O rosto mais belo, o maior ator – Lillian Gish, Cary Grant





Por Raymond Bellour

Podemos ainda escrever sobre filmes, sobre realidades de imagens um tanto quanto precisas – se não for para relatórios sempre apressados – sem se submeter à prova tão simples quanto virtualmente constrangedora de verificações nas fitas ou nos DVDs? Escrever a partir de lembranças de impressões que não foram, ao menos nós o acreditamos, reconhecidas durante a projeção, mas que se interpõem um belo dia como sensações de ideias – hipóteses que não saberíamos como verificar, a tal ponto que começar a fazê-lo ou mesmo acabar por pensar demais nisso resultaria não somente a desencorajá-las, mas talvez em transformá-las até lhes corromper e volatizar.

A ideia que me surgiu procura conciliar duas paixões muito diferentes para que a razão seja suficiente, mas parece plausível que sejam iluminadas uma através da outra. Elas estão ligadas igualmente à arte da interpretação e ao mistério para sempre não resolvido da presença. Mas procurar recompô-las juntas permite entrever que essa arte e esse mistério consistem em duas maneiras opostas de se relacionar com o plano. Logo, de habitar esse tempo variável mas sempre crucial durante o qual, ao menos no cinema clássico, um valor de existência se entrega, podendo dar um pouco a impressão de se autonomizar sem, no entanto, deixar de depender estreitamente das unidades de tempo que o cercam. É pensando no plano que eu posso dizer, excessivamente, e tendo sem dúvida a paixão do plano como desculpa: o rosto mais belo, Lillian Gish, o maior ator, Cary Grant.

Se lembrar de Lillian Gish, é tentar deter no seu próprio interior o que seus inumeráveis closes de rosto fixam na imagem, através de sentimentos variados. O medo, tão frequentemente solicitado, a dor que se implanta, como em Lírio Partido, ou afetos de angústia suspendida, mais indefiníveis, em certos momentos de O Vento, mas também instantes de quase simples devaneio ou mesmo de um pensamento alegre, tal como o vemos em vários filmes, curtos e longos, de Griffith. Escrevendo a Jean Paulhan, seu amigo Jules Supervielle lhe confiava o desejo de escrever “textos tocantes”, como os autores anglo-saxões que “não temiam nos emocionar”. Ele acrescentava: “E é esse também, eu acho sem que ele nunca o tenha me dito, o desejo secreto de Michaux que adorava Lillian Gish, o rosto mais desconcertante de todos.” Como não ser tocado pela maneira com que tal desejo de emoção surge da escolha imprevista de um rosto.



Mas de onde vem esse desconcerto? Ele está ligado, primeiramente, à capacidade que tem esse rosto de estar na maior parte do tempo como congelado, em suspenso, o próprio princípio do close num tempo em que ainda não se fazia muito, assim como Hitchcock se vangloriará, “viajar o close”. Mas há na fixidez, níveis, que são uma das coisas mais difíceis de definir. O rosto de Lillian Gish parece fixo porque ele seria chamado de fora por uma força que o transpassa oferecendo ele mesmo, à beira da inocência. Mas ao mesmo tempo essa fixidez é ilusória, e esta é a razão que a torna tão viva. Ela é tramada por estremecimentos quase imperceptíveis, por minúsculas ondas de sensações e afetos indecidiveis que fazem de cada um desses closes uma espécie de paisagem onde se torna possível entrever sempre novas nuances (é isso que Balazs chamava “microfisionomia”, e que Deleuze e Guattari chamarão “traços de rostidade”). E isso é possível antes de tudo porque esses closes duram, ou melhor porque seu tempo de expressividade pura coincide com os limites do plano. De borda a borda, se quisermos. É, eu acho, a razão mais decisiva no efeito vibrante de massa sensível que esses traços tão delicadamente desenhados transmitem. Independentemente do que o filme nos conte, e apesar dos motivos convencionais que fazem acreditar em dramas cheios de sentido, não há mais, subitamente, desde que saibamos nos entregar, outro acontecimento.

Se O Vento é o mais perturbador dos filmes em que Lillian Gish figurou, é porque a matéria com a qual a imagem é frequentemente feita – essa areia que rodopia de tantas maneiras se insinuando por todos os lugares e que, sobretudo, se acumula e se apodera das vidraças opacas da cabana – parece se tornar o análogo de nuances de agitações que seus ímpetos provocam na superfície do rosto, por uma espécie de extraversão do olhar difundido na pele que o envolve. Ao ponto que esse rosto à mercê de sua desorientação e a areia arrastada pelo movimento irracional do vento parecem se tornar uma única substância. Também, nesse filme em que o número de closes não é talvez tão grande quanto gostaríamos de acreditar, Lillian Gish, quando é mostrada em planos mais abertos, planos médios ou em pé, na vida pavorosa que ela leva no interior da cabana, ou planos ainda mais abertos, quando ela dali sai, correndo o risco de afrontar o vento que preenche o deserto, Lillian Gish parece sempre filmada em close, como se todo seu corpo levasse consigo a alma e parecesse ali se fixar.

