O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Nostalgia das imagens


Por Noël Herpe

Diante das imagens do meu álbum de família, existem logo aquelas que o cinema me oferecia: se o meu pai me parecia como o encontro vivo de dez jovens apaixonados, eu procurava entre estes, ícones nos quais eu poderia redescobrir uma alma eclipsada. Bizarramente, essa obsessão não se fixava sobre os sósias de meu pai – ou então sobre os sósias virtuais, cujos traços exprimiam uma pureza totalmente interior. Se, por exemplo, eu amei tanto Gérard Philipe, foi porque seu brilho era só o reflexo de uma vocação moral, de todo o bem querer de uma geração. Ao pé da letra, eu o amava como poderia ter amado o Cristo: sua foto sobre a minha cama era como uma figura do Salvador, e eu decifrava em todas as etapas de seu destino os traços de uma semelhança sagrada (a aparição angélica em Sodome et Gomorrhe; a cruzada laica do Teatro Nacional Popular; o engajamento político; a morte trágica). Me parecia miraculoso que um tal ser pudesse se misturar à humanidade, ser próximo de pessoas ainda vivas e simplesmente existir : era como se ele tivesse existido, sem que soubéssemos, uma única criatura pura de qualquer reprovação – e que não teria nem mesmo assumido os pecados do mundo, que, pelo contrário, os teria ignorado. E foi esse o papel interpretado por Gérard Philipe, nesse pós-guerra do qual eu só queria ver a candura: o de um anjo da negação, que redimia, só com sua inocência, todos os crimes de seus antepassados, que passava por cima e acreditava nos amanhãs que cantam… Eu não era muito consciente dessas contingências políticas, eu ignorava a lembrança recalcada do pai colaboracionista – e eu preferia me ligar à mãe, outra figura assexuada, um pouco menos à esposa cuja presença me parecia duvidosa ou séria demais, mais aos filhos com os quais eu me maravilhava que viessem confirmar a encarnação desse Verbo. Se formava aí um verdadeiro mito stalinista, que coincidia com as simpatias militantes do ator, e, acima de tudo, me convidava a retocar cuidadosamente todas as suas fotos, para não deixar nelas a prova de nenhum erro humano.

Eu era também menos sensível às suas aparições cinematográficas que às suas fotografias que eu recortava nos jornais e que eu arquivava num caderno de escola com o mesmo fervor que os meus retratos de família… Todos os adolescentes conheceram essas fixações, mas me parece que a minha se distinguia pelo seu caráter puramente mental: se eu repasso essas fotos na minha lembrança, eu não vejo mais que um encanto descolorido, exangue, edulcorado por um imaginário de Épinal no qual se expunha a Quarta República, tal qual ela queria ter sido. Eram menos os traços de um ser em movimento que vinhetas heróicas, nas quais as cenas mais íntimas se organizavam para compor um tableau; e a própria figura do Cid tornava-se aquela do Comandante – que me oferecia os signos de uma maturidade impossível por ser elevado acima dos homens. Eu encontrava, aliás, o equivalente na adoração por uma atriz, esta cultivada até a mania: foi o nome de Gaby Morlay que me intrigou primeiro, uma tarde em que eu via televisão e que minha mãe tinha elucidado para mim essas sílabas bizarras… Eu só me lembro da cena final do filme que passava naquele dia: aquela em que ela visitava Fernandel, de volta à sua Provence natal, e na qual eu a descobria como um ícone absoluto de gentileza (a Mãe junto do Filho que era Gérard Philipe?)... Como todas aquelas que viriam em seguida, essa imagem se perde aos meus olhos numa névoa mística: eu não via uma mulher com um rosto e um corpo, eu me aproximava de uma Madona descida dos céus, e da qual eu assistia às aparições televisivas como tantos milagres roubados à divindade. Nesse itinerário, eu encontrei a minha noite pascaliana depois de ter visto Quadrille em que me era oferecida uma antologia do estilo Morlay, de seus tiques, de suas risadinhas relinchantes, de seus lenços torturados... Tudo isso era realçado pelos prestígios do pequeno mundo de Guitry, mas, curiosamente, eu só guardei dessa primeira visão duas imagens: de novo a cena final, na qual os dois casais se cruzam num balé estilizado de forma ingênua; os créditos, nos quais Gaby Morlay se penteia antes da filmagem, e se apresenta ao público como uma autocaricatura simpática. Hoje, eu me pergunto se essas imagens foram imediatamente presas em mim ou se foi o tempo que as decantou, isolou, depurou de seu contexto... Seguiu-se, um pouco mais tarde, Derrière la façade, com um monólogo ao telefone que era também uma coleção de piscadelas autoparódicas: eram bem esses clichês que reanimavam o meu amor e eu só corria atrás dessa sombra quando ela estava reduzida à sua mais simples expressão.

