Por Noël Herpe
Diante das imagens do meu álbum de família, existem logo aquelas que o cinema me oferecia: se o meu pai me parecia como o encontro vivo de dez jovens apaixonados, eu procurava entre estes, ícones nos quais eu poderia redescobrir uma alma eclipsada. Bizarramente, essa obsessão não se fixava sobre os sósias de meu pai – ou então sobre os sósias virtuais, cujos traços exprimiam uma pureza totalmente interior. Se, por exemplo, eu amei tanto Gérard Philipe, foi porque seu brilho era só o reflexo de uma vocação moral, de todo o bem querer de uma geração. Ao pé da letra, eu o amava como poderia ter amado o Cristo: sua foto sobre a minha cama era como uma figura do Salvador, e eu decifrava em todas as etapas de seu destino os traços de uma semelhança sagrada (a aparição angélica em Sodome et Gomorrhe; a cruzada laica do Teatro Nacional Popular; o engajamento político; a morte trágica). Me parecia miraculoso que um tal ser pudesse se misturar à humanidade, ser próximo de pessoas ainda vivas e simplesmente existir : era como se ele tivesse existido, sem que soubéssemos, uma única criatura pura de qualquer reprovação – e que não teria nem mesmo assumido os pecados do mundo, que, pelo contrário, os teria ignorado. E foi esse o papel interpretado por Gérard Philipe, nesse pós-guerra do qual eu só queria ver a candura: o de um anjo da negação, que redimia, só com sua inocência, todos os crimes de seus antepassados, que passava por cima e acreditava nos amanhãs que cantam… Eu não era muito consciente dessas contingências políticas, eu ignorava a lembrança recalcada do pai colaboracionista – e eu preferia me ligar à mãe, outra figura assexuada, um pouco menos à esposa cuja presença me parecia duvidosa ou séria demais, mais aos filhos com os quais eu me maravilhava que viessem confirmar a encarnação desse Verbo. Se formava aí um verdadeiro mito stalinista, que coincidia com as simpatias militantes do ator, e, acima de tudo, me convidava a retocar cuidadosamente todas as suas fotos, para não deixar nelas a prova de nenhum erro humano.
Eu era também menos sensível às suas aparições cinematográficas que às suas fotografias que eu recortava nos jornais e que eu arquivava num caderno de escola com o mesmo fervor que os meus retratos de família… Todos os adolescentes conheceram essas fixações, mas me parece que a minha se distinguia pelo seu caráter puramente mental: se eu repasso essas fotos na minha lembrança, eu não vejo mais que um encanto descolorido, exangue, edulcorado por um imaginário de Épinal no qual se expunha a Quarta República, tal qual ela queria ter sido. Eram menos os traços de um ser em movimento que vinhetas heróicas, nas quais as cenas mais íntimas se organizavam para compor um tableau; e a própria figura do Cid tornava-se aquela do Comandante – que me oferecia os signos de uma maturidade impossível por ser elevado acima dos homens. Eu encontrava, aliás, o equivalente na adoração por uma atriz, esta cultivada até a mania: foi o nome de Gaby Morlay que me intrigou primeiro, uma tarde em que eu via televisão e que minha mãe tinha elucidado para mim essas sílabas bizarras… Eu só me lembro da cena final do filme que passava naquele dia: aquela em que ela visitava Fernandel, de volta à sua Provence natal, e na qual eu a descobria como um ícone absoluto de gentileza (a Mãe junto do Filho que era Gérard Philipe?)... Como todas aquelas que viriam em seguida, essa imagem se perde aos meus olhos numa névoa mística: eu não via uma mulher com um rosto e um corpo, eu me aproximava de uma Madona descida dos céus, e da qual eu assistia às aparições televisivas como tantos milagres roubados à divindade. Nesse itinerário, eu encontrei a minha noite pascaliana depois de ter visto Quadrille em que me era oferecida uma antologia do estilo Morlay, de seus tiques, de suas risadinhas relinchantes, de seus lenços torturados... Tudo isso era realçado pelos prestígios do pequeno mundo de Guitry, mas, curiosamente, eu só guardei dessa primeira visão duas imagens: de novo a cena final, na qual os dois casais se cruzam num balé estilizado de forma ingênua; os créditos, nos quais Gaby Morlay se penteia antes da filmagem, e se apresenta ao público como uma autocaricatura simpática. Hoje, eu me pergunto se essas imagens foram imediatamente presas em mim ou se foi o tempo que as decantou, isolou, depurou de seu contexto... Seguiu-se, um pouco mais tarde, Derrière la façade, com um monólogo ao telefone que era também uma coleção de piscadelas autoparódicas: eram bem esses clichês que reanimavam o meu amor e eu só corria atrás dessa sombra quando ela estava reduzida à sua mais simples expressão.
