A idade clássica do cinema - Prefácio a uma coletânea inédita (1963)





Por Éric Rohmer


Ao reunir os artigos que compõem esta coletânea, encontro o mesmo embaraço de todos aqueles, eu suponho, que entregam à reedição seus textos antigos. Nem é preciso dizer que eu não subscrevo mais, hoje, a muitos julgamentos expressos abaixo. E mesmo se as minhas opiniões, em muitos pontos, não variaram em nada, acho agora desajeitada, na verdade, ou de uma provocação vã, a expressão que eu lhes dei outrora. Incomoda-me enfim termos de assinalar, página a página, contradições manifestas ou repetições cansativas.

Não é, todavia, a preguiça que me fez descartar a ideia de uma reforma. Esses textos em que a polêmica tem lugar de destaque perderiam demais, me parece, ao se encontrar destituídos de sua agressividade, quão ingênua e antiquada esta possa parecer hoje. Ouso acreditar que, mesmo fora de moda como estão, eles não deixarão de testemunhar um período que não é o mais obscuro da história do cinema e da sua estética. É com essa única condição que eu me permito propô-los novamente ao público e que solicito sua indulgência. Retocá-los seria dar-lhes um valor que eles não têm.

E aliás, quem me garante que a minha verdade de hoje é de melhor espécie que aquela de ontem? Se eu já me enganei, por que não me enganaria mais? A crítica é um negócio de juventude, de ímpeto, de disponibilidade, e a idade adormece o julgamento, incitando-nos, segundo o humor, muita severidade ou indulgência em relação ao que se afasta de nossa via pessoal. Espero que as reservas com que agora eu gostaria de nuançar minhas antigas afirmações não introduzam nestas páginas um clima de indiferença, mas sim de uma objetividade louvável.

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Eu me contentarei então de assinalar brevemente no que consiste a discordância entre meu pensamento de 1963 e aquele de 48 ou 55. Relendo-me, o que me choca? Sobretudo a estreiteza do meu ponto de vista que eu qualificaria, de minha parte, como o fizeram, de “reacionário”. Isso nos dois sentidos, ético e estético, do termo. Passo rapidamente pelo primeiro. Nós atravessamos, há pouco, anos tranquilos em que a política não chega a embaralhar demais, na França como na Espanha, nossos julgamentos sobre a arte, e eu temeria acender uma querela felizmente apagada. Se faço hoje concessões, não é que as minhas convicções tenham mudado, mas para retribuir a gentileza aos meus adversários. Entendendo a causa de maneira que possamos iluminar o cinema com outra luz que a marxista, eu me calo então – e me regozijo, sinceramente, ao ver uma interpretação materialista conduzir ao reconhecimento dos mesmos valores que eu pregava em nome da ética contrária. Um pudor muito forte me impede, agora, de misturar problemas que, contudo, se tocam, mas não da maneira que dizemos ou acreditamos normalmente.

Uma crítica mais grave que posso fazer a mim mesmo é que a defesa do cinema vai de par, nessas páginas, com o processo da arte contemporânea. Parece-me que eu não quero glorificar um sem, ao mesmo tempo, rebaixar o outro e que o classicismo por mim elogiado seja, do cinema, não um atributo passageiro mas o privilégio eterno. Porém, esse privilégio não existe mais, tudo contribui para prová-lo, e o cinema permanece. Esse classicismo, não é mais “adiante” que convém procurá-lo, como eu convidava o leitor em 1949: sua era está efetivamente acabada. Se o extraordinário florescimento da década de 50-60 – que correspondia à maturidade dos grandes mestres – pôde, em certo sentido, me dar razão, nós não assistimos menos, faz alguns anos, na América, na França, na Itália, por todo mundo, a morte de um cinema que amávamos mas não, contudo, a do próprio cinema.

