Sobre Titanic, de James Cameron
Por Camille Nevers
Carta aberta, 28 de abril de 1998
(“E o vencedor é”)
Agora se trata de um fenômeno, se é que ele já foi outra coisa além disto, um fenômeno. Uma sensação forte. Um grande sintoma, uma moda. Um entusiasmo de tal modo considerável... No fundo, o que queremos? O filme universal? – nós o temos, é fato, sigamos em paz.
Entretanto. Aqui, no pequeno aqui da Lettre - quer dizer, minúsculo em relação à unanimidade planetária, nós não amamos Titanic, não lhe teríamos dado importância e nem teríamos insistido, sabendo que a multidão amorosa é a primeira a não se importar com o que pensamos. (O triunfo paga o pato). Teríamos ouvido tudo sem retrucar. Se nós intervimos agora, é por força das circunstâncias, porque terminamos saturados; e aí, na realidade, não estamos sozinhos.
O triunfo de Titanic permanece um dado objetivo, numérico. Nesta medida precisa ele interdita formalmente que contestemos o filme, que o critiquemos, que ele sofra de contradições, o plebiscito total comprovando-o: “Ame o filme ou cale a boca”. (E James Cameron, desde então, pessoalmente, especificou estes termos aos desagradáveis do Los Angeles Times. Um homem irritadiço). Está em ordem, a lei do número e do contador. O realismo estatístico. A mídia retransmite, alimenta, compreensiva, demasiado alegre, em entrevistas de rua devidamente representativas – “Eu tenho quinze anos. Eu adoro. Eu o assisti sete vezes. Fui com meus amigos” – ou então informando por ela mesma: “Aí está, recorde histórico, A Grande Escapada foi vencida” – esse suspense que durou, se manteve por bons dois meses. E o elenco rivalizando por múltiplas notas positivas, ou seja, tanta publicidade gratuita, em benefício de cada um (isso produz os ingressos e isso produz a audiência). Desde o lançamento do filme, a imprensa de todo tipo foi unânime, laudatória, os críticos no céu, e uma ou duas exceções consagraram ao filme somente uma coluna. Para o resto, Cameron é grande. Como tudo isto é vendável, convinha dizê-lo duas vezes e não uma, depois mais, e retornar a isto na capa, para “fixar”, se obrigar a belas metáforas marítimas sutis, fazer dossiês completos, oferecer todas as espécies de cifras, analisar em consciência o sucesso gigantesco, ainda mais espantoso por ter reconciliado, meu deus, o público e a crítica – “somos espectadores como todo mundo!”. Sentimos passar uma grande sensação de amor sincero. E o filme é do autor.
Como aqui o espaço é mais propício, é chegada a hora de cuspir no prato em que se comeu – e com a mesma sinceridade. Mesmo as cifras não impedem o fato: entre todos os que viram Titanic, que colaboraram com o box-office pagando suas entradas, nem todos gostaram, e alguns ficaram até enfezados. Destes, no globo midiático, praticamente não se viu indício. Eles entram nas cifras do recorde, são somente um ponto – one point. Não se saberá seu número; as estatísticas são aproximativas.
A isso, a essa omissão fatídica, que recidive a cada sucesso, opomos uma visão menos “edificante” – que seja uma amostra expressamente escolhida, ad hoc. O que segue é o resultado de certos encontros e não aspira à objetividade, nem de longe; trata-se de depoimentos francos. Impressões cruzadas, aos trancos e barrancos, fora do protocolo de entrevista. As pessoas que falam anonimamente aqui às vezes são amigos, ou conhecidos, ou parentes, de cinefilia variável, de acordo com elas, e crítica. Esses depoimentos transcritos aparecem tendo por intenção contrariar um pouco o que já apareceu, os louvores únicos, mas também o modelo de entrevista na rua e o que já descrevemos, em suma, todas as coisas que ouvimos à exaustão, assim que Céline Dion se dignou a parar de cantar nos créditos finais do filme (e tudo mais).
P.S.: há também aqueles que não viram o filme e não têm vontade de vê-lo.
Nota bene: os dois últimos depoimentos relatados são à parte, transcritos de um filme de 1982, Quarto 666, de Wim Wenders, onde Godard, depois Spielberg, entre outros, tomam a palavra. Nesta ocasião, lhes pediram que dessem sua opinião sobre o futuro do (de seu) cinema.