Foi então que começou uma paixão inverossímil, a de trazer de volta uma rainha morta, justapondo todas as vistas tomadas dela em todos os instantes de sua vida. Eu acumulava não somente todas as informações que eu pudesse recolher, mesmo as mais fúteis, mas também todos os traços visuais de uma presença. Era o empreendimento de um taumaturgo que captura tudo o que ele pega de passagem, fotos recortadas ou fotocopiadas dos jornais, fotos recolhidas nos arquivos familiares, filmes vistos como tantas evidências que provariam a realidade de uma existência... Quando eu vejo agora um filme em que aparece Gaby Morlay, eu não sinto mais nenhum prazer: isso se tornou uma atenção desenfreada a cada um de seus gestos, a cada nuance de sua voz, a cada detalhe de seu jeito, como para não perder nada e impedir, pelo meu pensamento, o próprio avanço do filme. Eu precisava de todos os signos de uma vida fugidia, ao ponto de, finalmente, recusar que essa vida se recomponha, de a suspender numa eterna câmera lenta (eu lembro da minha febre, na época das primeiras fitas de vídeo e da ideia de que eu iria poder analisar imagem por imagem os menores tremores da minha ídola). No fim das contas, eu já não sabia mais se eu amava essa mulher ou se eu desejava apaixonadamente a sua morte: ela não era mais que uma carcaça inerte, um brinquedo quebrado que eu desmontava em todos os sentidos, procurando sempre outra coisa, qualquer coisa que teria escapado do meu amor predador. E por uma estranha inversão, nada me emocionava mais que as raras fotos em que ela era outra, em que ela me revelava um rosto desconhecido, irredutível ao estereótipo que eu tinha eleito primeiro: via-se ela na beira do mar, louca de alegria junto de um homem que ela amava; via-se ela na janela de um trem, a cabeça voltada para trás, o ar sonhador; via-se ela de pé contra uma parede, num vestido preto, com uma expressão de estátua, distante, que era também a de minha mãe.

Em suma, eu tinha partido de um nome esquecido, de uma representação anacrônica da feminilidade, para encaminhá-los em direção ao presente por uma obscura semelhança: o esforço de decifrar nos traços juvenis de minha mãe antigos modelos, eu o reproduzia em sentido inverso, forçando a morte a voltar à vida e a retomar um lugar deixado vazio. De forma que eu amava essa mulher sem que ela pudesse me comunicar qualquer alegria, mas apenas a obsessão de não poder possuir sua memória... Ela tinha se tornado minha prisioneira, e eu reconstituía seus fatos e gestos com a mesma obstinação que o narrador proustiano - menos por nostalgia que pela ambição de racionalizar o inefável, de verificar um sonho desaparecido. Para dizer a verdade, eu nunca acreditei totalmente na existência real de Gérard Philipe, de Gaby Morlay: eu muitas vezes lamentei por não tê-los encontrado (sempre ousando imaginar tão pouco esse encontro quanto aquele com Napoleão ou Joana D'Arc); eu procurava pacientemente me apropriar de seus vestígios, desdobrar seu movimento... E, mesmo assim, depois de tantos esforços, era necessário que isso não fosse possível. Impossível que essas criaturas celestes tivessem sido de carne e osso, tivessem se misturado com pessoas ainda vivas e que me pareciam, elas mesmas, sombras imemoriais... Impossível que eu tivesse o direito de amar alguém que tivesse, por sua vez, o direito de me ver.

Era necessário que as mulheres amadas não fossem mais que fantasmas, ou essas estrelas apagadas cujo brilho só chega até nós muito tempo depois... E foi muito tempo depois que eu pude situar suas primeiras aparições, cujos contornos eram primeiramente flutuantes: a mais antiga que eu me lembro, é a de Odette Joyeux em Le Mariage de Chiffon. Era no fundo de um pesado salão provinciano - e a atmosfera empoeirada desse salão, a gentileza insistente de meus anfitriões são, para mim, inseparáveis de uma única cena surgida do nada: era o começo do filme, e o elegante militar interpretado por André Luguet encontrava, na chuva, Odette Joyeux, que tinha perdido o seu sapato e que ele carregava nos seus braços como uma recém-casada... Esses são, ao menos, os elementos que me permitem recompor a posteriori essa sequência; sem dúvida eu a revi depois, mas essa verificação se apagou enquanto que a cena imaginária permanece viva. O que me convidou a escolhê-la entre todas as outras e a esquecer o resto do filme? Poderíamos glosar sobre uma metáfora à la Cinderela, ou sobre as ambiguidades edipianas desse amável flerte... Mas o que me encantava, tanto quanto a heroína do filme, era precisamente a gentileza de uma tal representação, na qual o amor só avançava sob formas convencionais.




Havia outros momentos mágicos, que eu salvei do desaparecimento completo do filme na minha lembrança: por exemplo, em La Comédie du bonheur, era uma jovem supostamente feia (Micheline Presle), que se via milagrosamente embelezada pelo amor. Eu me lembro com carinho das presenças de Louis Jourdan, de Jacqueline Delubac, mas meu olhar parou sobre essa estranha transfiguração... E eu pude rever, muitos anos depois, esse filme anódino e com o espírito do teatro de boulevard; eu revi essa imagem que eu tinha amado tanto e que me pareceu menos milagrosa. Isso não impede que, se eu devaneio hoje com essa Comédie du bonheur, a minha primeira emoção apague antecipadamente a desilusão: só fica para mim essa passagem misteriosa de uma mulher a outra, e esse perfume de conto de fadas indeterminado.