Foi então que começou uma paixão inverossímil, a de trazer de volta uma rainha morta, justapondo todas as vistas tomadas dela em todos os instantes de sua vida. Eu acumulava não somente todas as informações que eu pudesse recolher, mesmo as mais fúteis, mas também todos os traços visuais de uma presença. Era o empreendimento de um taumaturgo que captura tudo o que ele pega de passagem, fotos recortadas ou fotocopiadas dos jornais, fotos recolhidas nos arquivos familiares, filmes vistos como tantas evidências que provariam a realidade de uma existência... Quando eu vejo agora um filme em que aparece Gaby Morlay, eu não sinto mais nenhum prazer: isso se tornou uma atenção desenfreada a cada um de seus gestos, a cada nuance de sua voz, a cada detalhe de seu jeito, como para não perder nada e impedir, pelo meu pensamento, o próprio avanço do filme. Eu precisava de todos os signos de uma vida fugidia, ao ponto de, finalmente, recusar que essa vida se recomponha, de a suspender numa eterna câmera lenta (eu lembro da minha febre, na época das primeiras fitas de vídeo e da ideia de que eu iria poder analisar imagem por imagem os menores tremores da minha ídola). No fim das contas, eu já não sabia mais se eu amava essa mulher ou se eu desejava apaixonadamente a sua morte: ela não era mais que uma carcaça inerte, um brinquedo quebrado que eu desmontava em todos os sentidos, procurando sempre outra coisa, qualquer coisa que teria escapado do meu amor predador. E por uma estranha inversão, nada me emocionava mais que as raras fotos em que ela era outra, em que ela me revelava um rosto desconhecido, irredutível ao estereótipo que eu tinha eleito primeiro: via-se ela na beira do mar, louca de alegria junto de um homem que ela amava; via-se ela na janela de um trem, a cabeça voltada para trás, o ar sonhador; via-se ela de pé contra uma parede, num vestido preto, com uma expressão de estátua, distante, que era também a de minha mãe.
Em suma, eu tinha partido de um nome esquecido, de uma representação anacrônica da feminilidade, para encaminhá-los em direção ao presente por uma obscura semelhança: o esforço de decifrar nos traços juvenis de minha mãe antigos modelos, eu o reproduzia em sentido inverso, forçando a morte a voltar à vida e a retomar um lugar deixado vazio. De forma que eu amava essa mulher sem que ela pudesse me comunicar qualquer alegria, mas apenas a obsessão de não poder possuir sua memória... Ela tinha se tornado minha prisioneira, e eu reconstituía seus fatos e gestos com a mesma obstinação que o narrador proustiano - menos por nostalgia que pela ambição de racionalizar o inefável, de verificar um sonho desaparecido. Para dizer a verdade, eu nunca acreditei totalmente na existência real de Gérard Philipe, de Gaby Morlay: eu muitas vezes lamentei por não tê-los encontrado (sempre ousando imaginar tão pouco esse encontro quanto aquele com Napoleão ou Joana D'Arc); eu procurava pacientemente me apropriar de seus vestígios, desdobrar seu movimento... E, mesmo assim, depois de tantos esforços, era necessário que isso não fosse possível. Impossível que essas criaturas celestes tivessem sido de carne e osso, tivessem se misturado com pessoas ainda vivas e que me pareciam, elas mesmas, sombras imemoriais... Impossível que eu tivesse o direito de amar alguém que tivesse, por sua vez, o direito de me ver.