Primeiro depoimento
(“Vivamos felizes esperando a morte”)
(...) A comunhão plena, todo mundo de acordo, é o que a gente vê daqui. E as pessoas que arregalam os olhos quando você diz que não gosta... Elas parecem completamente surpresas. É claro que com o rumor que corre... Depois, então, falamos sobre isso – um pouco. Não há muito que dizer. Ficamos parecendo esnobes com nossos argumentos frios e essa ausência de sentimentos. Porque Titanic funciona “no calor do momento” ele é, sobretudo, sentimental, e sólido. Quando alguém te diz, de uma vez por todas: “Pode dizer o que quiser, mas comigo funcionou” – bem, a discussão pode parar por aí. Seria preferível continuar: então diga, o que funcionou com você? – conte um pouco. Neste momento, poderíamos tocar o cerne das coisas, sem a chantagem do sentimento anterior, sim, direto ao cerne, e ver um pouco o que acontece ali, como o filme opera, ver como ele “funciona”. É um filme muito malicioso, contrariamente ao que se pensa.
(...) Esse sucesso não chega por acaso. Cameron é um fabricante habilidoso, ele conhece bem a manobra – e bem, eu não o vejo de forma alguma como sendo o capitão do navio, rigorosamente ridículo no filme, e que fracassa na manobra – não, sua manobra é antes a do chefe militar, sem escrúpulos, do tipo lunático, que sacrifica o grosso das tropas, que as envia para a morte certa na esperança de vencer, eis a manobra, e no final é a ele que destinam toda a glória, e as medalhas, e as estátuas, todas as honras. Claro, nada grave, é só cinema... Mas o plano que mesmo assim impressionou, e que volta constantemente quando se quer convencer sobre a beleza do filme, é o grande movimento de câmera que enquadra todos os mortos que boiam, a perder de vista sob a abóboda estrelada, esse grande campo de batalha líquido que parece ser belo. É melhor levar isso a sério, pois é o que está no cerne de Titanic. O coração do oceano, a pedra preciosa de pobre pretexto simbólico (em miniatura, e o grande seixo é o iceberg) – no coração do filme, lá está o grande mergulho nas profundezas, a morte cintilante, prometida desde o início, desde a partida do navio. É assim que funciona, e é o horror. Mas, pelo menos, em alguma medida assume-se o impulso siderante em direção ao vazio, em vez de procurar nos fazer acreditar, como eu li, em um elogio besta da vida, do amor ou, ainda mais característico, da sobrevivência (porque, afinal, os outros podem morrer).
(...) Titanic é desde sua origem uma máquina de morte, um enterro de primeira classe, por imersão nostálgica, e os grandes sentimentos, um filme mortuário em mar aberto, essas coisas fascinam. Isso me deixa realmente louco. Concedo que seja um conto de crueldade, como, por exemplo, A Pequena Sereia, mas filmado pela Disney – vemos que tecnicamente são análogos: os efeitos digitais em 3D, os “bonecos” virtuais (ah, aliás, o filme marca o desaparecimento próximo dos figurantes, que serão substituídos por uma nova profissão, a “figuração digital”); Titanic é o novo desenho animado. Infantil no mau sentido. Para todas as idades. (...) Acima de tudo, é a atração do nada. Por atração, no caso, quero dizer: atração pelo vazio e atração de feira; como essas enormes gangorras, algo nesse estilo, com as emoções fortes, as pessoas que gritam. E aí está. Titanic representa um mundo que vemos se engolir lentamente, em som e luz, artilharia pesada e, francamente, é o cinema pelo vazio, o filme que acolhe a aniquilação como único espetáculo “vivo”. Eu tinha ouvido Julien Husson relacionar isso à Imensidão Azul e ao O Piano, e é geralmente um clima aquático que agrada, porque te situa em um estado pré-natal ou pré-letal, e parece profundo. Eu também tinha lido teu pequeno texto na Lettre, sobre La Rivière, sobre esse clima pesado de “bombeiro” que nos rodeia (quanta água!). Ou Ondas do Destino: em uma outra escala, Titanic poderia se chamar Breaking the Waves. É que é preciso ver como esses realizadores tão diferentes são fascinados à sua maneira pelas tecnologias modernas e por um certo arcaísmo místico no mesmo movimento. (...) Há uma curiosa pureza a alcançar, ou a redescobrir, e na tela isso fornece imagens aquáticas, do verde-mar ao azul ultramarino, do puro formalismo ao puro virtual. Isto não me diz nada, pois são efeitos de superfície. Mas neste caso estou de acordo com aqueles que amam quando eles dizem: “É puro cinema”.