Eu penso também em um outro filme do começo da guerra, Untel père et fils, e dessa saga patriótica eu só retive dois episódios: um discurso pronunciado por Raimu num banquete de casamento (sem dúvida minha mãe contribuiu para a fixação dessa cena, me dizendo, sabe-se lá por quê, que ela era célebre), uma sessão de aviação em 1900, acompanhada por uma família inteira, endomingada e perturbada... Aqui de novo, uma visão posterior, fazendo ressurgir imagens que eu acreditava ter esquecido, me revelando apenas um daguerreótipo trabalhoso, deixou intacta a minha emoção inicial. Seria preciso mesmo dizer que ela a aumentou: reencontrando essa cena do banquete que só era famosa para mim, eu fui surpreendido por verter verdadeiras lágrimas por essa burguesia sepultada sobre seus velhos sonhos, sobre a criança que tinha lhes dado a fé, sobre o tempo passado depois de todas essas esperanças... De um só golpe, eu me encontrava no coração da minha nostalgia - mas não era a de uma felicidade que eu poderia situar no passado, era a nostalgia de uma nostalgia, era a imagem de uma imagem.

Eram apenas imagens de felicidade? Eu me lembro, pelo contrário, que minhas primeiras relações com o cinema foram marcadas pelo terror: a primeira imagem animada que me resta na memória, é, na verdade, a minha, aos cinco anos; eu tinha acabado de entrar num café, onde a visão de um televisor ligado me projetava para fora, chorando e arrastando minha mãe pela mão...E eu tive a mesma reação quando meus pais quiseram me levar para ver Cinderela: enquanto meu irmão já estava instalado na sala, bastava-me ver a tela para fugir, para o espanto da lanterninha. Essa cena permanece associada, para mim, a um remorso trágico, a uma culpa por ter arruinado o prazer do meu irmão, a todo um clima de eletricidade e de loucura que parecia inaugurar pelo avesso minha mística de cinéfilo... E depois, num outro cinema, tinha uma imagem de Era uma vez no oeste que levava o horror ao seu auge até talvez me libertar dele: era o momento em que a criança, embaixo da casa, se encontra sozinho diante dos assassinos. Entre a inocência desse menininho e a certeza da morte, jogava-se um contraste que me dilacerava - como se eu tivesse me identificado com esse Isaac injustamente sacrificado... Nos desenhos animados que eu vi em seguida, são ainda os episódios trágicos que marcaram minha memória: como todas as crianças, eu fui perturbado pela morte da mãe em Bambi, que se abria como um abismo inverossímil, contudo, mais verossímil que o sentimentalismo que lhe acompanhava. Na verdade, eu não consigo mais distinguir tanta gentileza e tanta escuridão, que deveriam me cativar de maneira indiferente como as duas faces de uma mesma obsessão, de uma mesma infância perdida.

O cinema, pouco a pouco, tornou-se o território de uma morte maravilhosa, como um Olimpo povoado de puros espíritos e de corpos sem carne, como se eu pudesse admirar antecipadamente o que iria ser a vida eterna - quer ela fosse infernal ou paradisíaca. Na televisão, isso poderia tanto ser a série das Sissi quanto a das Angélique, ou ainda os deprimidos filmes de tese que prefaciavam Les Dossiers de l'écran, com seus títulos vindos dos bem-pensantes anos cinquenta: La cage aux filles, A nau dos insensatos... Agitava-se aqui de todo um velho mundo maldito, que se pretendia reciclar para ilustrar os problemas atuais da sociedade, e cujos vícios me pareciam sobre-humanos. Na minha lembrança, esses vícios se confundem com a virtude ao ponto de constituírem um único Além, cujo prestígio exclusivo era o anacronismo: eu não compreendia muito bem o que significavam essas histórias, com seus subtextos sexuais e seus diálogos de duplo sentido; elas eram magnificadas pelo poder único do preto e branco, da antiguidade, do improvável. Começava assim a se formar uma segunda família, que vinha substituir a outra e reproduzir os traços daquela sob uma forma excessiva: dessa forma, eu tinha a impressão de melhor decifrar o que se passava em torno de mim, de me vingar contra uma realidade enfim legível e recolhida sob o meu olhar.




Havia também um programa dedicado à redifusão de clássicos franceses, e cuja abertura, sobretudo, me fascinava... Ela se apresentava como um quebra-cabeça, feito de pedaços da antologia do repertório - e esse panteão acelerado saciava meu gosto pelos passeios elíseos, pelas retrospectivas líricas. Em alguns minutos, eles liberavam o essencial do que me encantava nesses filmes: seu caráter de objeto morto e contemplado pela eternidade, consagrado por gerações de cinéfilos das quais meus pais tinham participado, introduzido numa lenda ainda meio viva... Do mesmo modo que, percorrendo minhas fotos de família, ou passeando entre os nomes gravados nas pedras dos cemitérios, eu procurava ali os traços de uma morte possível na vida, de uma vida contida na morte, de uma aliança mágica entre esses dois reinos... E isso era também o que me fazia amar os necrológios de atores célebres: quando meu pai abria um jornal no qual se espalhava uma imensa foto de Maurice Chevalier, quando a televisão oferecia a crônica cotidiana dos últimos dias de Pierre Fresnay, eu acreditava assistir aos sinais de uma ressurreição. Primeiro porque eu não conhecia essas pessoas, e que na hora da sua morte eles se animavam, para mim, com uma vida nova, conservada pelos comentários dos meus pais e dos jornalistas, pelas homenagens que me pareciam uma festa... Sobretudo, porque eu queria ver ali um retorno do passado na espessura do presente, uma brecha cavada no tempo e por onde eu poderia perceber a eternidade, por onde a morte seria negada - porque gerações tão distantes poderiam falar uma com a outra e transmitir seus segredos.