Era necessário que as mulheres amadas não fossem mais que fantasmas, ou essas estrelas apagadas cujo brilho só chega até nós muito tempo depois... E foi muito tempo depois que eu pude situar suas primeiras aparições, cujos contornos eram primeiramente flutuantes: a mais antiga que eu me lembro, é a de Odette Joyeux em Le Mariage de Chiffon. Era no fundo de um pesado salão provinciano - e a atmosfera empoeirada desse salão, a gentileza insistente de meus anfitriões são, para mim, inseparáveis de uma única cena surgida do nada: era o começo do filme, e o elegante militar interpretado por André Luguet encontrava, na chuva, Odette Joyeux, que tinha perdido o seu sapato e que ele carregava nos seus braços como uma recém-casada... Esses são, ao menos, os elementos que me permitem recompor a posteriori essa sequência; sem dúvida eu a revi depois, mas essa verificação se apagou enquanto que a cena imaginária permanece viva. O que me convidou a escolhê-la entre todas as outras e a esquecer o resto do filme? Poderíamos glosar sobre uma metáfora à la Cinderela, ou sobre as ambiguidades edipianas desse amável flerte... Mas o que me encantava, tanto quanto a heroína do filme, era precisamente a gentileza de uma tal representação, na qual o amor só avançava sob formas convencionais.
Havia outros momentos mágicos, que eu salvei do desaparecimento completo do filme na minha lembrança: por exemplo, em La Comédie du bonheur, era uma jovem supostamente feia (Micheline Presle), que se via milagrosamente embelezada pelo amor. Eu me lembro com carinho das presenças de Louis Jourdan, de Jacqueline Delubac, mas meu olhar parou sobre essa estranha transfiguração... E eu pude rever, muitos anos depois, esse filme anódino e com o espírito do teatro de boulevard; eu revi essa imagem que eu tinha amado tanto e que me pareceu menos milagrosa. Isso não impede que, se eu devaneio hoje com essa Comédie du bonheur, a minha primeira emoção apague antecipadamente a desilusão: só fica para mim essa passagem misteriosa de uma mulher a outra, e esse perfume de conto de fadas indeterminado.
Eu penso também em um outro filme do começo da guerra, Untel père et fils, e dessa saga patriótica eu só retive dois episódios: um discurso pronunciado por Raimu num banquete de casamento (sem dúvida minha mãe contribuiu para a fixação dessa cena, me dizendo, sabe-se lá por quê, que ela era célebre), uma sessão de aviação em 1900, acompanhada por uma família inteira, endomingada e perturbada... Aqui de novo, uma visão posterior, fazendo ressurgir imagens que eu acreditava ter esquecido, me revelando apenas um daguerreótipo trabalhoso, deixou intacta a minha emoção inicial. Seria preciso mesmo dizer que ela a aumentou: reencontrando essa cena do banquete que só era famosa para mim, eu fui surpreendido por verter verdadeiras lágrimas por essa burguesia sepultada sobre seus velhos sonhos, sobre a criança que tinha lhes dado a fé, sobre o tempo passado depois de todas essas esperanças... De um só golpe, eu me encontrava no coração da minha nostalgia - mas não era a de uma felicidade que eu poderia situar no passado, era a nostalgia de uma nostalgia, era a imagem de uma imagem.
Eram apenas imagens de felicidade? Eu me lembro, pelo contrário, que minhas primeiras relações com o cinema foram marcadas pelo terror: a primeira imagem animada que me resta na memória, é, na verdade, a minha, aos cinco anos; eu tinha acabado de entrar num café, onde a visão de um televisor ligado me projetava para fora, chorando e arrastando minha mãe pela mão...E eu tive a mesma reação quando meus pais quiseram me levar para ver Cinderela: enquanto meu irmão já estava instalado na sala, bastava-me ver a tela para fugir, para o espanto da lanterninha. Essa cena permanece associada, para mim, a um remorso trágico, a uma culpa por ter arruinado o prazer do meu irmão, a todo um clima de eletricidade e de loucura que parecia inaugurar pelo avesso minha mística de cinéfilo... E depois, num outro cinema, tinha uma imagem de Era uma vez no oeste que levava o horror ao seu auge até talvez me libertar dele: era o momento em que a criança, embaixo da casa, se encontra sozinho diante dos assassinos. Entre a inocência desse menininho e a certeza da morte, jogava-se um contraste que me dilacerava - como se eu tivesse me identificado com esse Isaac injustamente sacrificado... Nos desenhos animados que eu vi em seguida, são ainda os episódios trágicos que marcaram minha memória: como todas as crianças, eu fui perturbado pela morte da mãe em Bambi, que se abria como um abismo inverossímil, contudo, mais verossímil que o sentimentalismo que lhe acompanhava. Na verdade, eu não consigo mais distinguir tanta gentileza e tanta escuridão, que deveriam me cativar de maneira indiferente como as duas faces de uma mesma obsessão, de uma mesma infância perdida.