Quase nada acontece em Titanic, nada além do que se espera que aconteça. Há lugar para todo mundo. Tudo é muito programado, do começo ao fim, tudo vem a calhar, tudo encalha, é habilidoso, mortal, nós nos entediamos. De acordo com a história fielmente respeitada, há os muitos pobres que morreram e há os ricos que escaparam, então Di Caprio pode morrer já que ele é pobre, e é preciso que choremos. Imparável. E mesmo quando no final eles se reencontram, como no primeiro dia, jovens, belos, puros... Todos unidos na morte. “O happy end no além-mar”[1]. Como sou malicioso, imagino se no último plano fosse a Rose idosa quem reaparecesse no momento de sua morte... Aí teríamos uma surpresa – uma verdadeira catástrofe...
Segundo depoimento
(“Como nos velhos tempos...”)
A magia hollywoodiana redescoberta... Isso não nos serve para nada. Sob esse famoso pretexto nós nos ludibriamos com Titanic, e com qualquer outra falsificação; então é suficiente que haja o pôr do sol flamejante, com a mesma tonalidade dos sentimentos flamejantes, que seja como em Scope, que a época tenha acabado – e é sempre a “grande época”, a partir do momento em que há xarope, guardanapos e verniz o suficiente, dizemos que é “como a magia hollywoodiana”. Em nome de um retorno a uma pseudo-inocência, de antes da catástrofe (a magia-que-morreu). As cópias ruins tendem a falsificar os originais. Então saio de Titanic e volto rapidamente para casa e verifico que estou viajando, e que os grandes filmes hollywoodianos não têm nada a ver com isso. Até mesmo E O Vento Levou..., pelo qual não sou realmente apaixonado, mas que em diversos aspectos pode ser comparado a Titanic, conta uma história de amor claramente menos tola. Clark Gable é claramente mais ingênuo que DiCaprio, e os personagens secundários existem. E a magia hollywoodiana, então? O que é? A era de ouro nunca foi inocente. De mágica, existem apenas os efeitos especiais que reproduzem o mesmo de antes com as tecnologias mais recentes: as imagens virtuais do navio em vez das maquetes em miniatura, os céus e um mar virtuais em vez de telas pintadas e incrustações, fora isso é a mesma coisa, quer se diga trucagens ou efeitos especiais. Titanic só se aplica à reprodução cuidadosa de aparências falsas, de engodos, de efeitos suaves. É como as telas que Rose carrega consigo, essa vanguarda do passado agora certificada como “os grandes mestres”: que grande prova de gosto arriscado, este “retrospectivamente”... Titanic é o próprio falso, mas com o mesmo artifício. Enquanto os grandes filmes americanos, no cúmulo das aparências, explodiram o trompe-l'oeil, correram todos os riscos para fazê-lo mentir, desmascará-lo e fazer aparecer uma verdade ainda mais inverossímil, Cameron simula, quebra alguns pratos e se prende aos procedimentos preciosos, às aparências verossímeis. Ao fac-símile.
O que é, o que é? Um filme sobre um grande barco, um cruzeiro entre a Europa e os Estados Unidos, uma grande história de amor, mas ela está prometida a um marido rico, o herói é pintor nas horas vagas, eles não pertencem ao mesmo mundo, ainda que os dois não tenham um tostão, e seu amor vem pôr tudo em xeque... Chega a catástrofe, o filme oscila na direção do drama, prende-se a respiração, um dos amantes corre o risco de perder a vida... E, além disso, há uma bela canção melancólica. Eu revi uma vez mais Tarde Demais para Esquecer, de McCarey, um grandíssimo filme.
Terceiro depoimento
(“Em um filme como em cem...”)