A arma que eu utilizava era de dois gumes. Eu apresentava o princípio de um cinema imutável. E se ele muda, pelo que optar? Pelo que ele é, ou pela ideia que tive dele? Não hesito. São as minhas teorias que abandono, mesmo se minha bela construção em parte desaba. É o ser vivo, no crescimento ingrato e desconcertante, que certamente meus desejos acompanham. Se a verdade dos anos 50 estava na resistência, a dos anos 60 se encontra, com certeza, no “movimento”.



Onde nos leva essa evolução? Quais são as características desse cinema moderno, ou ao menos “romântico”, tal como o qualificamos algumas vezes? Seria preciso um livro inteiro para o dizer com a condição, entretanto, de gozar de um recuo que ainda não é fácil tomar. Permaneçamos, por agora, no signo mais exterior e menos refutável: a irrupção do individualismo e da desordem desencadeada no centro de um trabalho outrora coletivo e regido por estritas convenções. Convenções que, acrescento para o uso de todos os neoclassicismos presentes ou futuros, perdem a sua virtude salvadora uma vez que elas se impõem não mais pela força, mas pelo direito segundo o qual o artista, consciente de sua vantagem, as aceita de boa vontade ao invés de as suportar. Nós, cineastas, somos livres daqui pra frente. Usemos essa liberdade, mesmo se ela é nesse momento mais teórica que efetiva e assim sempre permanecerá, de qualquer modo.

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Antes de ir mais longe, eu gostaria de assinalar dois preconceitos que correm no cinema e o que nomeio aqui sua “idade”. O primeiro, o mais difundido, é que ele ainda está na infância e que se abre a sua frente uma era quase infinita de crescimento e de aperfeiçoamento. Concepção que só tem de otimista a aparência. Pois, em nome do que presumir que uma “coisa tão pequena”, como alguém a definiu, possa algum dia se tornar tão grande como agora a encontramos – nós que pudemos apreender toda a força irredutível e manifestamente adulta da sua personalidade? A grandeza do cinema desde Griffith não é a mesma, apesar de alguns aspectos secundários e enganadores, daquela que pertence às idades ditas “primitivas” da arte. Petição de princípio, diremos, de minha parte, e poderíamos, eu sei, especular sem fim. O que me irrita é que nossos depreciadores ou mentores de ocasião não tenham outra via de aperfeiçoamento a propor ao caçula das artes que aquela que, dizem, lhe mostram as suas irmãs mais velhas. Ora, ele não quer saber de seus conselhos e da sua solidão. Nem os escritores nem os pintores têm aqui algo a dizer: eles sempre o disseram muito mal e sempre contra a corrente. É do cinema tal como é que convém partir nossa reflexão, e a perfeição insuperável que ele soube atingir, em raros mas certeiros momentos, é um dos seus atributos menos negligenciáveis, aos olhos de quem sabe conhecê-lo e amá-lo.

O erro inverso – sorte, dessa vez, deploremo-lo, menos dos beócios que dos cinéfilos – é de dar mais crédito ao seu passado que ao seu futuro, e acreditar que ele já está comprometido na via da degradação. Tese que rejeito com não menos vivacidade que a primeira, e eu não gostaria por nada no mundo que possam tirar do meu livro o menor argumento em seu favor – o que me leva a minha primeira proposição. É no mínimo curioso - que isso seja dito em minha defesa – que a prevenção em relação aos aperfeiçoamentos técnicos dos quais o cinema pôde se beneficiar no decorrer de sua história (outrora o som e a palavra, há pouco o scope e a cor, e então recentemente os novos métodos de filmagem e as películas ultrassensíveis) fora precisamente o feito de “revolucionários”, “vanguardistas”, enquanto que nós, os conservadores, os clássicos, tínhamos logo percebido suas vantagens. Mas são esses os recursos que nossa arte extrai dela mesma, não das outras. Que ela saqueie suas rivais, eu aceito, mas com a condição de que ela não se coloque num estado de inferioridade em relação às mesmas: está aí todo o segredo da sua conduta. Também, quando nós denunciamos um cinema “literário”, não pretendemos de maneira alguma afirmar que a literatura escapa inteiramente ao seu domínio: ela faz parte do seu edifício pela condução da narrativa e pela fatura dos diálogos. Nós empregamos a palavra no sentido em que a aplicamos, pejorativamente, na pintura ou na música, sendo reconhecido que, excepcionalmente, grandes pintores (Gauguin) ou músicos (Schumann) se vangloriaram com razão da literatura.