O cinema, pouco a pouco, tornou-se o território de uma morte maravilhosa, como um Olimpo povoado de puros espíritos e de corpos sem carne, como se eu pudesse admirar antecipadamente o que iria ser a vida eterna - quer ela fosse infernal ou paradisíaca. Na televisão, isso poderia tanto ser a série das Sissi quanto a das Angélique, ou ainda os deprimidos filmes de tese que prefaciavam Les Dossiers de l'écran, com seus títulos vindos dos bem-pensantes anos cinquenta: La cage aux filles, A nau dos insensatos... Agitava-se aqui de todo um velho mundo maldito, que se pretendia reciclar para ilustrar os problemas atuais da sociedade, e cujos vícios me pareciam sobre-humanos. Na minha lembrança, esses vícios se confundem com a virtude ao ponto de constituírem um único Além, cujo prestígio exclusivo era o anacronismo: eu não compreendia muito bem o que significavam essas histórias, com seus subtextos sexuais e seus diálogos de duplo sentido; elas eram magnificadas pelo poder único do preto e branco, da antiguidade, do improvável. Começava assim a se formar uma segunda família, que vinha substituir a outra e reproduzir os traços daquela sob uma forma excessiva: dessa forma, eu tinha a impressão de melhor decifrar o que se passava em torno de mim, de me vingar contra uma realidade enfim legível e recolhida sob o meu olhar.
Havia também um programa dedicado à redifusão de clássicos franceses, e cuja abertura, sobretudo, me fascinava... Ela se apresentava como um quebra-cabeça, feito de pedaços da antologia do repertório - e esse panteão acelerado saciava meu gosto pelos passeios elíseos, pelas retrospectivas líricas. Em alguns minutos, eles liberavam o essencial do que me encantava nesses filmes: seu caráter de objeto morto e contemplado pela eternidade, consagrado por gerações de cinéfilos das quais meus pais tinham participado, introduzido numa lenda ainda meio viva... Do mesmo modo que, percorrendo minhas fotos de família, ou passeando entre os nomes gravados nas pedras dos cemitérios, eu procurava ali os traços de uma morte possível na vida, de uma vida contida na morte, de uma aliança mágica entre esses dois reinos... E isso era também o que me fazia amar os necrológios de atores célebres: quando meu pai abria um jornal no qual se espalhava uma imensa foto de Maurice Chevalier, quando a televisão oferecia a crônica cotidiana dos últimos dias de Pierre Fresnay, eu acreditava assistir aos sinais de uma ressurreição. Primeiro porque eu não conhecia essas pessoas, e que na hora da sua morte eles se animavam, para mim, com uma vida nova, conservada pelos comentários dos meus pais e dos jornalistas, pelas homenagens que me pareciam uma festa... Sobretudo, porque eu queria ver ali um retorno do passado na espessura do presente, uma brecha cavada no tempo e por onde eu poderia perceber a eternidade, por onde a morte seria negada - porque gerações tão distantes poderiam falar uma com a outra e transmitir seus segredos.
O ápice da minha exaltação, foi o imaginário histórico de Sacha Guitry. Eu amei até a obsessão a história da França, quer dizer, a história dos reis que fizeram a França, aquela que eu tinha descoberto nos meus livros de imagens... Era preciso então que eu encontrasse Guitry - e foi numa noite carregada de tempestades, na qual meu pai nos trazia de volta no carro, em que eu me desesperava por perder o começo do filme, em que assim que chegamos eu me joguei sobre o televisor para mudar de canal... Meu irmão via um jogo de futebol, e do mesmo modo que anteriormente eu lhe tinha proibido Cinderela, eu lhe infligia a passagem para No Castelo de Versalhes. Era a cena em que Luís XIV/Guitry repudia a sua amante, Madame de Montespan/Claudette Colbert - e eu estava tão capturado por essa misoginia sem réplica, por essa teatralidade altaneira, sobretudo pelo plano do lenço embebido na água que o monarca torce num copo... Me parece que tudo nessa sequência, respondia à minha emoção antecipada, à minha violência, ao clima fervoroso que eu tinha preparado em torno do filme: era como uma grande missa cuja audiência eu impunha aos meus pais, uma espécie de vida mais verdadeira que a vida e diante da qual convinha se curvar.
