Encontro com Lisa García




Segunda (30/08), às 14h, iremos conversar com Lisa García sobre os filmes A vida como ela é (1978) e Céline (1992), dirigidos por Jean-Claude Brisseau. O encontro contará com tradução consecutiva e acontecerá via Zoom. Para participar, basta se inscrever no formulário: Conversa com Lisa García (google.com)

Lisa García (também conhecida como Lisa Hérédia ou Maria Luísa García) nasceu na Espanha, vive e trabalha na França. Montadora e atriz, trabalhou com Éric Rohmer (O raio verde, O amigo da minha amiga, A mulher do aviador) e foi a principal parceira de Jean-Claude Brisseau atuando em diversas funções em todos os seus filmes.

Link para os filmes com legendas em português: céline + la vie comme ça - Google Drive

Dossiê da Foco revista de cinema sobre Jean-Claude Brsseau: FOCO #6-7 - Índice (focorevistadecinema.com.br)
+ "Brisseau perigoso", por Camille Nevers: vestido sem costura - blog de cinema: Brisseau perigoso

Inscrições gratuitas
VAGAS LIMITADAS

Nosso veredito sobre “Annette”, a nova comédia-dramática-musical de Leos Carax




Por Jean-Marc Lalanne

Após nove anos de silêncio, o mais misterioso dos cineastas franceses retorna com uma ópera pop escrita com os Sparks. Uma exultação cinematográfica de uma audácia e de uma invenção extraordinárias, dentro da qual reside uma escuridão por vezes perturbadora.

Um plano-sequência virtuoso nos conduz dos bastidores do filme à sua ficção, de braços dados com seus participantes mais ilustres: os Sparks, Adam Driver, Marion Cotillard, entoando com alegria o encantador pop operático dos primeiros. Enquanto somos imediatamente arrebatados pela primeira cena orgástica e deslumbrante de Annette, uma ideia nos vem à mente: a mise en scène de cinema e o esporte de alto nível não se dão. Por outro lado, há na maneira de Carax um gosto pelo desafio, pelo desempenho, que o aparenta aos grandes esportistas: como se cada filme, sempre mais ambicioso e louco, recolocasse em jogo o título de campeão mundial.

De fato, a vivacidade dessa galvanizante cena introdutória, depois da qual, na imagem, atrás de um console no estúdio dos Sparks, o cineasta organiza o lançamento de seu filme, afirma-o com brilho: o campeão continua em grande forma. Sua capacidade de induzir uma energia elétrica que carrega cada plano com uma intensidade própria está intacta. O que segue não o desmente: todo o filme parece arrancado do cinema, como um haltere altamente carregado que é levantado do solo em uma inspiração por um atleta poderoso.

Contrariamente, porém, aos verdadeiros campeões esportivos, Leos Carax não beneficia de um treinamento intensivo ou mesmo de uma prática regular. Ao contrário, treze e depois nove anos separam seus três últimos longas-metragens. O que impressiona, em Annette, é também ver um cineasta exercer um dom tão constantemente adormecido, sem lutar para reencontrar instantaneamente seu uso pleno, exibindo a mais total posse de seus meios.

Aerólitos bizarros

Esses longos períodos de hibernação são provavelmente indispensáveis ao metabolismo da obra, como se o cinema de Carax precisasse atualizar lentamente seu software, manter-se em modo standby para se recarregar tranquilamente com o mundo ao seu redor. Porque é um dos paradoxos do cineasta, ou pelo menos de seus dois últimos filmes: aerólitos bizarros caídos não se sabe de onde, objetos empoleirados que não se assemelham a nada de conhecido, eles se prestam, entretanto, a descrever, comentar, restituir (mesmo de modo delirante e antirrealista) o mundo contemporâneo.

Holy Motors era uma espécie de tratado e de cartografia de todas as imagens que nos atravessam (analógicas, digitais, cinematográficas, informáticas...). Também articulando todas as naturezas de imagem (do cinema mudo, ao qual o filme faz múltiplas referências – Browning, Griffith, Murnau, Vidor –, aos posts de Instagram dos smartphones), Annette queima nas chamas de uma atualidade ainda mais forte em seu discurso: o filme condena a masculinidade tóxica, descreve as consequências devastadoras de um feminicídio e ecoa em todas as partes uma revolta tornada claramente audível no espaço público através do MeToo.

O imaginário amoroso de Leos Carax é estruturado por uma visão muito primitiva da ideia de casal. Ela encontra seus modelos, possivelmente, na leitura de Hugo (O Corcunda de Notre-Dame), na visão de King Kong ou então na do filme de Cocteau, apropriadamente nomeado A Bela e a Fera.

A análise patológica de pulsões violentas

Trata-se, ao mesmo tempo, de Esmeralda e Quasimodo, a atriz Fay Wray protegendo-se com seus braços da mão do grande gorila (em Annette, Marion Cotillard reproduz esse gesto com humor em seu leito conjugal enquanto diversos gorilas se infiltram no filme – o duplo mental de Adam Driver durante um plano furtivo em sua residência, a pelúcia de Annette...).




Em Sangue Ruim (1986), Denis Lavant (e suas extraordinárias competências de acrobata um pouco símio) e Juliette Binoche (tornada diáfana e vaporosa) constituíam o cristal perfeito deste imaginário. Hoje, Annette propõe sua desconstrução tortuosa.

Ao romantismo sentimental do mito original se substitui a análise patológica de pulsões violentas. A besta (prodigioso Adam Driver, ágil e desarticulado tal como exigido de um modelo caraxiano) tem o gosto pelo sangue; a bela é vítima, depois inquieta e vingativa (em suas últimas aparições, Marion Cotillard parece ter saído de um ghost movie japonês, como O Chamado de Hideo Nakata).

O filme mergulha nesse caldeirão de pulsões turvas sob o risco de se tornar muito pouco amável, transbordando de afetos cada vez mais amargos. Fascinado pela ferocidade de seu monstro, muito ocupado em erotizá-lo, ele termina por deixar pouco espaço a suas vítimas (muito rapidamente relegadas ao estatuto de espectro intermitente ou de estranho fantoche ao mesmo tempo mudo e cantante: é o golpe figurativo do filme que não será deflorado).

Um filme nodoso e complexo

Em sua apneia em águas nocivas, o filme atinge cenas de uma grande força analítica – como a sequência de stand-up, onde Adam Driver expõe sem filtros, em seu show, como a falência do desejo entre o casal se torna uma questão de vida e morte.

Mas em algumas de suas conclusões ele toca também em zonas de mal-estar e confusão, especialmente quando ele coloca lado a lado pai e mãe, assassino e vítima, como culpados pela criança Annette por a terem igualmente instrumentalizado. Uma forma um pouco apressada de preencher a lacuna existente entre o agressor e a agredida.

A culpabilidade é a grande questão de Annette. Aquela dos homens violentos; aquela, paradoxal, das mães mártires; aquela das crianças que, para se salvarem, condenam seus pais. Mas também mais amplamente aquela da arte, contra a qual o filme abre um processo perturbador. Ann (Marion Cotillard) e Henry (Adam Driver) são duas estrelas: ela, cantora de ópera, ele, comediante de stand-up. É, antes de tudo, a desigualdade de sucesso na virada de suas carreiras que semeará a discórdia.

Depois, mais profundamente, é ver sua esposa morrer no palco a cada noite que provocará em Henry um desequilíbrio que conduzirá ao drama. Em uma cena onírica, todos os grandes papéis agônicos de ópera interpretados por Ann (Madame Butterfly, A Dama das Camélias) se sobrepõem como se fosse sua arte quem, desde sempre, se alimentou com crueldade do sacrifício das mulheres. Finalmente, a condição para a libertação de Annette será renunciar à sua arte, cuja beleza enfeitiçadora é o estigma de demasiados infortúnios.

É o paradoxo desse filme nodoso e complexo: sua deflagração formal atordoante, a inspiração poética que o conduz a cada instante, é absorvida em uma meditação cética sobre a toxicidade da arte. As canções mais belas, ele parece nos dizer, são também venenos. Um elogio à sabedoria do silêncio é a conclusão paradoxal dessa tonitruante ópera pop.

Notre verdict sur “Annette”, la nouvelle dramédie musicale de Leos Carax foi publicado originalmente na revista Les Inrockuptibles em 22 de junho de 2021. Tradução : Luiz Fernando Coutinho.

Encontro com Hélène Frappat








Quarta que vem (25/08), às 14h, iremos conversar com Hélène Frappat sobre os filmes "La paura" (Roberto Rossellini, 1953) e "Gaslight" (George Cukor, 1944). O encontro contára com tradução consecutiva e acontecerá via Zoom. Para participar, basta se inscrever no formulário: Inscrições - Conversa com Hélène Frappat (google.com)

Hélène Frappat é crítica de cinema, tradutora e romancista. Foi militante anti-negacionista, uma das fundadoras da revista La Lettre du Cinéma, trabalhou na rádio France Culture e na Cahiers du Cinéma (onde escreve, eventualmente, até hoje). Escreveu alguns ensaios importantes sobre Jacques Rivette, Roberto Rossellini e John Carpenter. Para o Cineclube 1121, Hélène Frappat falará de duas obras fundadoras dos "gaslight movies", no cruzamento entre cinefilia e feminismo.