Basta de Titanic. Depois de seu remake de La Totale (True Lies), vejam só, Cameron quis refazer O Atalante... Dizem que ele correu grandes riscos... O único risco verdadeiro foram as finanças que um filme tão caro poderia implicar, e é tudo. Em todo lugar nos venderam-no como “o filme mais caro da história do cinema”, isso funcionou, necessariamente, todo mundo quis ver “o filme mais caro da história do cinema”, como a coisa a não deixar de ver – e isso não falhou, pois rapidamente ele se tornou o filme mais sumoso da indústria do cinema. O produto certo no momento certo, como dizem os americanos (...) Eu quero sim, mas então que não me venham com historinhas... É vazio e é cretino, e só isso fisga muitas pessoas. Um filme catástrofe + uma história real (uma catástrofe de verdade verdadeira) + uma história de amor + os ricos e os pobres (sobretudo os ricos) + um filme de figurinos + efeitos especiais + um grande barco... O que o povo quer? Ele paga para ver. E aqui estamos todos, todos embarcados no mesmo barco e esperando pelo dilúvio. Quanto à sua eminência James Cameron (J.C. para os íntimos), o pequeno tirano megalomaníaco (aliás, será que ele viu A Grande Escapada? Ele podia fazer um remake), todo o cinema, o Cinema, é ele. Mesmo assim, deveríamos desejá-lo boa sorte... Recentemente, na televisão, houve uma pequena homenagem a Roger Corman, e Cameron, por ter começado junto a ele, declarou: “Com o orçamento de Titanic, Corman poderia ter feito uma centena de filmes... (Um silêncio). Well, who cares? (Tradução: O que eu tenho com isso? ou Pouco importa!). Titanic é tão rentável quanto cem filmes de Corman...”. Como se queria demonstrar.
Então ouvimos os entusiastas que se regozijam, que nos asseguram ingenuamente que um monte de gente que nunca vai ao cinema começará a ir dali em diante, graças a Titanic. De jeito nenhum. Titanic não cria nenhum espectador novo além dos seus, isso é claro. Uma vez que você viu Titanic, você não vai ver o Eastwood, você retorna para ver Titanic. E ao lado disso, diríamos que todo o cinema se acanhou. Isso é passageiro, não vai durar por anos – eu espero, enfim –, mas por enquanto não se trata realmente de cinema; trata-se do “Guinness Book” dos recordes, daqueles que veem um filme 80 vezes sem pensar em pular a cerca – e um filme que não dá vontade de pular a cerca não pode ser um bom filme. O único recorde que o filme não bateu foi o dos Óscares, pois a Academia premiou o grande objeto técnico, a grande obra, porém vazia, sem contemplar os atores, então o prêmio foi bem despachado. E Sean Connery, que entregou o Oscar a Cameron, com sua voz grossa de estentor britânico – “Taïtanic!” –, e Cameron urrando que ele é o rei do mundo; isso deve ter feito Sean Connery rir, ele que interpretou O Homem que Queria ser Rei. (...). A questão, então: será que, com as receitas, serão produzidos cem filmes? Isso eu pago para ver.
Quarto depoimento
(“Reader’s (In)digest”[2])
Saindo da sessão do filme na primeira semana, ele ainda não era o que se tornou. Era somente decepcionante. Bem. Tem o prólogo, o choque contra o iceberg que passa despercebido, e o momento em que ela está nas coxias com a água lá em cima, e em que a luz se apaga. Grosso modo, das 3h20, trinta minutos – se muito – são razoáveis. De resto, um retrogosto bizarro quanto ao que ele conta em seu conjunto. Isto é: o lado reaça do filme. Mas enfim, eu já havia perdido tempo suficiente assim. Foi depois que eu li os jornais. As críticas. Eu li tudo isso. Perseverando, acabei por ficar nervoso. No Libé, por exemplo, tivemos direito a tudo, começando por Gérard Lefort que se meteu a citar Proust; e depois ele nos diz que o filme não nos toma por idiotas, uma “massa confusa de idiotas...”. Eu sublinhei os trechos, tenho realmente que lê-los para você. Titanic fez com que se dissessem coisas que não eram possíveis, algumas besteiras, e certamente não por acaso. Está tudo no filme. E isso confirmou a impressão que eu tive na saída da sessão. Espere, escute... “O naufrágio, efetivamente, não tem nada de fatal: basta ficar em terra firme ou ser prudente. (...) Os finais de jogo sempre selecionam os melhores” - caímos no senso comum, ficamos sem ter o que dizer, e no juízo final Deus reconhecerá os seus, aqueles que merecem escapar, a prova: pela “seleção”... “Titanic é um filme politicamente engajado. Ele recoloca com uma vivacidade empolgante a questão da luta