Essa figura de mulher abatida é a única que realmente me marcou nessa primeira visão; mas o filme inteiro ia se tornar para mim um catálogo de representações sublimes, no qual a História se declinava em palavras de autor, em que a imagem só era o pretexto de um discurso autossuficiente... Eu me pergunto, em geral, se não era preciso, para que tal cristalização se operasse, que houvesse o suporte de um texto - como se nenhuma encarnação fosse possível sem que fosse primeiro verbal. Ao mesmo tempo, me era quase impossível ler romances, eu era perturbado por um excesso de palavras que evocavam muitas piscadelas e segundas intenções e ecos ao infinito... Era-me necessária uma única imagem que pudesse parar os poderes do texto, contê-los no interior de um quadro reconfortante - e, por sua vez, eu só poderia conceber essa imagem como a tradução de uma mensagem: se eu lia Madame Bovary, ele me dava a ideia de fazer um roteiro de filme - e eu preparava a desossa paciente do livro de Flaubert, não hesitando em cortar, como digressões inúteis, o baile na Vaubyessard ou a operação de Hippolyte, estreitando os diálogos, depurando a escritura de todas as visões parasitas que corriam o risco de surgir. Tanto quanto a leitura, foi isso o que tornou para mim, por muito tempo , difícil a visita a uma exposição - porque uma imagem não caça a outra, como no cinema ou na vida. A cada vez, é um processo de decomposição que se dispõe: eu tento apreender cada detalhe, um depois do outro, e só sai uma totalidade desfeita, desamparada, dispersa. Na verdade, nada me inquieta mais que uma hipnose parecida - a menos que eu a fabrique de maneira obscura, com as vistas tiradas do meu espírito... Nesses momentos, eu encontro a criança que eu era e que os pobres caminhos do interior encantavam, despertados pelos faróis de um carro, ou essas florestas anônimas que o trem atravessa: o que eu tinha sob os olhos não tinha nenhum interesse, não me dizia nada, é simplesmente um corpo inerte que eu reanimo através da tenacidade do meu olhar. Eu não tenho muita vontade de saber o que se esconde por trás, eu preferia que o espetáculo continuasse sem cessar e que sem cessar imagens venham substituir as outras imagens - para evitar ver verdadeiramente qualquer coisa, para ver o que não é ou o que não é mais.
Eu penso nessa noite que eu passei nos gritos e lágrimas, mais ou menos aos doze anos: eu queria ficar acordado até mais tarde para ver no cineclube O ano passado em Marienbad, e meu pai tinha me mandado deitar. Até uma hora absurda, eu não parei de chorar, de suplicar, de pedir socorro - e o meu pai regularmente vinha me ver, para me acalmar e para renovar o seu veto. O que me interessava nesse Marienbad? Eu só tinha lido uma descrição elogiosa no dicionário de Sadoul, que era então a minha Bíblia, e onde me exaltavam as fotos retocadas, as narrativas no imperfeito, as citações de momentos memoráveis... Tudo o que aparentava os filmes à objetos legendários, tudo o que identificava o historiador a uma testemunha ressuscitada dos mortos. A foto era aquela de Delphine Seyrig ao pé de uma escada, ela não tinha nada para me emocionar e nada ligava o filme ao meu domínio eleito... Bastava que não me fosse permitido vê-lo para que eu projetasse nele minhas fantasias - mas não entrava ali nenhuma proibição moral, era como um território sagrado ao qual eu não tinha acesso, uma segunda noite no interior da noite, um outro mundo que eu associava de maneira obscura ao período em que meus pais se amaram... Eu vi muitos anos mais tarde O ano passado em Marienbad; mas a minha lembrança desse filme era antecipadamente apagada pela angústia de não vê-lo, por essa ausência monstruosa que não queria deixar meu quarto e que nenhuma palavra do meu pai poderia consolar.