Esses textos, eu o sei, traem uma incultura por vezes fingida, na maioria das vezes real. Eu faço meu mea culpa, sem procurar contudo reparar o mal, deixando o cuidado aos meus jovens confrades, mais esclarecidos, de estabelecer um paralelo entre os filmes que eles amam e as produções mais recentes da pintura, da música, da poesia ou do romance. Existem evidentes afinidades entre o cinema e as artes dos séculos anteriores ao nosso, ele como as outras artes, humanistas. Mas, talvez, não seria essa uma semelhança superficial? Uma abordagem mais desenvolvida nos desvendaria, eu pressinto, o artista contemporâneo menos separado do homem do que ele parece, e o cinema menos diretamente subjugado, no coração mesmo das obras mais clássicas, a esse corpo e esse rosto humanos dos quais ele fez seu motivo quase constante.



Essa distância que impressiona entre os objetivos e os meios do filme e aqueles da arte de hoje, essa irredutibilidade de seus domínios, era bom dela se conscientizar e afirmá-la fortemente, mas sem dúvida existe para além disso um acordo mais secreto, que eclode nas esferas superiores da contemplação estética, nesse empíreo em que todas as belezas se unem e se fundem em uma só. Nesse nível, é possível conceber uma fecundação de uma arte pela outra, mas não na fase em que se permanece normalmente, que é aquela das estruturas e que nos faz procurar a analogia lá onde reina precisamente a incompatibilidade total. Querendo reduzir tudo ao mesmo denominador, tomamos o acidente pela substância. É um pouco como se confundíssemos a cor do ferro e sua resistência e que acreditássemos tornar mais sólida uma tábua de pinheiro pintando-a de cinza. A modernidade, na maioria das vezes, é apenas uma tinta que o tempo logo fez desbotar. Com os anos, esses filmes recuam num passado ainda mais longínquo que esse que os viu nascer, numa espécie de infância, verdadeira dessa vez, da arte cinematográfica, infância mofina e prometida a uma morte precoce.

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Na verdade, o erro, o meu como aquele dos meus contraditores, fora sobretudo de considerar o clássico e o moderno em referência às outras artes, quando era preciso limitar-se à história do cinema e sua própria dialética do antigo e do novo. O problema foi mal colocado. Mas foram os detratores do cinema que o colocaram assim, e era preciso respondê-los. Por que, dizíamos, ainda dizemos, no momento em que o artista aprendeu a deformar as coisas e nos impor sua visão, por que o cinema, arte infantil, obstina-se estupidamente a copiar a realidade? Seja, eu irei ainda mais longe. Por que, acrescentarei, na hora em que a pintura descobriu a vaidade de reproduzir as coisas tais como elas são, o cinema dedica-se a fotografá-las? Ou ainda: para que a fotografia, quando existe a pintura?

E eis a questão levada ao absurdo, a causa passando antes do efeito. Pois a relação é inversa. É a fotografia que é primeira e a pintura contemporânea a segunda: esta só existe devido àquela. É a descoberta de Niépce que provocou, legitimou, o movimento que ilustraram sucessivamente impressionistas, Les Nabis, fauvistas, cubistas e outros. À saúde das artes plásticas de hoje importa a da foto, sua guardiã, sua tutora, e a menor dívida de reconhecimento que elas devem lhe pagar é de lhe conceder a liberdade completa de reger seu próprio domínio.