de classes. (...) A ‘classe’ é então inscrita ao mesmo tempo sobre os tickets de viagem (primeira ou terceira classe) e nos códigos vestimentários, linguísticos, culturais, através da boa ou má educação. Os dominantes dominam, os dominados fazem número. (...) É a bela ideia de Titanic: valorizar mais a filosofia dos indivíduos que aquela de seus grupos. Pelo naufrágio, tocamos em um limite. Mesmo o noivo malvado de Rose sofre. (...) Come-se bem no lado dos ricos, mas se dança melhor no lado dos pobres, e outros exemplos se encarregam de perturbar as categorias” – sim, isso é muito ousado como relação de classes, isso perturba todos os lugares-comuns, os ricos que comem melhor e os pobres que dançam melhor de estômago vazio... Os bem e os mal educados... Ele tem alguma noção do que escreve? E esse engajamento político em uma “luta de classes” que privilegia acima de tudo a primazia do indivíduo que salva sua pele em detrimento da massa, isso é que é classe, um verdadeiro filme subversivo... “O tema do filme – isso é flagrante – não é o naufrágio do famoso navio, mas o suicídio, no meio do Atlântico, de uma sociedade dividida em classes” – isso é flagrante, havia sido investigado, tudo é culpa da sociedade, e assim o tema que fez sucesso é o suidício, mais “filosófico” que um naufrágio vulgar... “Titanic é menos uma obra em primeira pessoa (...) do que sobre a primeira pessoa. (...) O suicídio é uma bela coisa em Titanic, sacrifício, marca de heroísmo e, sobretudo, meio mais seguro de escapar das listas de sobreviventes ou de mortos perdidos na multidão. (...) Enquanto entrega generosamente suas lembranças, Rose guarda suas reservas e seu segredo de fora-da-lei (encobrimento da joia), libertando-se de uma vez por todas do destino comum dos mortais” – pobres, pobres mortais perdidos na multidão... Aí, trata-se de completa confusão: impressionam-nos com a beleza altruísta do espírito de sacrifício, e depois da grande luta individual do “cada um por si”, e nos dizem que se trata da mesma coisa, e que é melhor um belo suicídio acima da peleja do que um afogamento de miséria entre os miseráveis... Depois do golpe da “luta de classes”, é o pompom ideológico. Querem que a escapatória instantânea se passe por luta radical! E eis que outro continua: “Em seu paciente trabalho de comutação das forças descendentes em forças ascendentes, o filme chega a fazer do suicídio um ato de resistência. (...) Melhor, o suicídio se torna uma maneira de assegurar a sobrevivência de outrem. (...) É talvez o mais belo plano do filme. Rose se desfaz do corpo inerte de Jack, agarrado à sua mão, como se descola uma pele morta. É preciso aprender a cortar o que está morto em si para que o que está vivo perdure. (...) Da mesma forma, há uma ave de rapina em Titanic: o personagem do larápio de restos. Mas ele se arrepende” – então a moral está salva, as forças de morte identificadas às forças da vida, como intercambiáveis, o suicídio pela sobrevivência, a resistência pelo suicídio. Viva a “sobre-vivência” e viva a morte. Mal podemos esperar para nos arrepender. Não havíamos entendido nada. E para nos dizer algo assim, era preciso um americano puro e verdadeiro, não um daqueles mestiços que fracassam em sua empreitada. Ademais, só resta comparar: “Muitos cineastas tentaram: Bertolucci com Novecento, Sergio Leone com Era uma Vez na América ou Michael Cimino com O Portal do Paraíso. Tantos filmes (...) que quebraram a cara com brio. O que eu quero dizer é que, se eles não encontraram, como Cameron, a matriz perdida, é talvez porque eles não eram americanos o suficiente. Era preciso ser essencialmente americano para ao mesmo tempo investir na máquina hollywoodiana, fazê-la cuspir todos seus tesouros em dólares e em meios técnicos e, paralelamente, explodir a máquina. Era preciso, para dizer a verdade, ser inocente”. A verdade foi dita. A matriz perdida reencontrada – isto é Proust. Eu leio esse tipo de coisas, eles se deixam enganar - eu pensei: isso está no filme, uma confusão impossível. Um filme que aborda de tudo um pouco e de tal modo nada, apenas para que haja dele para todo mundo. Para todos os níveis, o mínimo teórico garantido, e todas as derivas. Um pouco de primeira classe, um pouco de terceira classe, um pouco de psicologia de massas e, sobretudo, de heroísmo pessoal – claro, é melhor se distinguir nobremente ao se “suicidar livremente” quando um navio afunda (sic) do que ser obrigado estupidamente a morrer perdido na multidão. É mais digno e dá direito a um close-up. (...) Em compensação, se você faz parte de uma família árabe e não sabe ler um cartaz publicitário, você não tem nenhuma chance de escapar. Se você está sobre a ponte em pânico, e você proclama que pretende atravessar o Vale da Morte (é uma alegoria judia), DiCaprio te dá um empurrãozinho, ele te diz para calar a boca e ir em frente, e no plano seguinte o padre terá tempo para celebrar uma missa. Bem. Dois planozinhos de nada, tudo bem. Mas quando vemos o resto... tal como ele apareceu na imprensa. Todas essas genuflexões, incrível. (...) O que se vê então é que dentro do cúmulo da técnica há o cúmulo da mística reaça. Não como nos grandes cineastas reacionários que fizeram grandes filmes “de esquerda”. Aqui é definitivamente retrógrado. Não há “luta de classes” que se mantenha em pé. Titanic está claramente do lado das primeiras classes, isso salta aos olhos. A “massa de pobres”, efetivamente, interpreta as utilidades maltrapilhas, e depois os afogados. Todo o cuidado é concedido à reconstituição minuciosa, maníaca, do luxo de outrora, do passado. Cameron está totalmente imerso na nostalgia fascinada desse mundo em crinolina que ele vê naufragar, e de um cinema fastuoso como não se faz mais. Ele desencalha os destroços. Havia uma manchete: “Após ter explorado os destroços do ‘Titanic’, em 1992, Cameron chorou”.
(...) Podemos então nos livrar de Titanic dizendo que ele é nulo, tudo bem, mas ele não é nulo, é nauseabundo. Ele joga sobre um inconsciente coletivo inquietante – o inconsciente coletivo sempre é inquietante e estúpido. É bom para o medo, pois o faz frutificar. O mundo sonha em estar sobre o “Titanic” e se ver naufragar de corpo e alma. É a Grande Superstição. Ir ver Titanic, brincar de sentir medo, ver-se desaparecer nos limbos e mesmo assim ter a oportunidade de presenciar religiosamente, supersticiosamente, no temor de só Deus sabe o quê, o Grande Espetáculo. Não se trata realmente de um filme catástrofe, mas de um filme catastrofista, que nos anuncia, convocando o passado tão exemplar e tão profético, que por excesso de técnica as coisas vão acabar mal. Sob a proteção do Apocalipse em água benta, do odor de fim do milênio segundo a voga ocidental. É terrivelmente católico sob esse aspecto, e também lindamente niilista, o que não é necessariamente contraditório – a fascinação apocalíptica que acerta em cheio, e, abastecida, a tentação do grande nada. E então no final, para os sortudos, a América.
Quinto depoimento
(Por Jean-Luc Godard [3])
(...) “Os filmes preferem cada vez mais falar sobre outros filmes do que falar sobre uma realidade exterior ao cinema...” – Sim, é difícil filmar em externas, correm-se riscos, é preciso correr riscos... “como se a vida não pudesse mais fornecer histórias...” – realmente, desde que há histórias nós dizemos: sem histórias! Sempre quisemos uma única história que conhecêssemos de antemão, e o que nos tranquiliza não é a história de Alain Delon e de seu revólver, ou de Charles Bronson, ou algo desse tipo, mas o fato de que, por só haver uma história e conhecermos seu desfecho de antemão, somos tranquilizados quanto à nossa própria história. E eu acho que, como uma radiografia de uma doença ou de uma saúde, a imagem deve nos inquietar, nos tranquilizar, mas só depois de termos visto um pedaço de nossa própria história. (...) “Cada vez menos filmes são feitos...” – isso não é verdade, fazemos cada vez mais, enfim, existem cada vez mais... Os americanos são muito fortes nisso, eles fazem cada vez menos filmes, pois perceberam que era melhor fazer cada vez menos filmes. O sonho de Hollywood não é outro senão fazer um único filme... mas distribuído em todo lugar. Assim, os filmes mudam de título, as séries de televisão mudam de título, mas é sempre a mesma coisa. E o texto se tornou o mais importante, mesmo que para servir apenas de título ou de legenda, dessa forma as pessoas pensam que é diferente, como crianças... – por que as pessoas têm filhos? Existe uma atração pelas grandes superproduções, porque elas são produzidas menos, mas elas são distribuídas cada vez mais. “Os filmes menores estão em vias de desaparecer” – realmente: todo o cinema nasceu dos filmes menores. Mas também as nações menores, sejam elas ricas ou pobres, desaparecem. O que é menor é justamente... (Um grande silêncio).