Link para os filmes com legendas em português: la paura + gaslight - Google Drive

Alguns textos de Hélène Frappat em português:
*Sobre "A vida é bela" de Roberto Benigni: vestido sem costura - blog de cinema: Grande papai?
*Sobre a figura da romancista em "Let them all talk" de Steven Soderbergh e alguns outros filmes: vestido sem costura - blog de cinema: A mulher-olho sem rosto

Inscrições gratuitas
VAGAS LIMITADAS

Axelle Ropert, cineasta




Por Luiz Fernando Coutinho

I

Axelle Ropert, quando jovem, sonhava em ser romancista. O temperamento clássico, entretanto, a afastou da literatura e a aproximou do cinema: o romanesco ainda lhe parecia possível neste último. Na Cinemateca Francesa de seus anos de juventude, travou contato com figuras como Jean-Claude Biette, Jean-Claude Guiguet e Pierre Léon, críticos e cineastas de um cinema misterioso e simples. Junto de Serge Bozon, conhecido dos anos de liceu e hoje pai de seus dois filhos, explorou os caminhos da crítica de cinema na revista La Lettre du Cinéma, onde um pequeno grupo cinéfilo se formou e se lançou à produção de filmes: Ropert atuaria em obras de Judith Cahen, Benjamin Esdraffo (compositor de seus filmes) e do próprio Bozon, para quem, além disso, escreveria roteiros. Bozon, como em contrapartida, é ator em todos os seus filmes, como protagonista ou coadjuvante, como intruso ou centro emocional. Ropert assina seu primeiro filme aos 32 anos, depois de um longo processo de maturação de suas influências. A demora em assinar um primeiro filme não precisa ser encarada com ressentimento: o tempo parece ter permitido a Ropert um distanciamento necessário, em termos de amadurecimento do olhar, da matéria em que se via implicada.

Logo no início de Mystification ou L’histoire des portraits, de Sandrine Rinaldi, Ropert faz uma ponta como uma pedestre que caminha pela rua. A aparição é curiosa, posto que o cinema de Ropert se funda na impressão de uma diretora que soube contemplar, em meio aos passeios a pé pela cidade de Paris, suas forças discretas. Ou que soube simplesmente observar, durante suas longas estadias nos cafés com vista para as ruas parisienses, os corpos que transitam com coragem. Em cada pessoa com quem cruza na rua, Ropert parece enxergar a possibilidade de um universo, da mesma forma que no interior de uma atmosfera intelectual demasiado racional ela entrevê o rasgo possível e delirante da emoção.

Quando os grandes artistas são tomados por essa espécie de arroubo diante da revelação de uma matéria enterrada sob as aparências, o trajeto de suas palavras, gestadas no olhar surpreso e na boca entreaberta, geralmente conduz ao silêncio de uma resignação serena, mas no caso de Ropert existirão sempre imagens, sons e palavras para lhes permitirem a expressão do que seu olhar atento capta nos detalhes da existência. Procedendo por este método, nutrindo-se da vida mesma, Ropert faz do cinema uma forma para processar a experiência vivida. Esta dialética nobre, excitante, sempre jovial, se sobrepõe às demonstrações de poder, às brincadeiras de estilo e aos jogos ensimesmados dos cineastas que preferem desconectar-se da vida para nutrir-se do cinema.

II

Estrela violeta, seu primeiro filme, um média-metragem, nos mostra um alfaiate solitário (Bozon) que trabalha durante o dia e frequenta um curso sobre literatura francesa à noite. O tema principal das primeiras aulas é Jean-Jacques Rousseau, ou, antes, a solidão de Rousseau. O professor, ele também um solitário, tenta convencer seus alunos que a solidão é um mal. Há nesse filme uma gravidade na encenação que se dissipa com o despojamento dos filmes seguintes, e momentos como o passeio bucólico na companhia de um Rousseau interpretado por Lou Castel sensibilizam e corroem esse quadro de rigidez auto imposta. Por outro lado, valendo-se de um olhar generoso, nunca predicativo, mas sempre disposto, nunca intrusivo, mas sempre acolhedor, Ropert observa seus personagens solitários como alguém que compreende uma coisa ou outra sobre a solidão, sobre o não pertencimento, sobre a estranheza de sentir-se deslocada. Um manto de melancolia se impõe à existência como a noite se impõe ao dia (permitam-me dizer que, mesmo quando diurnos, seus filmes são noturnos), e o registro cândido desse exílio sentimental, a partir de um olhar embebido em doçura, sedimenta o terreno para os filmes seguintes, mesmo que seu valor se meça por sua singularidade.

Em dado momento do filme, o alfaiate de Bozon escuta na íntegra uma canção no rádio. Cena semelhante se vê em La Famille Wolberg. Ropert mantém uma admiração especial por aqueles que reservam minutos do seu dia para ouvir uma canção, olhar pela janela, escutar o rádio, contemplar o rio, pensar sobre nada em especial. Ela mesma sente precisar desses pequenos rituais capazes de abrir uma fenda no cotidiano produtivista. Nos filmes, as fendas atuam como suspensões do fluxo dramático: do longo passeio que a câmera promove pelos ramos de uma árvore (Estrela violeta), passando pela distensão do tempo nos instantes de silêncio que antecedem o primeiro beijo (La prunelle des mes yeux), à porta automática que insiste em não fechar (Mostre a língua, moça) – esta talvez a imagem mais bela do cinema de Ropert, metáfora assombrosa para um coração apaixonado que insiste em bater.

Essas músicas e canções que os filmes integram nas narrativas são mais do que acessórias. Em La Famille Wolberg – melodrama familiar que inverte o ponto de vista de Deus sabe quanto amei (Vincente Minnelli, 1958), focando-se menos no intruso de Frank Sinatra e mais no patriarca de Arthur Kennedy –, dois irmãos em pleno desentendimento compartilham, no entanto, o gosto pela música. De um lado, temos o melômano interpretado por François Damiens, prefeito da cidade e pai de família, e do outro o andarilho interpretado por Bozon, portando sempre consigo um violão. Em La prunelle des mes yeux, o filme musical (não no sentido genérico) de Ropert, os irmãos protagonistas são músicos especializados em repertório grego. Também a mulher por quem um deles se apaixona, vizinha cega do mesmo prédio, toca piano e faz das notas musicais uma forma de espalhar o amor. É o encontro – ou desencontro – da música clássica e do rebético, das teclas de piano e dos acordes de bouzouki. Elise, a personagem cega interpretada por Mélanie Bernier, só sabe tocar Für Elise, e é esta a melodia que não só invade o apartamento dos irmãos, mas funciona como música extradiegética em momentos-chave da narrativa, atuando como tema musical para a paixão em vias de se construir (ou destruir).

La prunelle des mes yeux propõe uma reconfiguração do cinema de Ropert. Estranha proposição, esta do filme: e se o mundo, na verdade, não existisse para ser observado ou contemplado por olhos desinteressados? E se ele não existisse sequer para ser visto? Elise, a personagem cega, entre os caminhos tortos de seus sentimentos, entre os encontros e desencontros circunstanciais no elevador de seu prédio, entre as emoções que não domina completamente, pode até não ver o mundo, mas o experimenta pela via sentimental. Nesta fascinante atualização de Sublime obsessão – o personagem masculino que se aproxima da mulher cega fingindo ser alguém que não é, o disfarce inicial que começa a erguer um edifício de amor, tudo isto envolto por uma metafísica duvidosa –, Ropert parece sublinhar que ao conhecimento do mundo – e suas decorrências céticas, o ver para crer, etc – se sobrepõe com maior intensidade o valor de uma relação sensível, afetuosa e misteriosa com a realidade aparente.




III

Em Estrela violeta, La Famille Wolberg ou Mostre a língua, moça, a solidão nunca é produto de um acaso. Os personagens de Ropert são bem inscritos no interior de determinadas instituições (a medicina, a prefeitura, a maternidade) ou de profissões específicas (alfaiate, músico), e por mais universais que possam ser as emoções por eles partilhadas, as trajetórias dramáticas participam de um contexto social e cultural específico (o que explica, talvez, o interesse por comunidades específicas, como a judaica ou a grega). A França dos filmes de Ropert, ela nos lembra, é a França de Rousseau, mas também de Descartes; é o país que sentiu na pele e na consciência a união do “Discurso do Método” e “Os Devaneios do Caminhante Solitário”. Se há uma dimensão trágica em seus filmes, ela passa pelo dilaceramento experimentado pelos personagens situados algures entre a razão e o sentimento. A solidão profunda, no caso, surge como consequência desse desacordo profundo entre a vontade e a realidade, o desejo e o racional, o sonho e o palpável.