O ápice da minha exaltação, foi o imaginário histórico de Sacha Guitry. Eu amei até a obsessão a história da França, quer dizer, a história dos reis que fizeram a França, aquela que eu tinha descoberto nos meus livros de imagens... Era preciso então que eu encontrasse Guitry - e foi numa noite carregada de tempestades, na qual meu pai nos trazia de volta no carro, em que eu me desesperava por perder o começo do filme, em que assim que chegamos eu me joguei sobre o televisor para mudar de canal... Meu irmão via um jogo de futebol, e do mesmo modo que anteriormente eu lhe tinha proibido Cinderela, eu lhe infligia a passagem para No Castelo de Versalhes. Era a cena em que Luís XIV/Guitry repudia a sua amante, Madame de Montespan/Claudette Colbert - e eu estava tão capturado por essa misoginia sem réplica, por essa teatralidade altaneira, sobretudo pelo plano do lenço embebido na água que o monarca torce num copo... Me parece que tudo nessa sequência, respondia à minha emoção antecipada, à minha violência, ao clima fervoroso que eu tinha preparado em torno do filme: era como uma grande missa cuja audiência eu impunha aos meus pais, uma espécie de vida mais verdadeira que a vida e diante da qual convinha se curvar.

Essa figura de mulher abatida é a única que realmente me marcou nessa primeira visão; mas o filme inteiro ia se tornar para mim um catálogo de representações sublimes, no qual a História se declinava em palavras de autor, em que a imagem só era o pretexto de um discurso autossuficiente... Eu me pergunto, em geral, se não era preciso, para que tal cristalização se operasse, que houvesse o suporte de um texto - como se nenhuma encarnação fosse possível sem que fosse primeiro verbal. Ao mesmo tempo, me era quase impossível ler romances, eu era perturbado por um excesso de palavras que evocavam muitas piscadelas e segundas intenções e ecos ao infinito... Era-me necessária uma única imagem que pudesse parar os poderes do texto, contê-los no interior de um quadro reconfortante - e, por sua vez, eu só poderia conceber essa imagem como a tradução de uma mensagem: se eu lia Madame Bovary, ele me dava a ideia de fazer um roteiro de filme - e eu preparava a desossa paciente do livro de Flaubert, não hesitando em cortar, como digressões inúteis, o baile na Vaubyessard ou a operação de Hippolyte, estreitando os diálogos, depurando a escritura de todas as visões parasitas que corriam o risco de surgir. Tanto quanto a leitura, foi isso o que tornou para mim, por muito tempo , difícil a visita a uma exposição - porque uma imagem não caça a outra, como no cinema ou na vida. A cada vez, é um processo de decomposição que se dispõe: eu tento apreender cada detalhe, um depois do outro, e só sai uma totalidade desfeita, desamparada, dispersa. Na verdade, nada me inquieta mais que uma hipnose parecida - a menos que eu a fabrique de maneira obscura, com as vistas tiradas do meu espírito... Nesses momentos, eu encontro a criança que eu era e que os pobres caminhos do interior encantavam, despertados pelos faróis de um carro, ou essas florestas anônimas que o trem atravessa: o que eu tinha sob os olhos não tinha nenhum interesse, não me dizia nada, é simplesmente um corpo inerte que eu reanimo através da tenacidade do meu olhar. Eu não tenho muita vontade de saber o que se esconde por trás, eu preferia que o espetáculo continuasse sem cessar e que sem cessar imagens venham substituir as outras imagens - para evitar ver verdadeiramente qualquer coisa, para ver o que não é ou o que não é mais.

Eu penso nessa noite que eu passei nos gritos e lágrimas, mais ou menos aos doze anos: eu queria ficar acordado até mais tarde para ver no cineclube O ano passado em Marienbad, e meu pai tinha me mandado deitar. Até uma hora absurda, eu não parei de chorar, de suplicar, de pedir socorro - e o meu pai regularmente vinha me ver, para me acalmar e para renovar o seu veto. O que me interessava nesse Marienbad? Eu só tinha lido uma descrição elogiosa no dicionário de Sadoul, que era então a minha Bíblia, e onde me exaltavam as fotos retocadas, as narrativas no imperfeito, as citações de momentos memoráveis... Tudo o que aparentava os filmes à objetos legendários, tudo o que identificava o historiador a uma testemunha ressuscitada dos mortos. A foto era aquela de Delphine Seyrig ao pé de uma escada, ela não tinha nada para me emocionar e nada ligava o filme ao meu domínio eleito... Bastava que não me fosse permitido vê-lo para que eu projetasse nele minhas fantasias - mas não entrava ali nenhuma proibição moral, era como um território sagrado ao qual eu não tinha acesso, uma segunda noite no interior da noite, um outro mundo que eu associava de maneira obscura ao período em que meus pais se amaram... Eu vi muitos anos mais tarde O ano passado em Marienbad; mas a minha lembrança desse filme era antecipadamente apagada pela angústia de não vê-lo, por essa ausência monstruosa que não queria deixar meu quarto e que nenhuma palavra do meu pai poderia consolar.