Por muito tempo, o cinema permaneceu para mim essa ausência, povoada de palavras mais fascinantes que os próprios filmes... Na margem do dicionário de Sadoul, eu escrevia minhas próprias fichas, nas quais eu retomava todos os tiques do meu modelo: o resumo seguido de um comentário, a revisão das sequências mais marcantes, o tom de celebração solene. Em suma, eu trilhava de volta no sentido inverso meu percurso de leitor mistificado, eu jogava novamente o corpo do filme nas trevas. E era um reflexo semelhante que me fazia transcrever os filmes que eu amava, a partir de um registro de gravador que aparentava a difusão a uma verdadeira cerimônia - e que se tornava em seguida uma litania vinte vezes interrompida, retomada, repetida. Estranhamente, essa repetição do diálogo acabava por desrealizá-lo, por suscitar uma espécie de descolamento da retina: era o olho que escutava e que recriava o filme a seu bel-prazer, partindo de fragmentos de diálogos, por vezes incompreensíveis, reconstituindo uma imagem cujos contornos eram fugidios. Eu não sabia mais com que se parecia o antro dos falsificadores em Les disparus de Saint-Agil, não mais que as quinquilharias das Portas da noite ou a pequena escola de Sombra do pavor, mas à força de serem engrossados pelo mistério da trilha sonora, esses lugares se desdobravam ao infinito, até não serem mais que os vestígios de um sonho. A todo esse cinema de antes da guerra, tão previsível nas suas partes sombrias e sua poesia concertada, eu emprestava um acréscimo de irreal; eu ingressava nessas tardes solitárias, passadas a imaginar os filmes cujo título ou o resumo de Sadoul bastavam para evocar um mundo antediluviano: Pension Mimosas, Douce, Carnet de bal... No salão de uma casa burguesa, entre um piano desafinado, um banco de vime e almofadas de cetim vermelho, eu imitava os sofrimentos do amor rejeitado, a nostalgia das paixões mortas, a elegância dos tempos idos. O amor já não era mais que uma lembrança, o filme tinha desaparecido antes mesmo de ter sido visto.
Das fotonovelas aos roteiros romanceados, de Mon film a Avant-scène, eu perseguia também meu sonho de um cinema aplainado, transformado novamente em objeto de tinta e papel; eu me apropriava de todas as formas de filmes que eu pudesse elaborar pela imaginação ou reconstruir posteriormente. Pela força das fantasias, me acontecia de duvidar que as obras existiam realmente: entre a lógica dessas narrativas desencarnadas e aquela de um possível filme que se desdobraria a seu bel-prazer, eu não encontrava ligação e eu parava numa periferia imprecisa... E essa cinefilia livresca era ainda amplificada pelas alusões preliminares dos meus pais, que instalavam o filme numa lenda autônoma, e diferiam a hora de sua presença concreta: esse foi, por excelência, o caso de O boulevard do crime tão precedido de evocações exaltadas que eu tenho dificuldade, hoje, em libertar minha primeira visão desse êxtase antecipado. Era um domingo à tarde com minha mãe e meu irmão, nesse velho bairro de Gobelins que se confunde, para mim, com a entrada em Paris: eu me lembro dos episódios que me atingiram naquele dia (especialmente o do puteiro e do passeio noturno numa Paris ainda mais antiga); eu me lembro da voz de Arletty na primeira cena, e o quanto a sua vulgaridade inicialmente me chocou... Mas na verdade, me parece que era um fantasma de filme que ganhava corpo aos meus olhos, e que eu continuava sem ver nada nele, além de uma aura mágica.
Era verdade para a maior parte dos clássicos que eu então descobria: eles vinham preencher os espaços, dar forma às palavras, realizar emoções teóricas e ha muito tempo programadas. Num cinema da Rua das Escolas, eu via sucessivamente Família exótica e Cidadão Kane, Brinquedo proibido e O terceiro homem... Mas, do que eu me lembro, vem primeiro o ritual que acompanhava essas peregrinações: é uma sala forrada de veludo vermelho, lugar retirado do tempo como o salão de família e onde eu me divertia em surpreender a projeção invertida por um sistema refletor; é da presença de minha mãe, que tinha visto todos esses filmes vinte anos antes e lhes emprestava a caução; e sempre os livros que prolongavam sua duração, que verificavam sua procedência: havia, por exemplo, uma série de livros em que, imagem por imagem, eu poderia seguir os traços dos roteiros de Prévert ou de Cocteau... E esses instrumentos de dissecação me pareciam mais maravilhosos que os aparelhos de projeção, porque eles me permitiam reconstruir esse mundo à minha maneira e conduzi-lo em todas as direções. Além disso, eu praticamente só me apaixonava por um cinema retórico e a ação concisa do filme clássico americano me seduzia menos que os arabescos verbais do realismo poético, da qualidade francesa, do pós-expressionismo à inglesa. Nessa tradição, minha preferência ia para o período mal-amado dos anos 45 a 50 - porque eu sabia que ele era mal-amado, e que um instinto me levava em direção às causas perdidas; porque eu amava de maneira obscura, em Carol Reed ou René Clément uma certa tensão entre o Evangelho humanista e os transbordamentos do real; mas sobretudo, me parece, porque essa época era aquela de uma era de ouro que meus pais poderiam ter conhecido, de uma tela de antes da queda na qual eu poderia projetar suas sombras.
