Como eu me enganei... (ma comè filma?!)






Sobre Como eu briguei.. de Arnaud Desplechin

Por Stéphane Malandrin e Dominique Marchais

Fato notável: a quase totalidade da crítica saudou o último Desplechin como a chegada do Messias. De um ponto de vista midiático - e estritamente midiático... - o cineasta se encontra, tudo igual, aliás, na mesma posição que o Godard dos anos 60. O trabalho de Desplechin está longe de ser negligenciável, e não teria porquê cutucar a onça com vara curta, se não tivessem enchido nossos ouvidos de referências totalmente deslocadas. Muitos críticos chegaram a comparar Como eu briguei... e A mãe e a puta. É melhor ser surdo do que ouvir isso... E se falássemos do filme em si?

1. Primo

Poderíamos jogar por muito tempo o jogo dos sete erros, retrato contra retrato, filme contra filme, entabular a lista de razões que fazem com que A mãe e a puta e Como eu briguei... não tenham nem filiação, nem semelhança, nem fraternidade. Nos limitaremos, por enquanto, a sublinhar esta diferença fundamental: o filme de Eustache viu alguma coisa, o de Desplechin quase se envaidece por não ter visto nada, e sobretudo por não ter nada a mostrar. Se Desplechin está longe de alcançar os objetivos é porque nunca olhou seus personagens, ele não quis escutá-los, nem se interessar por eles, nem verdadeiramente amá-los - preocupações elementares de A mãe e a puta, essa obra amorosa que esboçou com humor e seriedade, por seus atores, a convicção de uma saudação coletiva. Como eu briguei... observa e pratica "o amor" de seus personagens com a ciência consumada e o sorriso de canto daquele que já sabe como proceder não para fazer cinema, mas para seduzir os críticos de cinema.

2. Ver para crer

Ou, por exemplo, a cena de sedução entre Paul-Amalric e Valérie-Balibar, no carro. Um homem, uma mulher. Por que eles estão ali? Porque Valérie está um pouco apaixonada por Paul e Paul, aparentemente, gosta de se deixar seduzir. O que acontece? O que eles dizem um para o outro? Literalmente, os dois personagens não dizem nada. Eles são privados de sua troca de palavras por uma voz off que cobre a totalidade da discussão. Que diz a voz off? Que Paul está contando para Valérie seu amor por uma outra garota (Sylvia-Denicourt). O que Desplechin faz, então? Ele não nos mostra o corpo ferido de Valérie escutando as palavras de Paul, como poderia ter feito Eustache, mas nos impõe um duplo flashback, contando como Paul e Sylvia confessaram a um terceiro (um amigo em comum) que eles se estimavam reciprocamente. Dito de outra forma, privado de som, privado de imagens, de corpos bem como do resto, chegamos a nos perguntar por que esse homem e essa mulher figuram num filme ao invés de uma peça radiofônica enunciada no estilo indireto. Diríamos talvez, Desplechin trabalha o "retrato mental" de Paul Dédalus, esse centro - suposto - do filme! Mas, aqui, esta hipótese só é admitida como título manifesto de um fracasso entre outros, porque o personagem só conhece realmente um em cada dois flashbacks, e ele não saberia de forma coerente "ser o centro". Mas prossigamos...

Se Desplechin não filma, a rigor, nem a relação entre Valérie e Paul no carro (a voz off o impede), nem o ponto de vista de Valérie sobre a crueldade de Paul (a inserção do flashback o impede), nem o ponto de vista exclusivo de Paul diante de Valérie (o narrador onisciente o impede), é porque ele encontra o seu interesse em outro lugar - em todo caso não entre seus personagens. Onde? Esta é a questão...

3. Não tem ninguém aqui

Poderíamos dizer que a verdade do filme de Eustache está simbolicamente contida, para pegar um detalhe que poderia servir de critério de exigência à qualquer obra cinematográfica, na sequência da rã. Sentado na casa de seu amigo, Alexandre inclina a cabeça para trás, olha para o teto e percebe, em um breve instante de jubilação, o desenho da rã que ele havia se divertido em olhar na última página de uma revista: "Ah, sim sim ah ah, eu vejo a rã, he he a rã!" Ele vê e ele se exalta. A câmera de Eustache permanece sobre o rosto de Léaud, os olhos no ar, porque a única coisa visível é esse estado de um homem que vê. A pergunta que nos colocamos é: onde está a rã de Desplechin? O que vemos de seus personagens quando eles estão vendo alguma coisa, mesmo quando esta coisa não está manifestada?