Aproveito, a propósito, a ocasião para homenagear André Bazin cujo artigo sobre a “Ontologia da imagem cinematográfica” operou uma verdadeira revolução na estética do cinema. “O cinema, ele diz, vem a ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica... O mito guia da invenção do cinema é, portanto, a realização daquele que domina confusamente todas as técnicas de reprodução mecânica da realidade que apareceram no século XIX, da fotografia ao fonógrafo. É o mito do realismo integral, de uma recriação do mundo à sua imagem, uma imagem sobre a qual não pesaria a hipoteca da liberdade de interpretação do artista”. Tudo o que há de menos contestável na minha obra é apenas, talvez, o desenvolvimento desse pensamento.

É decerto a fotografia – enriquecida da dimensão do tempo e alcançando, ao mesmo tempo, sua plenitude – que me parece ser, pensando bem, a pedra angular do edifício cinematográfico, mais ainda que o “movimento” do qual nossa arte compartilha a propriedade com a dança e o teatro. Captar o real e guardá-lo, eis seu único e modesto propósito, ao qual nos remete a análise de obras-primas da tela, mesmo aquelas – principalmente aquelas – em que a visão do artista se impõe com mais força. Dirão que eu faço pouco caso do “desenho animado” e da “cineplástica” cara a Georges Sadoul, que não encontrarão em nenhum lugar menção nestas páginas. Uma lacuna, certamente, mas esse preceito sempre me pareceu, com razão ou não, bastardo e eu lhe atribuiria de boa vontade, assim como meu confrade, o título de “oitava arte”, com o único fim de me ver livre dela. Claro, não me convém lançar proibições, mas o “cineplásticista” entra menos, na minha opinião, na categoria de cineasta que naquela de pintor. A ferramenta não faz o artesão, e quem brinca com a película, mesmo com a câmera, não será tanto homem de cinema se os utiliza com fins puramente plásticos: assim como se ele se servisse de uma pistola ou de um lança-chamas para pintar suas telas, nós não o chamaríamos de guerreiro.



Ora, quem negará que o realismo não seja da fotografia sua primeira virtude, sempre fiel ao posto no decorrer dos avatares de sua evolução? Há um mundo entre um negativo de Cartier-Bresson e um daguerreótipo. Eu não direi – o que, contudo, segue o sentido da minha ideia – que o primeiro seja mais real, ou verdadeiro, que o segundo: ele chocara, pelo seu ângulo de tomada, sua “matéria”, seu enquadramento, sua “instantaneidade”, seu espírito, os homens de 1860. O movimento da abstração em direção ao concreto, e vice-versa, não concerne a história da foto. Muito pelo contrário, a liberdade de interpretação cresce na própria medida da fidelidade de reprodução. Uma não oprime a outra de maneira alguma, e todo problema que concerniria sua oposição é um falso problema, tal oposição não existindo. O mesmo se verifica no cinema, mas continuemos. Existe uma fotografia dita de “pesquisa”, que conheceu seus dias de glória e da qual não pretendo negar o interesse. Se afastando deliberadamente do real, ela sempre se inspirara, querendo ou não, nas concepções pictóricas de seu tempo, impressionista em 1890, cubista em 1920, abstrata hoje. Mas são estes apenas ramos enxertados no tronco central que continua calmamente seu crescimento, sem se preocupar minimamente com eles. É da mesma maneira, eu acredito, que convém considerar os filmes ensaio ou de arte, ramo anexo e parasita da arte cinematográfica que até aqui foi assaz vigoroso para não perder aí muito de sua seiva.

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Que me desculpem remoer as evidências. Mas um ataque mais dissimulado aconteceu nestes últimos tempos e acabou por restituir um pouco de atualidade às minhas proposições. Não é tanto o realismo da imagem fotográfica que é agora denunciado, mas a sua objetividade. Sabemos o que, no cinema, chamamos de estilo “subjetivo”, e os maiores autores não deixaram de recorrer a ele. Consiste em confundir a visão do espectador com a de um dos atores do drama. Trata-se, mais frequentemente, de um processo narrativo cômodo – até cômodo demais – que nos permite, como que por um truque, entrar no pensamento do personagem. Mas tão logo estamos ali instalados, a imagem se revira como uma luva e ao avesso que apreciávamos substitui-se um novo território não menos opaco. O mundo permanece o mundo, quer ele seja percebido pelo espectador, autor ou ator ao ponto em que não é possível – todo cineasta o sabe – adaptar para a tela uma narrativa na primeira pessoa, sem que se faça ali figurar no bom e devido lugar o narrador, como o prova ao contrário, se necessário, a experiência reconhecidamente infeliz de A dama do lago.