Porque o mundo nem sempre se inclina às vontades dos personagens, resulta uma espécie de melancolia silenciosa. Podemos pensar, aqui, no patriarca de La Famille Wolberg, obrigado a lidar com a incompatibilidade entre suas intenções para com a família e os rumos tomados pela narrativa. Não só ele, mas o professor de Emmanuel Levaufre em Estrela violeta, o médico de Laurent Stocker em Mostre a língua, moça, o colega de trabalho, também cego, de Swann Arlaud em La prunelle des mes yeux: os personagens se isolam porque suportam o fardo desse desacordo, desse descompasso entre os sentimentos mais inefáveis e os fatos mais concretos. A palavra frustração já não lhes cabe, porque a resignação final é sempre a prova de uma educação sentimental.

Nesse contexto, quando o médico desvia seu olhar da mesa de trabalho para repousar na superfície translúcida de um vidro em Mostre a língua, moça, quando o caminhante escapa da cidade para explorar o verde de um bosque em Estrela violeta, quando o músico deposita brevemente sua atenção sobre o trem que passa no horizonte de uma ponte em La prunelle des mes yeux, ou quando o prefeito engolfa-se nas sombras do quadro noturno em La Famille Wolberg, a força emocional dos gestos se apoia, sobretudo, na importância das escapadas, dos sonhos e das fugas. O mundo, para Ropert, pertence aos sonhadores, figuras anônimas e assalariadas cuja existência reserva uma parcela de deserção no contexto da responsabilidade. O personagem de Bozon em La Famille Wolberg, o andarilho desapegado, renuncia totalmente ao materialismo da vida capitalista, preferindo a boemia e seus acordes de violão às obrigações mundanas, mas quem poderá dizer que ele é feliz?

A vida, para Ropert, precisa ser encarada por aquilo que é: um aprendizado constante, uma resignação terna, uma compreensão desanuviada dos compromissos sociais ingratos, porém inevitáveis. O refúgio possível para essa idade adulta da existência, se refúgio há, encontra-se tanto no amor altruísta (existe outro?) quanto nos sonhos de meio período dos solitários resignados: atos árduos, extenuantes, por vezes penosos, característicos das pessoas que ainda conservam em si uma dose de coragem.

Em Mostre a língua, moça, o racionalismo científico e o emocionalismo de teor melodramático coexistem. À imagem anatômica do corpo humano, pendurada na parede do consultório médico dos irmãos Boris (Cédric Kahn) e Dimitri Pizarnak (Laurent Stocker), com seus músculos, ossos e órgãos internos, impõe-se uma carga dramática propulsionada por sentimentos inauditos. Um dos conflitos centrais do filme passa pela tentativa de se medir a desmedida, regrar os excessos e conter os impulsos, mas nesta luta eterna entre o que explode dentro de nós e o que busca circunscrever racionalmente esta explosão já não se pode (leia-se: não se deve) haver um vencedor possível. Quando acuada por Boris para escolher entre ele ou o ex-marido, a mulher interpretada por Louise Bourgoin é enfática em sua pergunta: “Eu não posso ser irracional por um instante?”. Em defesa do erro, depois do perdão. Humanos.




Ropert escolheu filmar nas ruas de seu bairro em Paris, o 13º arrondissement, também conhecido como “bairro chinês”. Se as histórias de seus filmes sempre se obtêm pela contemplação e imaginação a partir do cotidiano, também da arquitetura desse bairro chinês – supostamente banal, urbana e comercial – a cineasta extrai um universo de cores vibrantes e atmosfera onírica. Igualmente, da fotografia em digital atualmente responsável por certa platitude e assepsia do cinema contemporâneo, Ropert extrai texturas singulares e luzes estonteantes (Céline Bozon, fotógrafa de todos os seus filmes, com exceção do último, buscou inspiração nas noites nova-iorquinas de O rei da comédia). Mais do que transportar a vida ao terreno do sonho, a cineasta demonstra se interessar pelo caminho inverso: dos sonhos colher um filtro para a observação da vida. Neste universo diegético colorido e vivo, e como grande detalhista que é, Ropert concebe sua arena para o conflito primordial entre a razão e a emoção: os médicos trabalham durante o dia, enquanto a mãe por quem se apaixonam trabalha à noite; as formas retilíneas do consultório contrastam com as formas arredondadas do apartamento da mulher; os tons azulados das roupas e dos cenários masculinos – mesmo o lusco-fusco final no mediterrâneo – se contrapõem aos vermelhos de Louise Bourgoin.

Apaixonar-se, entregar-se às emoções que não se podem apreender ou mesmo compreender, desafogar-se do expediente racionalista que consome as horas diárias, “perder um paciente” quando este passa a te odiar, esperar e converter a espera em uma razão de ser dolorosa; perdoar, perdoar obstinadamente, abdicar do itinerário médico e fazer da visita na casa de uma paciente a ocasião para um chá e um cigarro, passear pelas ruas noturnas pelo simples gosto do passeio, dormir na cadeira de um café e acordar com a mulher amada oferecendo um doce de sua infância, dormir e sonhar, sonhar até que os sonhos infestem as aparências e consumam o asfalto da rua, os postes de luz, as tintas dos muros, o ar da noite. Mostre a língua, moça, ou o último filme romântico.

IV

“Descreva esta imagem”, é o que pede Axelle Ropert aos atores e atrizes por ela convidados em Truffaut au Présent. A imagem, no caso, é uma fotografia de François Truffaut em O quarto verde. Em um cenário único, a cineasta, como em um processo de casting, entrevista os artistas; indaga-lhes sobre o amor, sua personalidade, suas esperanças para o futuro, entre outros. O filme se estrutura em três segmentos: atrizes, atores e casais. Nos dois primeiros, o jogo é o mesmo: uma figura diante da câmera e as mesmas perguntas sendo feitas pela voz acusmática de Ropert, posicionada no extracampo. A cineasta, entretanto, opta por articular as respostas umas às outras, ou seja, as entrevistas nunca se desenrolam integralmente, seguindo o fluxo da entrevista, mas são montadas de forma que acompanhem as perguntas e as diferentes respostas para elas. Assim, cada pergunta de Ropert circula em uma espécie de ronda entre os entrevistados, para enfim retornar à cineasta e fazer surgir outra.

Um elemento lúdico logo se revela, constituído pela forma como as mesmas perguntas repercutem de maneira diversa nos corpos na imagem. Mais do que respostas diferentes, os corpos emitem sinais singulares: alguns preferem o silêncio, outros a fala; alguns demoram a responder, outros são instantâneos; alguns buscam as palavras no teto do estúdio, outros as encontram no olhar devolvido para a câmera; alguns sorriem, outros se mantêm compenetrados; alguns parecem confusos, outros resolutos; alguns aportam uma voz cortante, outros uma voz insegura; alguns gesticulam, outros permanecem imóveis. A opção pela câmera estática e pelo ponto de vista único, mais do que uma predisposição da direção, sustenta e potencializa essa rede de singularidades. Pela semelhança dos enquadramentos, bem como pela escolha do preto-e-branco, os corpos diante da câmera participam de um mesmo contexto. Uma vez inseridos dentro de uma mesma máquina, eles podem, enfim, se particularizar: as variações faciais, gestuais ou vocais se tornam mais visíveis.




Como os dois primeiros segmentos contrastam marcadamente os sexos – atrizes e atores, feminino e masculino –, as singularidades nascem também deste confronto da diferença sexual. À determinada questão de Ropert, os homens parecem responder de uma forma e as mulheres de outra. O filme, neste sentido, nos incita não só a perceber as particularidades de cada indivíduo, mas as relações que essas particularidades estabelecem com o gênero. No último segmento do filme, “casais”, o jogo se configura de outra maneira, pois Ropert junta um ator e uma atriz no mesmo quadro para contracenarem. A lógica comparativa que perpassava o filme, no entanto, não se perde: o que existe é uma única cena, com as linhas de diálogo idênticas, encenada por intérpretes diferentes; assim, embora o material escrito seja o mesmo, o trabalho singular de cada ator e de cada atriz produz diferenças fundamentais em cada encenação.

Objeto supostamente extraterrestre na filmografia de Ropert, encomendado para uma exposição sobre Truffaut na Cinemateca Francesa, o filme em nada deve ao restante de suas obras. Nele se percebe um traço formador, basilar e poético, do cinema da diretora: o interesse genuíno pelas figuras humanas, suscitado, paradoxalmente, por uma contemplação desinteressada de seus gestos, hábitos e vozes – na revista La Lettre du Cinéma, aliás, Ropert foi quem conduziu com maior entusiasmo a “política dos atores e das atrizes”. Aqui, como nos outros filmes da cineasta, nada de instrumentalização calculada, demonstração estrangulada, naturalismo pálido, ostentação estilística, academicismo ou cartilha sociológica; antes um profundo, excitante e libertador arejamento surgido da observação apaixonada.