Exemplo: a cena de cooper de Paul Dédalus. Ele corre no bosque, e subitamente, tomado pela catatonia, ele pára, pálido, ofegante, suado. Aqui, nada de flashback, nada de voz off, nada de inserção, apenas a cena, nua. Bela cena, aliás. Amalric, furtivamente, possui um corpo, um lugar de sofrimento. E depois, alguns planos mais à frente, eis que volta a galope o natural do realizador que não se importa com seus atores, e com as rãs que eles poderiam ver. Fragmentos do diálogo: "eu vi que as coisas eram imemoriais e hostis." Que escritor! Recordemos do Alexandre de A mãe e a puta: "... ali sob meus olhos, uma brecha se abriu na realidade. É tarde demais, não fomos lá. Eu tenho medo de não ver mais nada lá. Eu tenho medo. Eu tenho medo. Eu não queria morrer." Eustache tinha a possibilidade de filmar em campo aberto o "terror" de Alexandre ou de fazê-lo contar. Ele escolheu a narrativa oral, de acordo com a tonalidade global de seu filme. Desplechin se protege bem de ter que escolher. Crendo sem dúvida multiplicar seus efeitos, ele tenta mostrar a "realidade" física do mal-estar, depois, para aqueles que não entenderam, volta a ela por meio de um comentário muito "sentido". Como ele não quer escolher, e quer tudo ao mesmo tempo, Desplechin não nos faz sentir a mínima emoção? Por que a relação do evento, acrescentada do próprio evento, destrói a força? Porque não se pode impunemente filmar um evento corporal (o terror) e explicá-lo duas cenas mais tarde na pior língua acadêmica sem induzir ao mesmo tempo a nulidade de sua realidade cinematográfica, e um desprezo secreto pelo evento propriamente dito. O que conta, no fundo, é o homem que se observa filmando, inventando belos diálogos, organizando dispositivos complicados... ao invés daquilo que acontece com aqueles que fazem a narrativa. Como eu briguei... é o fato de um homem que aprende a filmar se olhando num espelho, como outros aprenderam a fumar, para se impressionar, tentando chamar a atenção do público. Não importa o que aconteça desde que a ilusão de ter feito acontecer alguma coisa tenha ocorrido.

4. Sempre ele...

Se o espectador é frequentemente convidado a "gozar" do filme no modo recuado, não é porque Desplechin trabalha o distanciamento, mas porque ele recorre à omissão, que é o único meio dado ao seu filme para mascarar a vacuidade de seus personagens. Tendo fracassado ao dotar seu filme de um centro, ele lhe atribui uma multiplicidade, que ele dramatiza artificialmente pelos efeitos de anúncio, pelas vozes off, flashbacks, que são igualmente golpes de projetor ou de zoom sobre objetos ausentes, em todo caso, mal definidos. Sem dúvida, esse distanciamento não resulta de uma escolha, política ou ética (Brecht-Straub-Godard), mas de um medo inibidor que não coloca nunca o realizador na posição de ter realmente medo da coisa a filmar. Sua vida sexual? Esvaziada de qualquer pulsão, de sensualidade, de vícios, de palavras, de corpos, de erotismo, ela é reduzida à exposição de uma mulher cobrindo os seios, sozinha, de quatro numa cama, mais constrangida pelo visor do câmera do que pelo olho de seu amante. Sua briga? Vazia de qualquer memória, de participação, de afetos, pretexto para todas as formas de bravata de "autor", ela não é mais que a sujeira de um ressentimento disfarçado de pesadelo, de macaco e de calças brancas. Nada acontece porque ninguém existe, nada é dito porque ninguém é mais capaz de tomar a palavra, ninguém pode se ouvir porque não é mais questão de trocar o que quer que seja.




No final, esse filme aparece como uma máquina fumegante e esfumaçada, sob pressão, que parece só poder dar à luz a formas e pensamentos inacabados, vagamente monstruosos, mais frequentemente inúteis - o que pôde dar em belos filmes doentes, convalescentes, logo vivos (os filmes de Zurlini por exemplo), que precisamente agradavam por sua fraqueza assumida, sua lucidez. Aqui, a incompletude dos personagens não é produção, mas ausência de invenção, ausência de ponto de vista real - Desplechin nunca parece se dar conta a que ponto seus problemas de visão nos impedem de entrever qualquer coisa de surpreendente. O normalista normaliza, a secretária secretariza, a tradutora faz sua escola de tradutora. E quando a definição não é tautológica, ela é depreciativa em relação às mulheres, para não dizer misógina: o homem se ocupa de sua imagem social enquanto que a mulher menstrua; o homem consegue fazer uma obra quando a mulher não consegue ter filho; o homem tem inimigos quando a mulher só tem exigências; o homem não sabe o que quer mas se vinga, enquanto que a mulher sabe o que quer mas passa por idiota. Sob a neblina espessa de suas discussões complicadas, mas vãs, os fantoches falantes de Como eu briguei... são sempre reduzidos à sua funcionalidade roteirística, à pequena demonstração sofística que Desplechin reivindica para a juventude de hoje: "as mulheres se ocupam de suas imagens, os homens de seu destino: invertamos a proposição e nós teremos um ponto de vista pertinente sobre o mundo...". Mas ele está rindo de quem?