Por muito tempo, o cinema permaneceu para mim essa ausência, povoada de palavras mais fascinantes que os próprios filmes... Na margem do dicionário de Sadoul, eu escrevia minhas próprias fichas, nas quais eu retomava todos os tiques do meu modelo: o resumo seguido de um comentário, a revisão das sequências mais marcantes, o tom de celebração solene. Em suma, eu trilhava de volta no sentido inverso meu percurso de leitor mistificado, eu jogava novamente o corpo do filme nas trevas. E era um reflexo semelhante que me fazia transcrever os filmes que eu amava, a partir de um registro de gravador que aparentava a difusão a uma verdadeira cerimônia - e que se tornava em seguida uma litania vinte vezes interrompida, retomada, repetida. Estranhamente, essa repetição do diálogo acabava por desrealizá-lo, por suscitar uma espécie de descolamento da retina: era o olho que escutava e que recriava o filme a seu bel-prazer, partindo de fragmentos de diálogos, por vezes incompreensíveis, reconstituindo uma imagem cujos contornos eram fugidios. Eu não sabia mais com que se parecia o antro dos falsificadores em Les disparus de Saint-Agil, não mais que as quinquilharias das Portas da noite ou a pequena escola de Sombra do pavor, mas à força de serem engrossados pelo mistério da trilha sonora, esses lugares se desdobravam ao infinito, até não serem mais que os vestígios de um sonho. A todo esse cinema de antes da guerra, tão previsível nas suas partes sombrias e sua poesia concertada, eu emprestava um acréscimo de irreal; eu ingressava nessas tardes solitárias, passadas a imaginar os filmes cujo título ou o resumo de Sadoul bastavam para evocar um mundo antediluviano: Pension Mimosas, Douce, Carnet de bal... No salão de uma casa burguesa, entre um piano desafinado, um banco de vime e almofadas de cetim vermelho, eu imitava os sofrimentos do amor rejeitado, a nostalgia das paixões mortas, a elegância dos tempos idos. O amor já não era mais que uma lembrança, o filme tinha desaparecido antes mesmo de ter sido visto.

Das fotonovelas aos roteiros romanceados, de Mon film a Avant-scène, eu perseguia também meu sonho de um cinema aplainado, transformado novamente em objeto de tinta e papel; eu me apropriava de todas as formas de filmes que eu pudesse elaborar pela imaginação ou reconstruir posteriormente. Pela força das fantasias, me acontecia de duvidar que as obras existiam realmente: entre a lógica dessas narrativas desencarnadas e aquela de um possível filme que se desdobraria a seu bel-prazer, eu não encontrava ligação e eu parava numa periferia imprecisa... E essa cinefilia livresca era ainda amplificada pelas alusões preliminares dos meus pais, que instalavam o filme numa lenda autônoma, e diferiam a hora de sua presença concreta: esse foi, por excelência, o caso de O boulevard do crime tão precedido de evocações exaltadas que eu tenho dificuldade, hoje, em libertar minha primeira visão desse êxtase antecipado. Era um domingo à tarde com minha mãe e meu irmão, nesse velho bairro de Gobelins que se confunde, para mim, com a entrada em Paris: eu me lembro dos episódios que me atingiram naquele dia (especialmente o do puteiro e do passeio noturno numa Paris ainda mais antiga); eu me lembro da voz de Arletty na primeira cena, e o quanto a sua vulgaridade inicialmente me chocou... Mas na verdade, me parece que era um fantasma de filme que ganhava corpo aos meus olhos, e que eu continuava sem ver nada nele, além de uma aura mágica.

Era verdade para a maior parte dos clássicos que eu então descobria: eles vinham preencher os espaços, dar forma às palavras, realizar emoções teóricas e ha muito tempo programadas. Num cinema da Rua das Escolas, eu via sucessivamente Família exótica e Cidadão Kane, Brinquedo proibido e O terceiro homem... Mas, do que eu me lembro, vem primeiro o ritual que acompanhava essas peregrinações: é uma sala forrada de veludo vermelho, lugar retirado do tempo como o salão de família e onde eu me divertia em surpreender a projeção invertida por um sistema refletor; é da presença de minha mãe, que tinha visto todos esses filmes vinte anos antes e lhes emprestava a caução; e sempre os livros que prolongavam sua duração, que verificavam sua procedência: havia, por exemplo, uma série de livros em que, imagem por imagem, eu poderia seguir os traços dos roteiros de Prévert ou de Cocteau... E esses instrumentos de dissecação me pareciam mais maravilhosos que os aparelhos de projeção, porque eles me permitiam reconstruir esse mundo à minha maneira e conduzi-lo em todas as direções. Além disso, eu praticamente só me apaixonava por um cinema retórico e a ação concisa do filme clássico americano me seduzia menos que os arabescos verbais do realismo poético, da qualidade francesa, do pós-expressionismo à inglesa. Nessa tradição, minha preferência ia para o período mal-amado dos anos 45 a 50 - porque eu sabia que ele era mal-amado, e que um instinto me levava em direção às causas perdidas; porque eu amava de maneira obscura, em Carol Reed ou René Clément uma certa tensão entre o Evangelho humanista e os transbordamentos do real; mas sobretudo, me parece, porque essa época era aquela de uma era de ouro que meus pais poderiam ter conhecido, de uma tela de antes da queda na qual eu poderia projetar suas sombras.