O traço de elegância, no cinema de Ropert, já não se dimensiona pelos aromas perfumados de um estilo natimorto ou autocelebratório, nem pelo seu inverso igualmente nocivo, de uma estética televisiva dada às vicissitudes da assepsia e do nivelamento dramático, mas por um formalismo radical que tende a desaparecer, esconder-se, tornar-se invisível por detrás de uma mise en scène equilibrada, intuitiva mas precisa, cujas modulações acentuam ou suavizam as situações dramáticas. Pelo cinema de Ropert a arte da mise en scène conserva seu fio vital: a ênfase em um gesto, em um desenho de luz ou em um objeto cotidiano adquire o peso de uma revelação.

Se Ropert soube encenar este mundo que se apresentou diante de si, é porque compreendeu a multiplicidade que habita um único ser humano, bem como as possibilidades infinitas por ele engendradas. É porque compreendeu que sua câmera não deve julgá-lo, condená-lo ou absolvê-lo, mas estabelecer com ele um contato entre iguais. Moral hawksiana, talvez, mas revestida por um véu melodramático: seus filmes testemunham um mesmo investimento, uma mesma precipitação em direção ao mundo aparente e racional, buscando entrever e sentir por detrás da matéria, por trás deste ser humano múltiplo, o movimento das pulsões e dos sentimentos.

“A vida é imensa”, diz o personagem de Bastien Bouillon em La prunelle des mes yeux. Nesta imensidão que faz eco e afunda-nos na solidão, mas que nos estende universos inexplorados e aventurosos, ouvimos a voz frágil de Bozon, citando Lucrécio, no final de La Famille Wolberg: “nada se parece consigo mesmo neste mundo onde nada é estável; de estável há somente uma violência secreta que subverte tudo”.

É preciso (re)descobrir Axelle Ropert.



Cinéfila pela tv




Por Pascale Bodet

Eu era do interior.

As coisas sérias começaram com o videocassete Akaï comprado pelos meus pais em 1981 ou 1982, mais ou menos aos meus dez ou onze anos. Dos doze aos dezoito anos, minha vida girou em torno desse videocassete. Meus pais compravam regularmente lotes de dez fitas VHS de 180 minutos ou de 240 minutos. Se eu não recolhia no minimo 60% do lote, ao passo que nós éramos quatro, era a crise. Eu entesourava as fitas sob o meu colchão. Ninguém tinha direito de se aproximar. Eu geria meu estoque em função da grade de programas semanais, fazendo malabarismos entre os filmes transmitidos nos três canais nacionais. Às vezes eu sacrificava uma transmissão, porque a semana anterior não tinha sido suficiente para liberar lugar nas minhas fitas, apesar de regraváveis. Ou então, quando dois filmes passavam na mesma hora, podia acontecer de eu assistir um ao vivo enquanto o videocassete gravava o outro. No entanto, eu não tinha o direito de ver filmes na tv à noite quando eu tinha escola no dia seguinte. Entre 1982 ou 1983 e o verão de 1989, assim que eu chegava da escola, eu me trancava na peça do videocassete, que era a entrada do apartamento. Era o meu domínio. Eu não via os filmes em família. Os únicos filmes que eu gostava de ver com alguém, nessa idade, eram os musicais com a minha irmã. O artifício, próprio do gênero, nos colocava num estado de felicidade absoluta. Uma vez, nessa entrada que eu me apropriava como eu havia me apropriado do videocassete e das fitas, eu quis mostrar uma cena de O Evangelho segundo São Mateus de Pier Paolo Pasolini ao meu papai, porque ele era crente. Resultado: ele se surpreendeu que o asno que víamos na tela fosse tão dócil. Eu não compreendia porque ele se limitava a essa visão terra-a-terra. Um filme era para sair do cotidiano e decolar. Todas as quartas, a Télérama chegava pelo correio, e eu começava a programar os visionamentos e as gravações do domingo à noite de sexta seguintes (no sábado, nunca tinha filme para ver).

Tinha “Le Cinéma du dimanche soir”, às 20h30 na TF1, filmes populares como Tess de Roman Polanski (1979) ou Les Compères de Francis Veber (1983), que eu esnobava um pouco, porque os filmes que não eram nem datados, nem afastados no espaço, nem raros, não me pareciam suficientemente exóticos.

Me interessava sobretudo, no domingo, “Le Cinéma de Minuit” de Patrick Brion, lá pelas 23h30 na FR3. Era meu programa preferido. Os filmes italianos dos anos 50 e 60, como A longa noite de loucuras de Mauro Bolognini (1959), os filmes franceses dos anos 30, os filmes B hollywoodianos dos anos 50, as curiosidades, os mudos com Lilian Gish. Eu conhecia Françoise Rozay, eu adorava L’Inhumaine de Marcel L’Herbier (1924).

Na segunda à tarde, às vezes eu via tranquilamente o filme da tarde na TF1, às vezes eu tinha aula e gravava. Me parece que esse programa de clássicos entrou no ar mais tarde, quando eu já estava no ensino médio. Segunda-feira, dia 24 de março de 1986, Caravana de bravos de John Ford (1950) às 15h35; segunda, 16 de março de 1987, No silêncio de uma cidade de Fritz Lang (1956) às 15h30.

A segunda à noite na TF1 frequentemente tinha filmes interessantes. Eu muito provavelmente vi gravado Esta mulher é proibida de Sidney Pollack (1966), transmitido segunda, dia 11 de fevereiro de 1985 às 20h30. A Mort l’arbitre de Jean-Pierre Mocky (1983), transmitido segunda, 24 de março de 1986 às 20h30 no quadro da sessão “L’Avenir du futur”, com debate às 21h55: “Somos todos violentos?”. Eu acho que não gravei o debate. Eu encontro essas coisas precisas na Internet, e eu me lembro dos filmes.

Uma terça por mês, a partir das 20h30 na FR3, tinha o programa duplo da “La Dernière séance” apresentado por Eddie Mitchell, filmes quase exclusivamente hollywoodianos dos anos 50, às vezes dos anos 40, às vezes dos anos 60. Em 29 de maio de 1984, eu certamente vi Meu pecado foi nascer de Raoul Walsh (1957) e gravei A noiva era ele de Howard Hawks (1949). Acontecia, com os meus filmes preferidos, de eu gravar, a partir da fita VHS, a música e pontas de diálogos com um gravador de som em fitas de áudio. Eu retornava, no banho, ao filme sem a imagem, por exemplo com Yvonne de Carlo gritando “Hamish” sobre a musica tema do filme de Walsh.




Na quinta à noite, na minha lembrança, passava filmes franceses dos anos 70 que eram, aos meus olhos, sulfurosos: Violette Nozière de Claude Chabrol com Isabelle Huppert (1978), La Dérobade de Daniel Duval com Miou-Miou (1979). Eu me lembro desses dois.

Chegava o “Ciné-club” de sexta na Antenne 2. Em outubro e em novembro de 1984, graças ao videocassete, pois estava fora de questão na época dos meus treze anos que eu ficasse acordada para ver um filme até meia-noite ou uma hora, eu gravei e depois vi: 12 de outubro, Fúria do desejo de King Vidor (1952); 19 de outubro, Quando fala o coração de Alfred Hitchcock (1945); 26 de outubro, Rebecca, a mulher inesquecível de Alfred Hitchcock (1940); 2 de novembro, Desonrada de Josef von Sternberg (1931); 19 de novembro, Anjo de Ernst Lubitsch (1937); 16 de novembro, O diabo feito mulher de Fritz Lang (1952); 23 de novembro, Eterna ilusão de Jacques Becker (1949); etc. Em torno dos meus quinze anos, eu tinha, sem dúvida, o direito de ver o Ciné-club ao vivo, eu me lembro desse prazer de descobrir sozinha um mundo desconhecido, anoitecendo, noite adentro.

Minha cinefilia adolescente veio então da televisão.

Quanto às salas, a partir dos quinze anos, se a sessão terminasse antes das 19h, eu tinha direito a ir ao TNB (Théâtre National de Bretagne) onde eram programados outros filmes de patrimônio como Os incompreendidos de François Truffaut (1959), Júlio César de Joseph L. Mankiewicz (1953), Othello de Orson Welles (1952).

Eu não gostava de ver os lançamentos comerciais, apesar de ter visto A cor do dinheiro de Martin Scorsese (1986) com pessoas da minha idade. Eu gostava muito do Paul Newman mas Tom Cruise não me dizia nada. Eu também vi Rocky 3 – O desafio supremo de Sylvester Stallone (1982) durante uma viagem a Turim com a minha turma da quinta série.

Minha mãe me acompanhou para ver Aos nossos amores de Maurice Pialat (1983), La Nuit porte-jarretelles de Virginie Thévenet (1985), Candy Mountain de Robert Franck (1988), nós fomos em família ver Amadeus de Milos Forman (1984) e Sangue ruim (1986) de Leos Carax, mas foi sozinha que eu preferi descobrir Os amores de uma loira de Milos Forman (1965) com o meu sistema das fitas ou Boy Meets Girl de Leos Carax (1984) durante uma retrospectiva Carax no TNB.