Sexto depoimento
(Por Steven Spielberg)
Eu sou um dos últimos otimistas quanto ao futuro do cinema em Hollywood. Eu penso que todos meus colegas que amam o cinema, e não conhecem outra coisa... – se o fim do mundo chegasse, não saberíamos nem mesmo cavar um buraco para nos abrigar. Nós só sabemos fazer filmes. É por isso que só posso ser otimista quanto ao desenvolvimento de nosso cinema, mas espero que ele não aconteça à custa de outros filmes que seriam esmagados pela pressão econômica. Hoje falta dinheiro. Estamos em 1982. O dólar está desvalorizado. Em 1974, quando eu filmei Tubarão, e ultrapassei o plano de filmagem em 100 dias – em vez de 55, foram 155 –, o orçamento subiu para 8 milhões. Ele dobrou. Hoje, por causa do dólar, do franco, do marco, do iene, e não sei o que mais, e por causa da inflação de custos na indústria do cinema, hoje esse filme custaria provavelmente 27 milhões de dólares, se o filmássemos durante 155 dias, com toda a equipe hospedada e alimentada, além de custos adicionais. É por isso que o meu medo é que um filme como E.T., que custou 10,3 milhões de dólares – o mais barato que eu realizei nesses últimos anos –, que mesmo um filme como E.T. custe 18 milhões em cinco anos. E, no entanto, o filme se passa em uma casa, com crianças, um jardim, uma cena na floresta, cenários muito limitados. Não podemos culpar ninguém, nem os sindicatos por terem inflado os orçamentos, com o aumento anual de 15% para todo mundo em Hollywood, nem o governo, nem o dólar que desvaloriza. E como não há ninguém para culpar pelos problemas econômicos (the state of the economic art), é preciso trabalhar com o que temos. Fazer os melhores filmes possíveis. Se for preciso fazer concessões para rodar um filme que deveria custar 15 milhões de dólares, e filmá-lo com 3 ou 4 milhões, nós faremos. Nós somos prisioneiros de nosso tempo, e nossa geração é provavelmente a única a poder romper com essa... Não sei como chamá-la. Parece que em Hollywood – e não sou culpado disso, só tive a sorte de fazer filmes que fizeram sucesso –, parece que todo o mundo, nos grandes estúdios, os decisórios, todos querem bater o pênalti decisivo na prorrogação da final do campeonato mundial, quando o placar está empatado. Everybody wants to be a hero. Eles querem chegar em Hollywood em cima da hora, desenterrar uma merda qualquer da prateleira e fazer dela uma galinha dos ovos de ouro, um gol de último minuto que valeria 100 milhões de dólares... Parece-me que os dirigentes dos estúdios – não todos, mas muitos deles – pensam assim: “Se um filme não tem chance alguma de chegar às semifinais, não temos realmente vontade de fazer esse filme”. Aí está o perigo, não nos cineastas, nos produtores ou nos roteiristas, mas naqueles que controlam o dinheiro e que dizem em linhas gerais: “Quero recuperar meu dinheiro e quero que a quantia seja multiplicada por dez. Não estou realmente a fim de ver um filme sobre sua própria vida, sobre seu avô, como foram seus anos de escola, como foi se masturbar pela primeira vez, aos treze anos ou sei lá. Quero um filme que agrade a todo mundo”. Em outras palavras, Hollywood quer um filme ideal. Com uma coisa para cada um. Mas, claro, isso é impossível...
[1] NdT: Jogo com as expressões homofônicas “l’eau-delà” e “au-delà” (além, além da vida).
[2] A propósito de trechos do Libération de 7 e de 27 de janeiro de 1998 e dos Cahiers du Cinéma n. 520 e 522.
[3] As frases em itálico entre aspas, lidas em voz alta por Godard, provém de um texto que lhe foi entregue para o filme de Wenders e ao qual, descobrindo-o sobre uma folha de papel, ele reage conforme a leitura.
Taïtanic ! foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°6, verão de 1998. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.
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