Meu caminho de Damasco, foi o encontro das Dernières Vacances de Roger Leenhard. Foi por acaso que eu vi esse filme, para o qual nenhuma pessoa grande tinha me preparado, que caía na minha vida como se cruza com um ser que vamos amar para sempre. O fato é que meu amor à primeira vista é inseparável do clima daquelas férias - num lugar inabitual, junto de pessoas que desapareceram da minha memória... E eu projetava sem dúvida um pouco desse torpor atemporal sobre a propriedade na região do Languedoc, reconstruída pelo cineasta, e que se tornava para mim uma floresta de Brocéliande. Eu não acreditava que era possível se apaixonar por um filme como eu me apaixonei por essas Dernières Vacances: eu quero dizer que eu entrava nessa paisagem como entramos em nós mesmos, como acreditamos reencontrar alguém que teria voltado de uma vida anterior. A cada passo que eu dava nesse velho domínio, eu reconhecia um rosto familiar, uma emoção que era a minha, uma sensação de déjà vu... E de fato, a ternura triste que esse filme deveria me inspirar parece aquela que se experimenta na manhã seguinte a sonhos felizes demais: havia ali a imagem exata de um paraíso que não me conhecia mais. O que compunha essa imagem? Eu acho que ela melhorou as lembranças de minhas últimas férias - numa propriedade abandonada, ela também, às vésperas de uma adolescência já morta - com a ajuda dos quinze anos imaginários dos meus pais, do meu pai, sobretudo, que no lançamento do filme tinha a idade do jovem herói. As brincadeiras das crianças em torno do fogo, a família dançando uma velha quadrilha de antes da guerra, o garoto tentando beijar sua prima na hora de deixar a propriedade... Eu não desvendo totalmente qual dessas cenas me emocionou mais; só me resta um sentimento cego, de que um mundo inteiro subia à superfície e voltava para mim.

Eu adoraria evocar outras etapas: os clássicos do cinema francês que eu descobria na televisão, a predileção por esses pais que a Nouvelle Vague tinha humilhado ou por essas atrizes que tínhamos esquecido, a constituição, pouco a pouco, de uma comédia humana na qual eu só sabia encontrar nomes familiares, rostos reconfortantes, figuras comprovadas... Mas é como um jogo de espelhos que se multiplica ao infinito, e no qual eu só encontro o reflexo do meu olhar, a obsessão nunca apaziguada de surpreender uma outra realidade - indubitável porque esses seres na tela tinham verdadeiramente existido, maravilhosa porque a maior parte deles estava morta ou só se deslocava com longos anos de distância. Me parece que é isso que experimentamos quando sonhamos com parentes distantes ou mortos: a ideia de uma existência que se realiza na ausência, que entrega um segredo desconhecido da própria pessoa e que ela só saberia trair. Eu me lembro de uma em particular cuja presença me feria, por causa do nosso desacordo sobre quase tudo, por causa de sua fuga perpétua em direção aos outros e que me impedia de entender seu rosto... Um dia, eu parei diante de uma foto, em que estavam resumidas de uma maneira milagrosa todas as razões porque eu a amava: eu via ali um olhar sonhador que continuava fugindo de mim, e que, contudo, parecia me responder, me justificar. Eu olhava essa foto como se ela tivesse me restituído uma outra identidade que eu era o único a conhecer, um negativo poético que não parava de recusar o curso de sua vida. Eu queria roubá-la e renunciei, e eu terminei por aceitar o que é...

Mas ainda hoje, nós não podemos nos ver sem que eu projete essa imagem, sem que eu prefira essa imagem.

Nostalgie des images foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°16, inverno de 2001. Tradução: Miguel Haoni.

O dinheiro (Robert Bresson, 1983)




Visto por Vincent Dieutre

Ninguém dormiu; tomamos a ilha Saint-Louis para o "casting" de O dinheiro. Mas isso é tudo menos um casting. Cada um na sua vez, nós fomos chamados num pequeno cômodo misterioso. Mylène sozinha fazia a ligação com esse salão transformado em sala de espera onde se encontrava, amontoado e febril, todo o submundo do Palace e de Bains-Douches. Sobretudo os rapazes, rodados de longas brigas para se incrustar, a qualquer preço, nas festas mais privadas. A filmagem desse novo Bresson é desses eventos que não perderíamos por nada no mundo. É preciso estar lá, pelo menos tentar a sua sorte. Eu me pus no piano, para passar o tempo; talvez para chamar atenção; e não falha, Mylène me chama. É preciso dizer que um dos "modelos" escolhidos para os papéis principais é um amigo de infância e que o primeiro assistente me conhece bem. Veremos. "É você que tocava o piano? - Sim, senhor. - Bom... tire a foto, Eric... Você... fale um pouco, leia." Eu li como quem presta um exame. O mestre é afável, sorridente... a presença de Mylène me tranquiliza. "Muito bem, nós lhe contataremos." Ele já está muito idoso, sua cabeça balança ligeiramente, mas seu timbre de voz, seu porte gracioso representam , aos meus olhos cansados, toda a elegância do mundo; longe da familiaridade circunstanciada de um cinema que já se desfaz...