Meu caminho de Damasco, foi o encontro das Dernières Vacances de Roger Leenhard. Foi por acaso que eu vi esse filme, para o qual nenhuma pessoa grande tinha me preparado, que caía na minha vida como se cruza com um ser que vamos amar para sempre. O fato é que meu amor à primeira vista é inseparável do clima daquelas férias - num lugar inabitual, junto de pessoas que desapareceram da minha memória... E eu projetava sem dúvida um pouco desse torpor atemporal sobre a propriedade na região do Languedoc, reconstruída pelo cineasta, e que se tornava para mim uma floresta de Brocéliande. Eu não acreditava que era possível se apaixonar por um filme como eu me apaixonei por essas Dernières Vacances: eu quero dizer que eu entrava nessa paisagem como entramos em nós mesmos, como acreditamos reencontrar alguém que teria voltado de uma vida anterior. A cada passo que eu dava nesse velho domínio, eu reconhecia um rosto familiar, uma emoção que era a minha, uma sensação de déjà vu... E de fato, a ternura triste que esse filme deveria me inspirar parece aquela que se experimenta na manhã seguinte a sonhos felizes demais: havia ali a imagem exata de um paraíso que não me conhecia mais. O que compunha essa imagem? Eu acho que ela melhorou as lembranças de minhas últimas férias - numa propriedade abandonada, ela também, às vésperas de uma adolescência já morta - com a ajuda dos quinze anos imaginários dos meus pais, do meu pai, sobretudo, que no lançamento do filme tinha a idade do jovem herói. As brincadeiras das crianças em torno do fogo, a família dançando uma velha quadrilha de antes da guerra, o garoto tentando beijar sua prima na hora de deixar a propriedade... Eu não desvendo totalmente qual dessas cenas me emocionou mais; só me resta um sentimento cego, de que um mundo inteiro subia à superfície e voltava para mim.
Eu adoraria evocar outras etapas: os clássicos do cinema francês que eu descobria na televisão, a predileção por esses pais que a Nouvelle Vague tinha humilhado ou por essas atrizes que tínhamos esquecido, a constituição, pouco a pouco, de uma comédia humana na qual eu só sabia encontrar nomes familiares, rostos reconfortantes, figuras comprovadas... Mas é como um jogo de espelhos que se multiplica ao infinito, e no qual eu só encontro o reflexo do meu olhar, a obsessão nunca apaziguada de surpreender uma outra realidade - indubitável porque esses seres na tela tinham verdadeiramente existido, maravilhosa porque a maior parte deles estava morta ou só se deslocava com longos anos de distância. Me parece que é isso que experimentamos quando sonhamos com parentes distantes ou mortos: a ideia de uma existência que se realiza na ausência, que entrega um segredo desconhecido da própria pessoa e que ela só saberia trair. Eu me lembro de uma em particular cuja presença me feria, por causa do nosso desacordo sobre quase tudo, por causa de sua fuga perpétua em direção aos outros e que me impedia de entender seu rosto... Um dia, eu parei diante de uma foto, em que estavam resumidas de uma maneira milagrosa todas as razões porque eu a amava: eu via ali um olhar sonhador que continuava fugindo de mim, e que, contudo, parecia me responder, me justificar. Eu olhava essa foto como se ela tivesse me restituído uma outra identidade que eu era o único a conhecer, um negativo poético que não parava de recusar o curso de sua vida. Eu queria roubá-la e renunciei, e eu terminei por aceitar o que é...
Mas ainda hoje, nós não podemos nos ver sem que eu projete essa imagem, sem que eu prefira essa imagem.
Nostalgie des images foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°16, inverno de 2001. Tradução: Miguel Haoni.