5. Sempre nada...

Nanterre. Paris X. Escola Normal. Os livros. Os professores. Os estudantes. Os conceitos. O que faz Desplechin? De quais intelectuais ele fala? Sua filosofia? Ela se exprime tranquilamente, num vocabulário de domingo à tarde, decorado de citações, aqui e ali, alguns conceitos à queima-roupa portanto - estilo "e então eu encontrei a alteridade", as obras que fazem bem depois da missa - Jean-Luc Marion... Esse discurso posado é na verdade um pensamento-apostila, exibido depois amordaçado, finalmente sem perigo. Por que refletir nesse filme, sobre o quê, visto que ele está cheio de pequenos soldados que são pagos para fazer pose: os atores-professores de filosofia? Desplechin pode muito bem parecer "inteligente" nas suas entrevistas, antecipar as reprovações e fingir ter feito tudo de propósito (da malícia como marketing crítico), estaremos sempre no direito de lhe perguntar se ele estragou seu filme de propósito. Mas, ele responde, Descartes escreveu um livro autobiográfico, os desfiladeiros de Verdon são invisíveis a olho nu e se não houvessem os filmes, não haveria mundo. É inacreditável. Adoraríamos que tudo isso fosse só um filme, Noivo neurótico, noiva nervosa por exemplo, no qual Desplechin seria apenas o tagarela exasperante na fila de espera do cinema, debitando montes de tolices, e que poderíamos calar chamando Descartes em socorro: "Verdadeiramente, meu amigo, você não entendeu nada do meu livro". De ponta a ponta nas suas referências, Como eu briguei... não funciona, não respira, se asfixia. De que adianta pôr a música a plenos pulmões, por exemplo Vocab dos Fugees, quando isso não serve para nada, quando não se filma nem as pessoas que a escutam, nem aqueles que dançam - e que no fundo ninguém se importa? Desplechin serve a canção e a situação, revelando assim o defeito fundamental de seu cinema: nada consiste em nada, no sentido próprio da consistência, da coesão, a fusão das partes em função da totalidade.

6. Nova Qualidade Francesa

Não é que ele trabalhe sobre a disjunção, como o faz Altman, mas pelo contrário suas somas não se adicionam nunca. E na verdade, luz + atores + cenário + música - mise en scène não dá cinema. Da mesma forma que: (voz-off e romanesco de Truffaut) + (flash-back, música contemporânea e incisos fotográficos de Resnais) + (sonhos e morte do pai de Bergman) + (planos-sequência e dor existencial de Eustache) não dá nunca um bom filme, porque a soma de seus signos, entendida como compilação de seus tiques, não está nunca à altura de seus respectivos gênios.

Então o quê? Esse filme é um agregado de bolhas (as cenas) que são elas mesmas constituidas de estratos rígidos, exteriores uns aos outros (as esferas de eficiência de cada um dos participantes da filmagem) e em que nenhuma é considerada como um todo, autônomo, mas em função do agregado. Isso dá um agregado de bolhas imperfeitas, incompletas, não muito bonito de se ver, onde cada cena acredita participar do todo mas ignora as outras. Daí que a voz off (o lugar de Desplechin) que ele não colocou de propósito, mas porque ele não teve escolha, que ele precisava desta insistência para unificar pela força o que se recusava a formar um filme. Basta dizer que se a comparação com Eustache nos parece definitivamente aberrante, fora de questão, aquela com Resnais ou Mankiewicz (Quem é o infiel?), aos quais Desplechin pensa indubitavelmente, não o é menos. Nem grande filme romanesco, nem filme sobre o discurso amoroso, nem filme sobre a sexualidade, Como eu briguei... só propõe para o cinema as intenções de um diretor: uma liquefação permanente do todo (o filme) à guisa de solidificação de um ego (o realizador) - vão e tedioso.

7. Então é isso

No fim das contas, Desplechin parece só ter desejado uma única coisa: se livrar o mais rápido possível de um cinema francês que o assusta, fingindo digeri-lo, pensando-o como gênero, e fazer muito melhor que seus camaradas de classe. Eustache filmou como se escreve uma carta, Desplechin como se faz uma dissertação, relendo vinte vezes o título do tema antes de começar, aplicando-se laboriosamente sobre sua prova, depois de ter feito a lista de todos os conceitos-chave a utilizar para iludir, esquecendo simplesmente que se trata de escrever alguma coisa. Um filme de copista não é um bom filme, porque o esplendor retórico dos mais brilhantes só fará corpo com o bloco de notas de seus professores.

Comment je me suis fourvoyé... (ma comè filma?!) foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°1, outubro de 1996. pp.57-62. Tradução: Miguel Haoni.

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