O "refeitório" é imenso. Todos vestidos de detentos, aqui estamos nós, prisioneiros da filmagem, do perfeccionismo paciente de Robert Bresson. O produtor suíço parece arrancar os cabelos... mas em silêncio, pois aqui tudo advém do sagrado. Quando o quadro está, enfim, preparado, depois de horas de negociação, aquele que toda a equipe continua a chamar de "mestre" nota, no fundo do fundo do plano, um par de meias escocesas de cores berrantes. Sem convicção, o diretor de fotografia emite um vago: "Mestre, está fora de campo, isso não vai ser visto." A resposta vem, incontestável: "Mas eu só vejo isso." Espera. Na quadragésima-segunda tomada da cena da concha, tal qual a passiva Mélisande, "eu não sei mais o que digo, eu não sei o que sei." Mas o mestre parece contente. Ele sabe. O produtor já partiu, desmoronado. Quanto a mim, eu tenho medo de não ser mais que essas poucas palavras, e esses poucos gestos refeitos interminavelmente. O assistente adivinhou que, de todas essas tomadas, o mestre ficará, certamente, com a terceira ou a quarta. Quase parece o silêncio, a calma. Amanhã filmaremos a cena da missa. O mestre está cansado. Quanto a mim, eu agora sei que farei cinema, depois.

L'argent (1983) compõe o dossiê "Treize films pour mémoire" e foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°13, primavera de 2000. Tradução: Miguel Haoni

As feridas do macho


Sobre Harvey Keitel

Por Philippe Ortoli

Sedutor devorado por uma paixão absoluta por Kate Winslet, Harvey Keitel, em Fogo sagrado!, atua sobre uma corda que ele jamais cessou de esticar: a de um homem que, fazendo do seu corpo o berço de uma dúvida permanente, termina por queimá-lo como uma forma de expiação.

Quando ele chega no aeroporto, com suas botas, sustentando seu passo rígido, P. J. Waters, especialista em desencantamento, parece um verdadeiro cowboy; quando, no final, com vestido vermelho, maquiagem e pés nus enlameados, ele rasteja em frente a Ruth (Kate Winslet), ele é apenas uma drag queen pateticamente apaixonada. Entre essas duas imagens, nós seguimos o itinerário de um corpo em direção à destruição de sua suposta solidez, o de Harvey Keitel: o ator retorna ao universo de Jane Campion depois de O Piano, para efetuar um novo jogo de chacina da figura do macho americano. Alguns acharão caricatural, multiplicando os signos exteriores do dilaceramento (choros, gritos, tripudiadas, cair por terra), mas a angústia transmitida por esse físico de impávidas aparências não é um simples exercício de estilo para os adeptos do exibicionismo: é a expressão de um mal-estar.

Esse mal-estar é primeiramente o de um tipo, o herói americano que fez da retidão postural e da firmeza de uma marcha um eloquente substituto do falo. Mas ver nesse despedaçamento sistemático um puro e simples ato masoquista em que se pode ler a (já antiga) crise de identidade do macho é singularmente redutor. A ferida encarnada por Keitel não é apenas assimilável como uma questão sexual. Claro que ele joga com um corpo de uma ambivalência reivindicada, de uma carga erótica evidente: frequentemente nu na tela, a valorização do seu busto (em O Piano ou em Vício Frenético) alia uma montanha peitoral extremamente desenhada a um ventre de generosa circularidade inclinando para quadris mais largos: essa mistura do ângulo e da curva determina um ser entre anima e animus, entre feminidade circular (ele ama dançar, se enroscar ou envolver) e virilidade cortante (ele pode matar, espancar ou despedaçar) que o consagra homem do entremeio.

Mas essa ambivalência não se limita a essa dimensão: de forma mais geral, o ator está no cruzamento das duas tipologias de atuação que distinguia Moullet em Política dos atores: o underplaying, ou uma atuação mais contida (da qual Gary Cooper e Clint Eastwood seriam os representantes mais ilustres), e o overplaying, uma superatuação frenética (Jack Nicholson compõe as melhores demonstrações), que ele intercala no seio das suas próprias criações. No primeiro contato, Keitel é frequentemente sóbrio: de Cães de aluguel à Caminhos perigosos, ele adora se apresentar como uma silhueta que evolui com grande confiança, implicando gestos comedidos e falas parcimoniosas, a própria fantasia do profissional hawksiano. Mas há sempre um momento da obra (mesmo longamente maturado como em Fogo sagrado!) em que ele romperá essa sobriedade, distenderá seus traços e confessará, nos movimentos mais extremos, sua ferida interior: são os soluços em Vício Frenético ou em Um olhar a cada dia, as explosões de desejo em O piano, as crises de violência em City on fire ou em Alice não mora mais aqui, as tendências sado-masô em A ordem é matar (surpreendente filme policial de Roberto Faenza, 1984). Essas idas e vindas incessantes entre esses dois registros acabam, por efeito, resultando numa reflexão sobre a economia expressiva do ator americano, entendida geralmente como um sintoma de sua legitimidade heroica, que se torna, em Keitel, a síndrome de um recalque. Essa última não é apenas a de um passado sombrio: ela condensa pulsões de morte, desejos sexuais e, mais em geral, uma infinitude de vertentes autodestrutivas.