Resultado dessa educação: quando eu cheguei em Paris e comecei a andar com pessoas da minha idade, eu conhecia Jean Gabin mas não Tom Cruise. Eu adorava Marlene Dietrich mas não conhecia nada de Michael Jackson. Eu amava Jaque-Catelain mas eu mal sabia quem era Gérard Lanvin. Eu não tinha visto E.T. – O extraterrestre de Steven Spielberg (1982). Eu não conhecia nada de ficção cientifica e do cinema fantástico para adolescentes dos anos 80. Eu não tinha visto nem Veludo azul de David Lynch (1986), nem A mosca de David Cronenberg (1986). Eu não sabia se eu estava mais para Lynch ou mais para Cronenberg, não me perguntava se eu estava mais para Stallone ou mais para Schwarzenegger. Nada disso passava na tv. Eu era solitária, apaixonada, esnobe.

Aos quinze anos, eu vi Noites de lua cheia de Eric Rohmer (1985), e a partir daí, como varias meninas na França, eu fazia um penteado com coque para parecer a Pascale Ogier. Para ser tão branca quanto ela e as atrizes dos filmes mudos, eu passava também o creme branco japonês da marca Shu Uemura e batom escuro. Até o vestibular, eu andava por todos os lugares com essa maquiagem. Depois, eu terminei encontrando cinéfilos da minha idade e nós nos entendemos.

Cinéphile par la télé foi originalmente publicado na revista La Vida Útil n°4, dezembro de 2020. Tradução da versão francesa: Miguel Haoni.

“Mas, não o anel no dedo…”




O pescoço de Clarisse, um média-metragem de Benjamin Esdraffo

Por Camille Nevers

Instantâneos roubados (sonhos movediços): um dândi de guarda-chuva pegando um táxi sob o sol forte… A porta de um hotel (com o coração) batendo sem barulho, metrônomo ensurdecido – uma exata medida... a bonita recepcionista de olhos fundos que piscam quando ela retira seus óculos... um homenzinho verde (de esperança, de ciúme?), bigode postiço como um hemistíquio no seu jogo duplo, que se demora, com passos de lobo, olha de longe um avião decolar... esse senhor do anel astrônomo, caído não sabemos bem de que planeta (e porém... Saturno!), saúda por engano uma senhorita perseguida no topo de uma rua… a conversa lânguida de duas amistosas rivais, nariz empinado, poltronas afundadas, no ritmo de um leque... o de um casal que conversa sentado numa taberna indiscreta, e eis que em plena luz do dia a mulher percebe, pelo vidro, uma estrela cadente... – Mais uma que eu teria perdido!... Não perca, se possível, O pescoço de Clarisse.

Um filme feito à imagem dessa rua por onde roda o táxi desde a abertura: em declive suave – como se estivesse em ponto morto, e se deixando levar pelo desnivelamento natural, por uma lei da gravidade transformada em algo absolutamente sem peso, a suave deriva de suaves sonhadores, de eternos conspiradores suspirantes, à tranquila “evasividade”, passeio amoroso estrelado, cintilações mais secretas, sonho das intermitências e das idades do coração. Seguir o guia, seguir o anel... O “anel no pescoço” de Clarisse sinaliza para a narrativa, elo após elo, reconstituir a improvável corrente, a galáxia das alianças revelada de maneira tateante. Entrelaçamentos das gerações, repetições de encontros frustrados e dos amores perdidos, tudo aqui conspira e suspira, parece murmurar a história de uma futura lembrança – a de uma primeira vez, eternamente recomeçada, de um consentimento, de uma aquiescência, o “sim” de um juramento, ou de uma promessa. Essa palavra dada ao amado, será talvez a hora, mais tarde, de cruzar os caminhos engraçados, tangentes e paralelos, de se contar a história mútua, de recolocar em ordem, a menos que o segredo que tenha levado a isso permaneça entre eles, sem maiores esclarecimentos, como um talismã. Suavemente, Antoine e Clarisse, Pierrô e Colombina da nossa época, afastam-se lado a lado na noite, com um ar sonhador, de quem habita seu sonho a dois.

Sem pensar em beijá-la / E sem automóvel / Nos braços de Colombina / Ele tomava todo o seu tempo, todo o seu tempo / Para lhe oferecer seus vinte anos. (Les compagnons de la chanson, Au temps de Pierrot et Colombine)

“Mais, pas la bague au doigt…” foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°20, outubro/novembro/dezembro de 2002. Tradução: Miguel Haoni.

A mulher-olho sem rosto



A figura da romancista em Let them all talk de Steven Soderbergh e alguns outros filmes

Por Hélène Frappat

Do jamais visto

É a história de uma mulher sem história. Uma mulher jamais vista, uma mulher jamais nua, uma mulher sem corpo. É a história de uma mulher invisível: uma mulher-olho, cujo rosto se reduz a um par de óculos; uma mulher-orelha, que compila – rouba, vampiriza, espiona – as histórias dos outros. É a história de uma mulher solitária, sem marido, sem filhos. Uma trabalhadora cujo labor escapa dos clichês espetaculares. É a imagem de uma anti-atriz... Ora, todo espectador sendo um voyeur desejoso de excitação, por que um cineasta colocaria em cena uma anti-heroína que não tem nada de excitante? Por que Steven Soderbergh filma uma romancista no seu admirável Let them all talk (ler Cahiers n°775)?

Comecemos descartando dois clichês. O primeiro é aquele do “homem escritor” (historicamente um truísmo), que Stephen King resumiu brilhantemente em Sobre a escrita - a arte em memórias, na fórmula da “Defesa de Hemingway”. Trata-se da imagem do Grande Escritor Alcoólatra, que compartilha seu tempo entre pane de inspiração e pane sexual, sob o olhar compadecido/admirativo/lamentoso/“histérico” da mulher/amante/enfermeira do gênio, toda a ação estando situada não frente à mesa de trabalho, mas no bar ou no quarto de dormir (para citar apenas um exemplo: Barfly de Barbet Schroeder, 1987).

O segundo clichê, cinematograficamente sem interesse algum, é o “biopic de escritora”, geralmente de origem anglo-saxônica (Jane Austen/as irmãs Brontë/Virginia Woolf/Mary Shelley/Sylvia Plath...), que produz filmes na forma de canecas-lembrancinhas do casamento real.

Steven Soderbergh, ao adaptar um conto de Deborah Eisenberg (autora igualmente do roteiro), coloca em cena uma velha romancista – pleonasmo, pois o escritor-olho (expressão de Nabokov), que disseca a comédia humana, não tem idade. Em Let them all talk, a escritora Alice Hugues, interpretada por Meryl Streep, qualifica a existência humana de “comedy of errors”. Se pensarmos que toda intriga se passa no Queen Mary 2, durante a travessia de Nova York à Inglaterra (onde ela vai receber um prêmio que consagrara a sua carreira), a alusão ao naufrágio da comédia de Shakespeare é um traço de humor feroz. Trata-se aliás de uma travessia (crossing) ou de um cruzeiro (cruising)? A equipe parece evitar a todo preço a primeira denominação, ao menos aos ouvidos de Alice Hughes, cuja vida inteira foi dedicada, com uma paciência que Soderbergh desvenda pouco a pouco a humildade estoica, não somente a “deixar os outros falarem” (Let them all talk, título original), mas sobretudo a esperar a palavra justa, a palavra única, pois apenas uma palavra justa qualifica cada uma das experiências complexas e misteriosas que compõem “a vida”. Eis então o melhor documentário que me foi apresentado sobre o que faz um escritor. Isso passa, sob o olhar como sempre feminista, mesmo feminino, de Soderbergh, por uma representação anti-narcisista (Alice Hughes prega e pratica o apagamento flauberiano do eu), anti-espetacular. Let them all talk não será uma variação em torno de Titanic (com o Grande Escritor legando à jovem admiradora enamorada um manuscrito póstumo da sua narrativa genial do naufrágio), mas um filme em que toda ação consiste em colocar e tirar os óculos. É preciso dizer que, depois de uma cena-chave de The Post – A guerra secreta de Steven Spielberg, Meryl Streep domina a operação com perfeição.

A curiosidade matou-a-gata

Uma mulher que deseja olhar, mas que não desperta olhares de desejo, uma escritora em luta com a essência invisível da condição humana – a linguagem –, pode ser o coração pulsante de um filme? Para dizer de outra maneira: a curiosidade (feminina) é excitante? Qual gênero cinematográfico ela inspira? Já que a escritora vê o invisível (os mortos), Soderbergh tira daí um filme de fantasmas? Já que a escritora dá vida ao invisível (o amor), Soderbergh faz uma comédia romântica? Mas o que seria um filme de amor com uma heroína onisciente, consciente que “a atração é a força que anima o universo”? Já que a escritora espiona e rouba o invisível (as “vidas” dos seus próximos, que não foram verdadeiramente vividas, como diria Proust, apenas sublimadas pela literatura), Soderbergh realiza então um filme de espionagem, ou de vampiro?