Surpreendemo-nos então, assim sendo, de ver certos espíritos, que não poderíamos julgar mais tolos, pretendendo assimilar a imagem cinematográfica à imagem mental, e apresentar, ao sabor de sua inspiração, tanto a coisa que tenho em mente quanto aquela que eu vejo, não reconhecendo, aí, nenhuma diferença de natureza. Sem dúvida que o que eu tenho em mente e o que eu tenho diante dos olhos são ambos igualmente “reais”, mas à sua própria maneira. Colocá-los no mesmo plano, negar sua heterogeneidade, é traí-los. Inútil remeter a Platão, Descartes, Alain (para quem a imagem não existe, visto que não podemos contar de memória as colunas do Panteão) ou ainda a Husserl. O simples bom senso basta. Quando eu penso no Arco do Triunfo, eu sei muito bem que ele não está lá, pelo fato mesmo de pensar nele. Está aí um dado imediato que exclui qualquer erro, e, se algum erro houver, é que eu não o penso, mas sonho ou sou vítima de uma alucinação, neste caso minha relação com o objeto sendo a mesma, para mim, que na percepção desperta. Introduzir a confusão entre a lembrança e a coisa presente no pensamento do espectador ou do personagem vai contra todas as evidências e só pode ser um exercício vão e estúpido.

Diremos que o pintor se dá o direito de reunir, por exemplo, rosto e perfil na mesma figura, brincando assim com os dados da percepção que ele reconstrói à sua vontade. Mas, no cinema, tal síntese não é possível, assim como a análise que ela pressupõe. A confecção de um quadro é uma operação que vai do simples ao complexo, do abstrato ao concreto, e através da qual diversos elementos que destacamos artificialmente do real (linhas, valores, cores, etc.) são sucessivamente questionados, à medida que nós os colocamos sobre a tela: o espirito intervém, afirma sua liberdade, conserva o direito, palavra de honra, de proclamá-la absoluta e de gozar dela como ele quiser. A imagem fotográfica, ao contrário, é um dado, que surge instantaneamente – na sua totalidade concreta, sem que o artista deva fazer o mínimo gesto, senão apertar o gatilho: ele a recebe tal qual, e, tal qual, ele a entrega. Assim, seria ele incapaz, fotografando uma cadeira, de me dar sequer a suspeita da ideia de uma cadeira “pensada” que não é, de maneira alguma, bloco compacto, mas coisa fugidia, da qual, graças a atenção, eu devo justapor e manter os elementos, quaisquer que sejam aliás a prontidão e a riqueza da minha imaginação. O espírito do espectador de cinema é desprovido de toda liberdade e de todo talento do construtor. Fascinado pela tela, ele se contenta em registrar, ele é passivo.