Daí a impressão estranha que decorre de filmes bem mais tardios onde a encontramos envelhecida, com a crueza que o cinema suscita ao fazer passar a vida tal como ela é. Mas essa crueza lhe é em parte poupada. Em O Mensageiro do Diabo ou em O Passado não perdoa, logo que ela se aproxima ou que a câmera vai em sua direção, é em close que ela sempre parece apresentada, com esse calmo estremecimento que a faz se dirigir diretamente à objetiva que a fixa e à qual ela se confia. Como se a memória acumulada de tudo o que ela viveu, para nós como para ela mesma, no cinema antigo, a protegesse e desse a sua aparência, no fim das contas banal, um esplendor de aparição.   



Lillian Gish é assim perturbadora, entre todas as atrizes, porque ela parece não atuar, movida pelo simples efeito de partículas de alma que a formam e a atravessam. Enquanto Cary Grant, ele, interpreta continuamente. Ele só sabe interpretar. Mas isso, ele o faz melhor que ninguém. Não que ele só tivesse mais talento ou genialidade que muitos outros. Mas porque, segundo um milagre inexplicável do qual os maiores autores de filmes souberam se aproveitar ao extremo, sua atuação revela-se, naturalmente, coincidindo com os tempos do plano. Cary Grant é o plano. Ele é o olho da montagem. Isso quer dizer que ele se mantém no quadro, incluindo quando ele é apresentado em close, de tal maneira que os seus movimentos de corpo e expressões do rosto parece talhar o plano em relação ao plano que se seguirá. Seu olho não para nunca, ele prepara o corte. E, fazendo isso, ele arranja também os cortes rítmicos mais ou menos perceptíveis no interior do plano. Mesmo se ele é apresentado de frente, algo de oblíquo, seja mesmo no rosto, seja na relação do rosto com o corpo ou de certa parte do corpo com outra, se torna uma correia de transmissão do movimento que chama o plano seguinte. Hitchcock não teria escolhido, finalmente, pendurar esse pequeno quadro cubista, que desconcerta tanto os policiais de Suspeita, para dar uma imagem da atuação de Cary Grant, da sua capacidade, de desencadear os planos um atrás do outro, de se manter simultaneamente em vários planos?

Essa capacidade que parece única, no que concerne o plano, faz de Cary Grant uma espécie de duplo do metteur en scène. Ao menos para aqueles que se compreendem ou aceitam duplos, com o qual ele realiza uma parte de vertigem. Hitckcock evidentemente, Hawks, McCarey, Cukor, mesmo Sternberg, uma vez. Cary Grant é inimaginável em Ford, no qual a montagem não admite nenhum intermediário. E se pensamos nos atores, vemos bem que nenhum desempenha tal trabalho de vigilância. Nem James Stewart, com quem Cary Grant compartilhou filmes e autores, mas cuja extraordinária vigilância é completamente dirigida ao interior dele mesmo que é a parte inalienável e dolorosa de cada um dos seus personagens. Nem Dana Andrews, cuja impassibilidade lendária serve tão bem à mise en scène, nós o vemos melhor nos filmes de Lang e Tourneur, mas tal qual um poder sem partilha, do qual ele é somente a superfície de deslocamento. Ao passo que Cary Grant manipula as facetas, essas facetas únicas do cinema que nós chamamos de planos. Haveria, noutro tempo do cinema, e a partir de um princípio intangível, Keaton que não ri para poder olhar seus planos, visto que ele é, deles, o geômetra.



Se pensarmos, Cary Grant tem um duplo feminino, em um modo aéreo, giratório. Menos precisa nos seus efeitos, menos sistemática, mais simplesmente bricalhona. Mas exercendo mesmo assim uma espécie de direito de olhar interno sobre o que ela realiza e que se desenrola em torno dela e a partir dela. Eu quero falar, certamente, de Katherine Hepburn. Milagre, nesse sentido, é Levada da breca. Pois esse filme não conta somente a história de um homem que vigia um cão por um motivo aberrante e de uma mulher que vigia esse homem para que, enfim, ele a prefira ao invés desse cão. É também a história de uma vigilância mútua da mise en scène da qual eles se tornam os responsáveis, como num espelho. E é a ocasião, também, de discernir como os closes, tão belos, que se detêm intermitentemente no rosto vaporoso de Katherine Hepburn são tão diferentes quanto o possível desses que se estreitam frente o rosto de Lillian Gish. Os primeiros, apesar da dilatação que se opera nas nuances do preto e branco, e de um indiscutível valor de captação, são dirigidos ao exterior, em direção ao parceiro, ao outro plano, à montagem. Ao passo que esses que se entregam ao rosto de Lillian Gish se estendem sobre o seu interior, como se eles procurassem se afundar numa espessura que eles não têm e que torna sua superfície ainda mais impregnante, entregue a si própria o tempo de uma breve eternidade.

Le plus beau visage, le plus grand acteur – Lillian Gish, Cary Grant foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 65, em maio de 2008. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

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