A partir de um trio feminino – no Queen Mary 2, a escritora convidou seu sobrinho e suas duas amigas mais antigas –, Steven Soderbergh destrói o clichê do escritor-que-vampiriza-seu-entorno-para-criar-seus-personagens. Ao trio se junta uma dupla de autores. De um lado Alice Hughes, que detesta seu único romance de sucesso premiado pelo Pulitzer, encarna (para dizer como Balzac no seu romance-matriz Ilusões Perdidas) o “Cenáculo”, ou seja, a arte e a poesia, guardiões do complexo mistério da vida. Do outro lado, o autor de best-sellers Kelvin Kranz (Daniel Algrant) produz em série murder mysteries, gênero que a escritora julga “muito simples: a vida é muito mais misteriosa”.

Soderbergh encarna o trabalho da escrita, fazendo da procura pela palavra justa – escolha estética e ética – o verdadeiro plot do filme. Cruising ou crossing? Cruzeiro vulgar, baseado em noitadas em que toda relação é reduzida ao dinheiro? Ou travessia que faz reviver o mito antigo (começando pela Odisseia, livro que lê o médico/amante misterioso da escritora) da passagem espectral entre a vida e a morte?

Um vampiro, mas qual?

Let them all talk de Steven Soderbergh é um filme-palimpsesto, sua homenagem íntima ao último filme de George Cukor, Ricas e famosas (1981). Ele oferece a Candice Bergen a oportunidade siderante de prolongar seu antigo papel de melhor amiga da escritora humana e artisticamente íntegra, interpretada por Jacqueline Bisset. No filme-testamento de Cukor, a dona de casa de Malibu (Bergen) rouba os segredos das estrelas de seu entorno para escrever um best-seller cujo manuscrito dá literalmente “vontade de vomitar” à sua amiga, escritora solteira que ela inveja. “I will be the unmarried woman”, tinha previsto a jovem estudante e futura escritora Bisset. Depois de ter tentado lhe explicar que a literatura “foi feita por e para os homossexuais e os judeus”, a “verdadeira” escritora, que se situa na filiação duplamente minoritária de Proust (podemos acrescentar aí Cukor), recomenda o manuscrito vomitivo de sua amiga ao seu próprio editor, num gesto que o espectador ignora se é ditado pela nobreza moral e/ou o masoquismo:

“ - Você deveria ler esse manuscrito, ele tem potencial.
- O que é?
- Um “romance” cheio de sentimentos.
- Quais sentimentos?
- O tipo de sentimento que eles têm em Malibu.




1981. Fim do mundo. Malibu ganhou contra Proust. É hora de Cukor morrer. Quarenta anos mais tarde, Soderbergh radicaliza o conflito de Ricas e famosas dando a Candice Bergen o papel, não da pessoa-que-a-escritora-sem-coração-vampirizou-para-transformar-em-personagem (lugar comum demasiado simples: a literatura é muito mais misteriosa), mais aquele da “verdadeira” pessoa, cujo testemunho, desprovido aliás de qualquer palavra justa, assassina a literatura (e de passagem a escritora). Basta olhar as vitrines das livrarias tomadas por esses testemunhos para apreender o alcance da inversão antecipada por Cukor, e arrematada por Soderbergh.

A garota da gola rolê

Na mise en scène dessa heroína cinematográfica invisível, dessa atriz impossível que é a escritora, Soderbergh vai ainda mais longe que Cukor. Ricas e famosas faz de Bisset, “mulher não casada”, o objeto de um duplo desejo trágico: o desejo invejoso da sua melhor amiga que quer tomar o seu lugar; o desejo efêmero de jovens homens, os únicos companheiros transitórios possíveis para uma mulher com o seu gênio. Uma cena de Alguém tem que ceder de Nancy Meyers (2003) se corresponde com o filme de Cukor, quando a velha dramaturga interpretada por Diane Keaton (ela tem mais de 50 anos) ouve dizer pelo seu jovem amante médico e admirador de sua obra (Keanu Reeves): “Não é incrível para você que o seu gênio não me intimide?




Nesse filme da subestimada Nancy Meyers (contudo, ela levou longe a invenção de um feminismo mainstream), a escritora é a “garota da gola rolê”, antítese das jovens desnudadas que o personagem do velho charmoso interpretado por Jack Nicholson azara exclusivamente:

“ - Eu posso te perguntar uma coisa? Por que você usa sempre gola rolê?
- Eu sou o tipo de garota da gola rolê.

Ao qual Nicholson objeta: “You never get hot?”. Meyers frusta alegremente o imaginário da velha-escritora-garota-frustrada, deslocando o gozo da dramaturga “beyond uptight!”, “para além do bloqueio!”, nas sessões de escrita da sua peça em que ela vampiriza/transfigura a vida em arte, a dor em alegria – extraordinária cena de ruptura amorosa, na qual as lágrimas da mulher abandonada se transmutam pouco a pouco na efusão da criação. A dramaturga interpretada por Diane Keaton não suporta ser vista nua, já que sua função consiste em ser um olho que coloca os outros (incluindo ela mesma) a nu. É o triunfo do filme de Meyers de fazer da garota-da-gola-rolê uma heroína que propõe outras regras ao diálogo amoroso (heterossexual), no espírito da muito vestida Rosalind Russel em Jejum de amor de Howard Hawks, que nunca goza tanto quanto nos momentos em que escreve freneticamente na sua máquina de escrever.

A investigadora

Há alguns anos, as teses da teórica inglesa Laura Mulvey, inventora do male gaze, foram merecidamente importadas para a França. A figura da escritora parece-me no coração de um aspecto de sua teoria raramente destacado: “Essa ideia de um olhar curioso, inquisidor, desloca a questão da fascinação escópica e lhe dá outra dimensão. Ele é exclusivamente feminino? Não somente. Mas a mitologia e os contos abundam de histórias de mulheres curiosas, cuja curiosidade é frequentemente ligada à exploração de um espaço – Pandora e sua caixa, a mulher de Barba-Azul e o quarto fechado, até ao O segredo da porta fechada de Fritz Lang. Trata-se de uma curiosidade que é geralmente punida pois ela é uma forma de desvio – é o caso de Interlúdio de Hitchcock. Para uma mulher, na ideia de “olhar para o interior”, há também a ideia de se interessar pela sua própria feminilidade. Acredito que não é um acaso se as escritoras de sucesso da história da literatura frequentemente assinaram histórias de detetives, ou colocaram em cena investigadoras como, por exemplo, Agatha Christie.[1]




Suspeita de Alfred Hitchcock (1941) apresenta uma investigadora à la miss Marple, arquétipo da velha senhora deserotizada, que tem sucesso nas suas investigações às custas de sua invisibilidade. A velha autora de romances policiais Isobel Sedbusk (Auriol Lee) vive no seu chalé com sua noiva vestida de homem e seu irmão médico legista. Ela advinha, à primeira vista, se um ser humano é capaz de matar. É com essa especialista em venenos que se refugia a jovem esposa desesperada encarnada por Joan Fontaine (um ano depois do seu papel quase idêntico de vítima de gaslighting em Rebecca), a fim de que a mulher-olho de óculos lhe entregue, senão a verdade, ao menos a narrativa precisa de um casamento que, sob a câmera hitchcockiana, se transmuta rapidamente em assassinato. A escritora invisível é a chave da narrativa que a atriz cega não possui.

O viciado no gozo (da ficção)

Apenas um filme, parece-me, se recusa a opor atriz nua e escritora vidente, corpo desejado e olhar desejoso. O personagem interpretado por Sharon Stone em Instinto selvagem de Paul Verhoeven (1992) é uma escritora. A romancista Catherine Tramell oferece com desenvoltura a visão de seu sexo ao investigador que confunde, como ela, pulsão escópica e assassinato. Numa cena extraordinária, a escritora suspeita (e culpada) de homicídio está sentada no banco de trás de uma viatura de polícia. Ela acende um cigarro enquanto um dos policiais lhe pergunta como é que é ser escritor. Ela responde: “Escrever é aprender a mentir, é a suspensão da incredulidade de Coleridge”. Da parte de trás do veículo, ela estende então um cigarro ao policial interpretado por Michael Douglas, que declina: “I quit” – eu parei (de fumar). Ao que a escritora contrapõe: “Você vai cair de volta”. Cair novamente não só no cigarro, na droga, no sexo, ou então no sentido da pulsão amorosa que constitui todo desejo de ficção. Verhoeven faz da escritora de Instinto selvagem a guardiã da crença numa narrativa que é para todos nós, seres humanos, um instinto vital tão essencial quanto o instinto de reprodução. Na derradeira cena do filme, o amante policial sugere à escritora, armada com uma caneta e um picador de gelo, de “viver felizes com muitos filhos”. Quando ela declina educadamente, ele se curva. Então aquela que estava prestes a matar seu amante suspende, não a incredulidade, mas o assassinato. Eis a alternativa que a romancista de Verhoeven propõe ao roteiro hitchcockiano de gaslighting: suspender o homicídio, ao menos no quarto conjugal, e gozar de uma vida sem outras crianças que os romances que os escritores e escritoras concebem.