Essa passividade não impede, contudo, uma certa agilidade, senão aquela do pensamento, ao menos de reflexos – reflexos abundantemente evidenciados pelos teóricos do cinema, desde a famosa experiência de Kulechov. Inútil então que o cineasta perca seu tempo figurando materialmente sobre a tela o que está no pensamento, já que nós o introduzimos nós mesmos virtualmente, pelo jogo de associação de ideias, e transferimos no personagem nosso próprio mundo mental: nosso medo, nosso desejo, nossa felicidade ou nossa pena serão os seus. Pois, para retomar meu exemplo precedente, o que importa mostrar, ou melhor, sugerir quando penso na cadeira, não é de maneira alguma a própria cadeira, mas o meu pensamento da cadeira que escapa, por essência, a toda representação sensível. Resta que um cinema de virtualidades corre o risco de se reduzir – o que eu frequentemente deplorei – a um mundo de signos, de estereótipos, em que se aliena a infinita liberdade de espírito. Se é tolo confundir a cadeira e a consciência que eu tenho dela, é vão querer anunciar apenas a minha intenção banal do momento: essa, por exemplo, que eu tenho de me sentar. Logo, essa cadeira nunca deve ser representada como um meio de dizer alguma coisa, uma única coisa. Convém que ela deixe transbordar uma saturação de significados em que será evidenciada sua própria condição de mobília, essa do homem que a fabricou para seu uso e, por conseguinte, do universo do qual faz parte. Todas as coisas que um grande cineasta não deixa de tornar sensíveis, pela solicitude com a qual ele saberá envolvê-las, o ângulo sob o qual ele conduzirá a sua abordagem, o momento que ele escolherá para fazê-las aparecer, pela arte, simplesmente, com a qual ele saberá colocá-las em cena.

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O que eu critico então, neste momento como outrora – e, nesse ponto, eu não mudei nem um centímetro -, na maioria daqueles que se debruçam sobre o cinema, mesmo com a maior benevolência, é de não o estimarem o bastante, seja quando eles lhe propõem enriquecer-se pelo aprendizado de um idioma estrangeiro, seja quando eles sabem reconhecer nele uma certa riqueza e especificidade de expressão.



Outrora profetizamos um futuro glorioso de “arte total”, arte que combinaria e adicionaria os poderes de cada uma das suas rivais. Ideia perigosa, porque ela autoriza todas as dissecações através das quais seus defensores acreditam ingenuamente desvelar sua alma. Demonstrado assim seu mecanismo, o filme aparecerá, com certeza, menos poético que a poesia, menos romanesco que o romance, menos musical que a música, menos pictórico que a pintura, e não demoraríamos muito para denunciar sua inferioridade em relação as outras produções artísticas. Em suma, estudamos o cinema sem ter tentado previamente entrever para que ele serve, quero dizer, para qual espécie de beleza ele nos conduz. Pois, na área da arte, que é aquela da finalidade, é o objetivo que é preciso distinguir, antes dos meios que para ele conduzem. Assim, desconhecendo a verdadeira utilidade do martelo, nós nos obstinaríamos, por exemplo, a utilizá-lo para tirar pregos e, graças à engenhosidade, nós o adaptaríamos bem ou mal a essa função, deplorando a imperfeição de uma ferramenta que é, contudo, uma das mais perfeitas que uma vez saíram da mão do homem.

Essa descoberta dos fins últimos da nossa arte é a conclusão de uma longa prospecção e ainda mais difícil, pois o vocabulário de que dispomos deve à criação pictórica, musical ou literária a origem de quase todos seus termos. Espero que minhas pesquisas anteriores, das quais leremos o essencial aqui, terão contribuído por pouco que seja nessa tarefa. Eu gostaria, antes de concluir, de expor em uma frase a soma de uma reflexão envelhecida, ao menos, quinze anos, a fim de reparar a desordem dessa coletânea e fazer com que as direções nas quais ela se engaja não se percam todas na areia. Na verdade, se eu procuro qual pensamento animou mais constantemente minhas proposições, só encontro sob minha pena essa verdade quase evidente, que eu inscrevo, no entanto, assumindo todos os riscos e perigos. O cinema é uma certa arte de apreender, de captar a vida (eu não digo a realidade, nem mesmo a natureza) no que ela escondia até então ao domínio da arte, de lhe forjar uma beleza – certamente suspeitada, mas antes dele inefável – e que não é outra que a própria beleza da vida enquanto tal.

