Areias de outro tempo




Por Luiz Fernando Coutinho

O flerte de M. Night Shyamalan com o filme B não é exatamente recente. Seja pelas narrativas que concentram as ações em um mesmo cenário, seja pelo repertório temático, seus filmes tendem a se aproximar, em nosso imaginário, daquele modelo de produção de baixo-orçamento que começou a frutificar nos EUA a partir dos anos 1930. Foi preciso o fracasso de bilheteria do belo Depois da Terra, que custou 130 milhões de dólares, para que Shyamalan depositasse seus esforços em orçamentos e filmes menores: A Visita (5 milhões de dólares), Fragmentado (9 milhões) e Vidro (20 milhões) são obras que reúnem características de filme B menos pelo flerte temático do que por uma relação incontornável de dependência entre a estética e a economia. Nestes filmes, o modo de produção afeta diretamente o estilo, nunca o tornando refém dos números, mas reivindicando do cineasta uma atitude de invenção constante face às limitações financeiras.

Tempo, o último filme de Shyamalan, teve como orçamento um montante de 18 milhões de dólares. Trata-se, como sempre, de um filme familiar: o cineasta, inspirado em lembranças com seu pai, decide adaptar uma HQ que recebeu de presente de suas filhas. Ishana, uma delas, trabalhou como diretora de segunda unidade; Saleka, a outra filha, compôs a canção dos créditos. A linha narrativa não poderia ser mais simples: uma família viaja para um resort paradisíaco e se vê presa, junto a outras pessoas, em uma praia rochosa onde a experiência do tempo é acelerada – onde, portanto, minutos equivalem a meses e horas equivalem a anos.

Estruturado em torno de três locações – a praia, o resort e a van que faz a ponte entre um espaço e outro –, Tempo concede à praia um lugar privilegiado na economia interna do filme. Não apenas passamos mais tempo na praia do que em qualquer outra locação, como também ao cineasta parece importante concentrar neste espaço as ações-motrizes da narrativa, que se sucedem em ritmo alucinante. Uma vez que as personagens pisam na areia, desfilam-se rapidamente as ações de uma dramaturgia compactada em condições de pressão. No interior desta locação única, portanto, os eventos transcorrem de forma vertiginosa. Estamos, neste caso, em terreno familiar: é desta dinâmica da contenção espacial aliada à saturação dramática que os grandes filmes B – os Ulmer, os Lewis, os Karlson – extraíam sua força.

Se um traço característico desses filmes B era a reutilização de cenários de filmes de série A, Shyamalan também faz um trabalho de reciclagem. Porém, mais do que se apropriar de locações já utilizadas, o cineasta se apropria da imaginação iconográfica ou dramatúrgica de filmes do passado: as personagens presas na praia remontam aos burgueses de O Anjo Exterminador; os rochedos sinuosos, por onde o slow-motion se imiscui, remetem à montanha misteriosa de Peter Weir; o efeito “dolly zoom” devém menos de Um Corpo de Cai do que de Tubarão, etc.

Estas influências, no entanto, são aquelas reconhecidas pelo cineasta, e seria preciso dar um passo além e perceber a filiação de Tempo com obras “praianas” do horror escatológico como Zumbi 2 – A volta dos mortos, de Fulci, ou Piranhas 2: Assassinas Voadoras, de Cameron, em que a imagem parece consumida pela podridão “salina” de seus monstros aquáticos – no caso do filme de Shyamalan, dos monstros farmacêuticos. Como os talheres e os cadernos enterrados denunciam, cineastas de outros tempos já pisaram nesta praia.




Tornou-se recorrente, na obra de Shyamalan, perceber nos personagens interpretados pelo cineasta um aceno para sua posição de demiurgo. Em Tempo, o mesmo discurso ressurge; como se, ao conduzir as personagens para a praia e submetê-las a um experimento enquanto as filma, o personagem de Shyamalan funcionasse como um alter ego do diretor. Esta correlação entre personagem e criador, no entanto, ignora o trabalho sobre os pontos de vista no filme. O cineasta, ao contrário de seu personagem, não observa os demais à distância. O ponto de vista da câmera isolada no topo do rochedo, comandada pelo empregado da grande corporação, só aparecerá nos instantes finais da narrativa – até lá, Shyamalan-cineasta prefere o ponto de vista próximo da areia, junto às personagens e por vezes adotando seus pontos de vista (o pai) ou de escuta (a mãe). Sua postura enquanto criador não é a do entomólogo, mas do participante; não é a do nazista, mas do humanista: aquele que, como as vítimas, também se beneficiaria de uma ou outra sessão de terapia para entender sua relação com a passagem do tempo.

Próxima ao chão, a câmera de Shyamalan é um instrumento de produção de elipses. Participando da experiência inexplicável do tempo, as imagens conjuram em seu interior (no plano-sequência) ou em seu encadeamento (na montagem) os grandes saltos temporais marcados na pele dos atores e das atrizes. Em dado momento, a câmera se desvia das personagens, faz uma panorâmica na direção do rochedo, e volta para retomá-las: movimento aparentemente insignificante, ele produz uma elipse na própria continuidade do plano, pois uma vez que a imagem volta a enquadrar as personagens, dias se passaram em seus corpos. Da mesma forma, quando uma personagem desaparece da imagem, não sabemos de que forma vamos encontrá-la quando ela “tornar-se campo” novamente (para empregar a expressão de Noël Burch).

Tempo é uma a travessia espiralar em direção à morte (daí, talvez, a importância dos movimentos circulares de câmera). Neste sentido, Shyamalan emprega os meios para tornar sua narrativa uma progressão do concreto ao abstrato: o breu da noite reduz a profundidade do plano, a catarata de uma das personagens ocasiona o desfoque na imagem, a surdez de outra implica em uma nova experiência de mixagem de som, o corpo esguio de uma mulher se retorce o suficiente para se tornar uma forma abstrata, entre outros.

Se o terceiro ato do filme é tão decepcionante, é porque o “retorno à normalidade” coincide com o abandono desta abstração. Ao amanhecer, Shyamalan pisa no freio e desvia o carro de volta à estrada. A promessa de um novo dia retoma a concretude e o registro inicial, oferecendo às personagens a possibilidade de uma saída. Esta, por sua vez, é entrevista na mensagem decifrada da criança. O segredo rondava todo o filme: estranha semelhança entre os movimentos descritos pela câmera – circulares, verticais, diagonais ou rasantes – e os traços pictográficos da mensagem, como se os primeiros simulassem a escrita dos segundos.

Tempo é um filme de um charme especial, produzido sob as circunstâncias sanitárias da pandemia de SARS-CoV-2, sob as intempéries climáticas da locação e, claro, sob as condições financeiras de produção. Assim, mesmo auxiliado por um storyboard, Shyamalan não impede que o filme seja por vezes mal aparado, acidentado, imperfeito, como se filmado sob pressão. Pequenos desfoques, enquadramentos fugidios, descontinuidade de luz, entre outros, fornecem ao filme uma mácula irresistível, como há muito não se via em Hollywood. Aí, novamente, pisamos nas areias do filme B.

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