A velha senhora no fim do mundo

Num conto da romancista de ficção científica Ursula Le Guin, “A velha senhora e o espaço”, uma nave espacial, que abriga os habitantes bem-intencionados do quarto planeta de Altaïr, pousa na Terra. O comandante propõe: “Nós temos lugar para um passageiro; vocês gostariam de nos confiar um único ser humano, a fim de que nós conversemos livremente com ele durante nossa longa viagem de volta, e aprendamos com esse indivíduo representativo tudo que há para saber sobre vossa espécie?” Segundo Ursula Le Guin, a maior parte das pessoas aconselharia embarcar um jovem homem corajoso, culto e esportivo. Ela, ao contrário, recomenda escolher uma velha senhora, “em todo caso com mais de sessenta anos porque, justamente, só pode representar fielmente a humanidade um ser que tenha sentido, aceitado e agido na totalidade da experiência humana, cuja principal característica é a mudança”. A escritora de Let them all talk, na qual se concentra o saber de Steven Soderbergh e o de Meryl Streep, me parece o primeiro personagem que o cinema produziu, depois de muito tempo, suscetível a acompanhar nossa espécie em perigo na sua provável última travessia.

[1] Entrevista com Laura Mulvey, Libération, 23/24 de novembro de 2019.

La femme- œil sans visage foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 776, em maio de 2021. Tradução: Leticia Weber Jarek.


Prefácio de “Eis o homem: diário de um filme proibido”




Por Noël Herpe

Problemas de gênero

Para escrever o roteiro de Eis o homem, eu me inspirei numa experiência pessoal: aquela que consiste em sair na rua vestido de maneira “diferente” e se confrontar com o olhar dos outros. Eu me dei conta assim do quanto o homem que se veste de mulher (segundo a consagrada expressão, embora se trate na verdade de se reapropriar dos elementos do vestuário que não são de modo algum sexuais a priori) transgride um tabu que permanece muito forte na nossa sociedade. Por exemplo, as boas almas assumirão que isso choca as crianças – que são ainda assim bem mais preparadas para acolher a confusão dos guarda-roupas que os adultos. São os adultos que se prendem à distinção pelas roupas, como se a diferença anatômica não fosse suficiente... E isso se acentua nos nossos dias em comparação aos anos setenta ou oitenta, que cultivavam um certo jogo entre os sexos.

Outro tabu, corolário do precedente e que não temos nem mesmo o direito de evocar: o da desigualdade dos vestuários masculino e feminino. Se as mulheres (e só podemos nos regozijar!) adquiriram o direito à toda a gama de possibilidades, se elas podem usar saias ou calças, saltos altos ou sapatos baixos, cabelos compridos ou cabelos curtos, os homens, por sua vez, não têm mais quase nenhuma liberdade. No que lhes concerne, observa-se a mais ou menos dois séculos uma inacreditável decadência do glamour. Eu entendo isso como a capacidade de pôr em cena os seus corpos, através da vestimenta. Em rigor, valoriza-se o seu torso, seu peitoral, negando literalmente outras partes de sua anatomia: as pernas em particular, elas que constituíram da Idade Média ao século XIX o lugar absoluto da beleza masculina. Seria misógino fazer uma tal constatação, como me acusam as supostas feministas que erraram de combate? Eu acredito, pelo contrário, que mudar o nosso olhar é uma forma (e não a menor) de lutar contra o machismo.

Há alguns anos, eu produzi para France Culture um programa de rádio que se chamava Na pele de um collant. Preparando-a, eu fiquei intrigado com todos esses heterossexuais que se travestem, mais frequentemente na sombra (eu os apelido de “o exército das sombras”), e que são aterrorizados pela ideia de que suas esposas possam saber, ou lhes ver assim. Há aí um lado patético que me parece dilacerante, e do qual eu me lembrei para o meu personagem principal.

Se eu me interesso por essas questões, é, necessariamente, enquanto cidadão. Elas permitem refletir sobre o limite de tolerância de uma sociedade, sobre a liberdade que ela é capaz de aceitar na representação do desejo. Mas eu não pretendo esconder (isso é, aliás, o tema principal de um livro autobiográfico, que intitulei Minhas cenas primitivas): essas questões fazem parte do meu universo fantasmático. O que me fascina acima de tudo, para recuperar a expressão de Judith Butler, são os “problemas de gênero”. Quer dizer, o momento no qual alguma coisa vacila, sempre que o homem se atribui os signos considerados femininos, sempre que ele põe a sua masculinidade à prova. É como uma prova do outro no interior de si.

De fato, meu personagem procura a sua própria feminilidade – e depois, no seu trajeto, ele encontra outra coisa: ele encontra a sua humanidade, uma humanidade que o aproxima de uma certa forma de transcendência. Uma humanidade que ele encontra na humilhação: não há mais vestimenta, não há mais nenhuma dignidade, seu status social desaba. É o pesadelo absoluto. Mas através disso, há talvez uma graça que se revela. Em todo caso, uma estrutura mítica (crística?) que renasce sob os seus passos.

As imagens de cinema

Quando se conta uma história como esta, muitas imagens de cinema se apresentam ao espírito: o travestismo burlesco de Quanto mais quente melhor, sua reaparição mais nuançada em Tootsie, etc. Mas foi necessário esperar Éric Rohmer (com seus Amores de Astrée e Céladon) para ver esse tema ser tratado de uma maneira elegante, perturbadora, comovente. Não apenas porque o rapaz é bonito. Porque seu disfarce feminino, seu devir mulher no meio das mulheres, é a quintessência de um erotismo rohmeriano que nunca tinha sido desvelado a esse ponto. Advinha-se aí a reticência em afirmar sua identidade sexual, o desejo de permanecer numa posição de voyeur, de ver sem ser visto (tantos temas eminentemente cinematográficos). Quando esse filme foi lançado em 2007, eu tive a oportunidade de debater na École Normale Supérieure com uma sabichona universitária – que se indignou ao ver se encarnar tão francamente os simulacros retóricos de Honoré d’Urfé. Citando Horácio parodiado por Diderot (Ut poesis, pictura non erit), ela defendeu que a convenção do homem travesti, tolerável na literatura, não saberia sê-lo na tela: a “freira-caminhoneiro” figurada por Andy Gillet atropelava o seu bom gosto... Assim, mesmo diante dessa Astrée cujo travestismo é vivido na graça e na beleza absolutas, o sorriso de escárnio e o ceticismo continuam.




É um outro Rohmer cuja influência eu modestamente reivindico: o do Signo do Leão ou do Raio verde, o que utiliza de bom grado o documentário para verificar a ficção. Eu tentei, na minha escala, projetar um personagem de ficção (um personagem que sonha com a ficção?) na vida real, e observar o que acontece. Eu queria que os transeuntes na rua, no começo do filme, ou que os aldeões no fim viessem validar com as suas próprias reações a situação dramática que eu tinha escrito. Como se assistíssemos a um verdadeiro evento, surgindo sob os nossos olhos num tremor indeciso. E longe das caretas à la Fellini, ou à la Mocky – o que não exclui uma parte de estilização. O que eu procurei foi uma espécie de mistura frágil da teatralidade e do natural.

Para essa cena do linchamento, que estava no cerne do meu projeto, eu tinha primeiro considerado dois modelos canônicos. Dois modelos ligados ao meu amor pelo cinema, mais do que a uma observação social. Em primeiro lugar, a sequência final de O inquilino de Alfred Hitchcock. O protagonista desse filme é tomado por Jack, o Estripador e perseguido por uma multidão odiosa. Algemado, ele acaba por quase se empalar numa grade, num gestual crístico. No final desse calvário, ele será salvo por uma mulher – como são frequentemente os herois hitchcockianos, como é talvez o “heroi” de Eis o homem. O segundo modelo vem de Pânico de Julien Duvivier: é a longa cena na qual o Monsieur Hire (a partir do seu verdadeiro nome Hirovitch, e que o rumor público designa como um assassino) se encontra perseguido até a morte pela gentinha da sua vizinhança. É uma das cenas mais extraordinárias do cinema francês. Eu tive vontade de reencontrar essa amplitude trágica, esse sentido do pathos que desapareceu completamente da nossa cinematografia naturalista e apaziguada. Uma tal excesso não responde mais aos critérios atuais de verossimilhança, mas é justamente isso que me fascina: o fato de criar uma forte tensão dramática, de ir ao fundo de uma situação, de fazer ver o homem na sua totalidade.

