O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

“No meu lugar, eu teria...”



Ou: banhemo-nos duas vezes no mesmo rio! 
Hoje: Sylvia Scarlett de George Cukor

Por Hélène Frappat 

Se tem uma coisa que o cinema permite, e que por vezes nos faz falta cruelmente “na vida”, é a possibilidade de refazer – de aperfeiçoar – um gesto, uma palavra, um ato cuja primeira tentativa – a única! – fracassou lamentavelmente. Fazer sua entrada, por exemplo: todos sabem da dificuldade de fazê-la bem, história de não destruir o longo trabalho que foi necessário para se preparar para aparecer. 

Trata-se de uma preocupação bem feminina: visto que haverá sempre um movimento – mesmo indefinidamente atrasado – em que uma mulher deverá aparecer, como evitar errar sua entrada, se a primeira vez não foi a boa, se não conseguimos na primeira vez “fazer a mulher”? Às atrizes que teriam estragado sua primeira aparição, o cineasta pode sempre oferecer uma segunda tomada; e quando, além disso, o cineasta é uma mulher – George Cukor – então ele consegue, numa mesma sequência, lhe oferecer uma segunda chance. 

Sylvia Scarlett: para salvar seu pai da prisão, Sylvia (Katharine Hepburn) torna-se Sylvester: “I won’t be a girl! I”ll be a boy!”... Até o dia que, pelo amor de um homem, ela decide fazer a sua entrada: vestido, sapatos, chapéu, o espetáculo pode começar! Esse é antes lastimável: o vestido parece um disfarce (“E esse vestido! Eu tenho o costume de colocar as mãos nos bolsos!”), os sapatos mal conseguem conter os grandes pés, e a auto-difamação, aliada à rudez agressiva de Sylvia, completa esse quadro bizarro (queer). O julgamento é cruel: nem homem nem mulher, as legendas a descrevem como um fenômeno, mas a réplica é mais brutal, tratando-a de monstro: “You freak of nature!” Lágrimas, queixas infantis: o que sente Sylvia, o que ela diz, ela não pode escutá-las da boca de um homem. “I say the sort of things she said myself... but she didn’t like it!" 

Então o homem vai colocá-la em cena: “As debutantes têm o direito a uma segunda chance. Recomecemos tudo.” Um último conselho à novata esquecida: “I remember to be... huh... be... huh... huh... what you said: young lady!” E na continuidade fluída do plano-sequência, o homem sai do campo, deixando Sylvia se afastar, parar e depois voltar. 

Logo, é preciso reencenar – e encenar exageradamente – a entrada da “verdadeira mulher” (“you’re really a girl”), essa atuação de que Sylvia deve aprender as regras, das quais ela deve por sua vez se fazer a atriz, “like all the rest of your sex...” De tanto excesso – mas de graça, de fantasia aérea – a postura termina por ser conveniente, e como a mulher tem direito aos elogios, a atriz tem o seu close-up (insert mágico sob o olhar realizado de Hepburn). 

Cabe a ela ter êxito na sua saída: “Don’t call me a child. I’m not.” 

À ma place, j’aurais...” foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma. Tradução: Leticia Weber Jarek.

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