Se eu me expresso tão banalmente, é que não acredito que eu possa hoje ultrapassar a fase de uma definição negativa; esta se pareceria tautológica. É já ponto passivo saber que o cinema não se dirige de maneira alguma onde nós gostaríamos de conduzi-lo e que ele tem bastante orgulho para não entrar em concorrência com outrem. Essa beleza que ele persegue, nós saberemos bem um dia cercá-la com frases mais concisas e termos mais apropriados. Eu não acredito, contudo, que ela se deixe um dia encerrar na estreiteza de uma fórmula. Pois se essa beleza for “uma”, fundamentalmente, é importante para senti-la verdadeiramente tê-la provado em cada uma das manifestações mais completas: a saber, as grandes obras do cinema em toda sua particularidade, em tudo o que lhes imprime o próprio gênio dos seus autores.

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Todo julgamento sobre arte é julgamento de valor. Não há exercício crítico possível sem uma necessidade de etiquetar, de notar, de classificar que pode, eu sei, se degenerar em manias e passar por terrorismo. Não encontraremos aqui a preocupação com a objetividade própria às obras eruditas em todos os aspectos valiosas que se propõem analisar as estruturas cinematográficas, extrair suas leis gerais, redigir as regras de uma gramática ou de uma estilística: em nenhum desses casos é necessário classificar os valores, pois os melhores exemplos, nessa perspectiva, são menos facilmente tirados de grandes obras que das medíocres, as primeiras sendo mais ciumentas em manter os segredos de sua fabricação, mais decididas a ludibriar as regras, mesmo se é verdade que elas, no fundo, as respeitem.



Seria, ao contrário, um engodo esperar descobrir o gênio próprio do cinematógrafo sem ter antes distinguido onde ele está e onde não se encontra de maneira alguma. Existe, evidentemente, um charme próprio a todos os filmes, e eu não pretendo negar o poder fascinante da tela. Outras pessoas que não eu o evidenciaram suficientemente, e evitei de dizer novamente o que já tinha sido dito e muito bem. O prazer do olho que dispensa a pintura, e o da orelha a música, prova menos ainda a grandeza de uma ou de outra. O que conta, é que elas foram o campo aberto para o exercício de alguns homens que as tornaram grandes mais do que elas os tornaram grandes, e sem que elas tivessem sido relegadas a categoria de pura arte de recreação. Da mesma maneira, o cinema, para mim, só é grande pois ele deu livre curso ao gênio de um Griffith, de um Murnau, de um Renoir, de um Hawks, etc., que fizeram algo – uma coisa imensa – disso que não passava, na origem, de um divertimento de feira.

Sim, me retorquirão, mas você não citaria antes X ou Y: todo o mundo não é forçado a compartilhar suas preferências! Eu sei, e não ignoro o que pode entrar de subjetivo nos meus gostos. Claro, a genialidade pode aparecer em outros lugares para outros olhares diferentes do meu, mas eu não deixo de constatar que os méritos destacados pelos admiradores de todos os X ou Y do mundo e da história colocam sempre de alguma maneira a ambição do cinematógrafo nitidamente aquém daquela das outras artes. Aqueles méritos que eu atribuo aos meus autores – que o são, graças a Deus, também de alguns outros cada dia, constato, mais numerosos – os colocam, senão além, pelo menos no mesmo plano. Não me engano então, de maneira alguma, achando grandes os nomes que citei, ou que eu cito ao longo destas páginas, visto que o cinema é, através deles, maior.

Ainda que o estudo direto de alguns cineastas esteja ausente deste livro dedicado a generalidades, a admiração que eu tenho por eles é o fio que me guiou e que permitirá, eu o espero, a quem os conhece e os ama, de melhor compreender meu propósito.

O prefácio a L’Âge classique du cinéma (julho de 1963) foi concebido como introdução a uma primeira coletânea (que permaneceu inédita) dos textos críticos de Éric Rohmer. Posteriormente, foi publicado como prefácio do livro Le celluloïd et le marbre – Suivi d’un entretien inédit, obra que reúne todos os segmentos do manifesto de Rohmer na Cahiers du Cinéma, “O celuloide e o mármore”. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

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