Por que esses modelos narrativos não poderiam se aplicar à nossa sociedade, tanto quanto àquela dos anos trinta ou quarenta? Enquanto terminava a rodagem do meu filme, eu li uma notícia estranhamente próxima do roteiro. Tratava-se de um árabe que os habitantes de uma cidade suburbana tinham molestado, porque eles o tomaram por um estuprador de crianças. A sequência do linchamento em Eis o homem não é, portanto, tão inverossímil quanto podíamos acreditar – mesmo se é preciso às vezes engrossar o traço para mostrar a humanidade tal como ela é. Não denunciá-la, só mostrá-la.

A construção de personagens?

Foi Laurent Achard (grande defensor do roteiro) que me deu a vontade e a coragem de interpretar, eu mesmo, o papel principal do filme. Eu assumo plenamente essa escolha, que acabou por transformá-lo num anônimo. Um quadragenário comum, que poderia ser o espectador. Eu acho essa banalidade mais potente que a representação de um travesti patenteado, profissional ou militante. Ela valoriza a humanidade do meu personagem, ao mesmo tempo que a sua caminhada onírica e sua total solidão.




Meus sequestradores, eles também, poderiam ser qualquer pessoa. Há apenas um certo desequilíbrio entre a pessoa qualquer que eu encarno e a que eles brincam de ser... Revendo hoje Eis o homem, eu constato que os desconhecidos filmados na rua, em Paris, que as pessoas do município de Tousson, tem uma existência maior. Talvez eu devesse ter tornado meus interlocutores (ou pelo menos um deles) mais impressionantes, e mais independentes do meu desejo. Talvez isso seja um mal-estar que eu sinto em relação à “construção do personagem”, dos diálogos psicológicos, de todos esses artifícios do cinema francês que me entediam. Se eu tivesse que refazer o filme, eu tentaria dar aos meus agressores uma dimensão mais alegórica – sem que isso passe necessariamente pelo diálogo. O estilo de Eis o homem poderia ter sido (ainda) mais próximo do cinema mudo.

Os meios que tínhamos

Desde o começo, meu projeto atraiu a ira das comissões institucionais – mas eu tive a sorte de ele agradar à Missão Cinema da Cidade de Paris, que nos concedeu uma ajuda de quinze mil euros. Meu produtor de então teria desejado um orçamento dez vezes maior. Mas para obter tal ou tal apoio regional, era preciso fazer concessões, apagar as asperezas do roteiro e reescrevê-lo num espírito politicamente correto... É assim, hoje em dia, que se financiam laboriosamente os curtas-metragens: cortando tudo o que excede, para agradar o ponto de vista médio do senhor das comissões. De minha parte, eu escolhi fazer meu filme com um jovem produtor menos ambicioso e com, relativamente, pouco dinheiro. Mas conforme o que eu queria.

Eu sabia (demais?) o que eu queria. Eu até escrevi antecipadamente os eixos das tomadas. O que amarrou um pouco meu jovem diretor de fotografia, que teria desejado filmar com câmera na mão, intervir de maneira mais pessoal. No que me concerne, eu prefiro esse método clássico à rodagem de uma infinidade de planos diferentes entre os quais escolheríamos na montagem (o que implica uma considerável perda de tempo e de energia). Isso não impediu que a escritura do filme tenha se transformado, em função de cada etapa do trabalho. No começo, eu tinha imaginado muitos planos-sequência, e foi preparando a decupagem, discutindo com meu co-roteirista David H. Pickering, que eu fui levado a conceber um número maior de campos/contracampos. Os poucos planos-sequência que nós rodamos tiveram finalmente que ser cortados na montagem, porque eles não funcionavam: muito difíceis para iluminar ou para interpretar. De uma vez, eu aprendi que para acertar um plano-sequência é necessário tempo e meios. Dois trunfos que nos faltavam cruelmente.

Uma certa tendência do cinema francês

Nos dois anos que se seguiram, Eis o homem foi submetido a uns cinquenta festivais. Somente três entre eles o selecionaram. No festival “Persona” de Évreux, o filme foi programado fora da competição, um sábado de manhã, acompanhado de um aviso sobre seu caráter potencialmente chocante. No festival do “cinema digital” de Lyon, ele foi projetado diante de três pessoas... Em toda parte, recusas – que na maior parte das vezes não vem acompanhadas de nenhum comentário. Num tal estado, é impossível não pensar que é o conteúdo do filme o que dá medo, a enunciação que eu propunha ali das minhas fantasias (é uma reprovação que frequentemente adivinhava nas entrelinhas). Como se fosse embaraçoso que um cineasta pudesse se inspirar no seu imaginário erótico! É, além disso, uma fantasia muito banal, se fazer sequestrar e estuprar na floresta. É a de muitas mulheres e também de alguns homens. Por que ela não poderia ser filmada?

Desde cerca de quinze anos, desde a época em que eu trabalhava como conselheiro de Gilles Jacob para o festival de Cannes, eu temo que tenha diminuído o interesse por um cinema sulfuroso ou audacioso (a menos que ele venha da Ásia ou do outro lado do Atlântico). O que é privilegiado nos festivais de curtas-metragens é, mais do que nunca, uma “certa tendência do cinema francês”, herdeira paradoxalmente da Nouvelle Vague, e do novo academicismo que ela gerou: um realismo psicológico ou sociológico sem surpresas, coberto de um vago verniz de modernidade. Tolera-se, nesses limites, o que é amavelmente deslocado. Na condição de não ir além do deslocamento autorizado.




Se meu filme deixou desconfortáveis tantos curadores, foi primeiro, me parece, por causa de um arcaísmo formal assumido. Um lado fantástico, excessivo, expressionista que não está mais nem um pouco no ar do tempo. É sem duvida também porque Eis o homem não entra em nenhuma caixa comunitária e, particularmente, na do reinante culto à juventude. Se ele fosse realizado ou interpretado por Louis Garrel, todo mundo gritaria: “Que subversivo! Que radicalidade!”. Se se trata, pelo contrário, de um honorável acadêmico? Só se escutam os risos constrangidos, como se só tivesse ali uma trip de pervertido... Mas é, sobretudo e simplesmente, porque as pessoas (ao menos aquelas que decidem no seu lugar) não querem que lhes falem sobre o desejo de travestismo, nem das relações de força e de dominação que estão no cerne do erotismo. Na grande noite moralizante em que estamos afundando, não é mais uma questão ver “isso”. “Isso”, porém, é o homem.

Minha consolação, se eu ouso dizer, é que Eis o homem foi proibido aos menores de dezesseis anos, em razão do parecer da comissão de censura que merece passar para a posteridade: esse filme doentio, ela escreveu, dedicado às humilhações a que um grupo de indivíduos submete um travesti. Não saberíamos resumir melhor o grande medo dos bem-pensantes.

Autocrítica

É preciso enfim que eu esboce minha autocrítica. Eu acredito que o que impede certas pessoas de “encontrar o seu lugar” em Eis o homem é a falta de uma mediação: não se sabe quem deseja essa história, não se sabe de onde ela vem. Além disso, eu quis que subsistisse esse ponto cego: meu personagem é um masoquista, e é próprio do masoquismo delegar a crueldade ao outro lhe dizendo: “Destrua-me.” Mas, sobretudo, era preciso que essa crueldade não parecesse emanar do seu desejo, em direção a ele (foi por isso que eu evitei a facilidade que teria consistido em identificar a narrativa como um sonho do personagem em questão). Gilles Deleuze fala bastante dessa equação sem solução que é o masoquismo – porque na realidade não existe ali o sádico nem, em todo caso, correlação entre masoquismo e sadismo. Nenhum parceiro possível.

O filme conta tudo isso, inclusive às suas próprias custas. A ausência de um “verdadeiro” vilão, que nem o meu duplo, nem eu mesmo encontramos. Não mais do que o espectador sonhado – que poderia ser um espectador voyeur e assumindo seu gozo, ao menos enquanto espectador de cinema. Ou ainda um espectador que se identificasse com a vítima, o que é muito complicado porque ignora-se o que a vítima verdadeiramente deseja... No novo roteiro que eu escrevo com David H. Pickering (Minha Torre de Nesle, a partir de uma peça de Alexandre Dumas), nós fizemos entrar em cena uma criança, que vem encarnar mais claramente o desejo de se aniquilar na ficção.

Eu paro aqui as tentativas de explicação e as tentações do arrependimento. Nas páginas de diário que se seguirão, eu quis que os arquivos de Eis o homem (de sua escritura, de sua rodagem, de sua distribuição suspensa) contassem sozinhos uma história que dispensa comentários. Se os comentários existem, é para dizer os sentimentos que me inspiraram – e que ainda me inspiram – esse filme mal amado.

Avant-propos foi extraído do livro C’est l’homme : Journal d’un film interdit. Lormont, Editions Le bord de l’eau, 2013. Tradução : Miguel Haoni.