emoção (ou pela postura, ou pela cena) inédita fazem dele um ator à parte, sempre surpreendente, sempre fascinante: Fogo sagrado!, que o mostra travesti, sujo, e humilhado, confirma que essa tendência é uma vontade deliberada. Lembramos então de seu ar suave de cowboy no início de Alice não mora mais aqui de Scorsese, repentinamente pulverizado pela brutalidade com que ele esmagava uma porta de vidro para espancar sua esposa! Ou do contraste impressionante entre a retidão de sua silhueta de descrente e o fervor de seus abraços no Jesus-Willem Dafoe em A última tentação de Cristo! Keitel só se destaca na quebra do ritmo, na mudança de regime, no sinusoidal puro, e a atração perturbada que ele exerce depende dessa complexa alquimia: ser fundamentalmente desequilibrado, ele só impõe certezas para as abalar. Mas o ponto de impacto em direção ao qual tende esse físico, o além que ele perscruta, que consistência tem? Poderíamos dizer que é Vício Frenético que oferece a visão mais justa (nos dizeres de Scorsese, o ponto culminante de Keitel) através da figura do Cristo que vem oferecer a salvação ao policial maculado: a natureza desse olhar inquieto se revela. Ele procura um outro que possa ajudá-lo a encontrar o seu lugar, a se definir, a salvar o seu ser.

Esse olhar não saberia surgir da ficção: é por isso que é preciso retorcer essa última, desviar violentamente as regras dos gêneros nos quais ela se atola, não respeitando as cenas impostas, habitando-as com uma ironia ou com um distanciamento sempre perceptíveis, que subentendem a desilusão latente daquele que não quer mais participar desse mundo, que não quer mais arrastar seu arquétipo, mas, coagido e forçado, se esforça então para dinamitá-lo por dentro. Cães de aluguel, e toda a dicotomia entre o figurino preto do killer e as lágrimas que lhe assaltam, segue essa metáfora. Mas é igualmente o caso de Caminhos perigosos, de Thelma e Louise ou de Irmãos de sangue, nos quais se fissura o verniz protetor e onde o corpo, ao mesmo tempo orgulhoso do seu poder e desconcertado pelas suas potencialidades, procura no olho do espectador a resposta às suas perguntas... Mártir do reino da imagem, ele nos direciona uma súplica crucial: entre as restrições da máscara e os imperativos das pulsões, como se constituir? E onde é preciso ir para esquecer o peso desse pecado da individualização que nos condena a uma forma enquanto apenas sonhamos com o céu? Compreendemos então a ressonância dos encantamentos quase licantrópicos de suas criações: porque Deus está morto, é preciso ir procurá-lo no fundo do seu peito. Raramente o trabalho do ator se beneficiou de uma ilustração tão impressionante...

Les déchirures du mâle foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°13, primavera de 2000. Tradução: Letícia Weber Jarek e Miguel Haoni.

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