Nessas composições que consagram essa emergência regozijante do reprimido, o sentimento de provocação predomina. Podemos efetuar um paralelo com Brando, que procura sempre dilacerar o clichê de papel crepom que O selvagem tinha estruturado à espreita, entre A caçada humana ou O último tango em Paris, dos sinais de uma mutilação metafórica. De fato, a dúvida transmitida pela atuação de Keitel, ator desestabilizante se for, é tipicamente cinematográfica: trata-se da dúvida de uma criatura que luta com um envelope exterior muito pesado para assumir e que busca, assim, colocá-lo em perigo custe o que custar. Eis seu verdadeiro calcanhar de Aquiles: Keitel cria personagens apenas para melhor proclamar o quanto eles sufocam. Ele perscruta, persegue, grita sua sede do absoluto na tela relativa na qual se exibe sua estatura. Ele é a oscilação permanente, o desequilíbrio-encarnado, sempre na busca de um lugar para se colocar, sempre na espera de uma decolagem: seu famoso olhar fixado no fora de campo parece ser um convite permanente a não se limitar ao cenário...

Paradoxalmente, esse corpo é muitas vezes o porta-voz de uma instituição (o exército em Os duelistas, a polícia em Vício Frenético ou o meio ítalo-americano em Caminhos perigosos), da qual ele encarna a autoridade, para logo fazê-la cair para o lado do incongruente, do desvio, da paixão. Se entrega então a esse rosto fechado no seu mutismo a complexidade de um combate sem piedade, esse que um corpo deve liderar para se liberar dos preconceitos que a ordem moral (e o grupo social que a emite) dispôs em torno dele. Essa temática prometeica está no cerne do ator, pois essas tentativas de restaurar a primazia do desejo sobre as exigências do dever abordam a própria questão da sua função. Efetivamente, para além do seu lado tangível, é a libertação que é buscada, a da máscara, e quando ela é concedida, ela só pode ser acompanhada por um sofrimento, pois não se quebra impunemente a lei da máscara: essas diversas escarificações com ares sacrificiais (a obsessão pelo fogo que acaricia em Caminhos perigosos, o prego cravado no lábio em Quem bate à minha porta, o consumo de drogas em Olhos de serpente e Vício frenético), são as provas inscritas na carne para aceitar que os transbordamentos pulsionais ou afetivos o façam alcançar a transcendência. A superfície física se contorce, urra sua dor, grita seu desejo, chora sua imperfeição, e, com ela, a ordem que ela representa se racha e deixa filtrar o ser humano, perdido, atordoado, procurando um lugar impossível.

Exteriorizar assim o pecado e sua redenção (servindo, nesse sentido, às obsessões de Scorsese e de Ferrara, sem dúvida os cineastas que mais contribuiram para gravar a imagem saint-sulpiciana do ator) é, claro, representativo do Actor's Studio, onde o ator foi aluno (como DeNiro, aliás), mas Keitel não é redutível a uma escola, por mais prestigiosa que ela seja. Sua busca permanente pela emoção (ou pela postura, ou pela cena) inédita fazem dele um ator à parte, sempre surpreendente, sempre fascinante: Fogo sagrado!, que o mostra travesti, sujo, e humilhado, confirma que essa tendência é uma vontade deliberada. Lembramos então de seu ar suave de cowboy no início de Alice não mora mais aqui de Scorsese, repentinamente pulverizado pela brutalidade com que ele esmagava uma porta de vidro para espancar sua esposa! Ou do contraste impressionante entre a retidão de sua silhueta de descrente e o fervor de seus abraços no Jesus-Willem Dafoe em A última tentação de Cristo! Keitel só se destaca na quebra do ritmo, na mudança de regime, no sinusoidal puro, e a atração perturbada que ele exerce depende dessa complexa alquimia: ser fundamentalmente desequilibrado, ele só impõe certezas para as abalar. Mas o ponto de impacto em direção ao qual tende esse físico, o além que ele perscruta, que consistência tem? Poderíamos dizer que é Vício Frenético que oferece a visão mais justa (nos dizeres de Scorsese, o ponto culminante de Keitel) através da figura do Cristo que vem oferecer a salvação ao policial maculado: a natureza desse olhar inquieto se revela. Ele procura um outro que possa ajudá-lo a encontrar o seu lugar, a se definir, a salvar o seu ser.

Esse olhar não saberia surgir da ficção: é por isso que é preciso retorcer essa última, desviar violentamente as regras dos gêneros nos quais ela se atola, não respeitando as cenas impostas, habitando-as com uma ironia ou com um distanciamento sempre perceptíveis, que subentendem a desilusão latente daquele que não quer mais participar desse mundo, que não quer mais arrastar seu arquétipo, mas, coagido e forçado, se esforça então para dinamitá-lo por dentro. Cães de aluguel, e toda a dicotomia entre o figurino preto do killer e as lágrimas que lhe assaltam, segue essa metáfora. Mas é igualmente o caso de Caminhos perigosos, de Thelma e Louise ou de Irmãos de sangue, nos quais se fissura o verniz protetor e onde o corpo, ao mesmo tempo orgulhoso do seu poder e desconcertado pelas suas potencialidades, procura no olho do espectador a resposta às suas perguntas... Mártir do reino da imagem, ele nos direciona uma súplica crucial: entre as restrições da máscara e os imperativos das pulsões, como se constituir? E onde é preciso ir para esquecer o peso desse pecado da individualização que nos condena a uma forma enquanto apenas sonhamos com o céu? Compreendemos então a ressonância dos encantamentos quase licantrópicos de suas criações: porque Deus está morto, é preciso ir procurá-lo no fundo do seu peito. Raramente o trabalho do ator se beneficiou de uma ilustração tão impressionante...

Les déchirures du mâle foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°13, primavera de 2000. Tradução: Letícia Weber Jarek e Miguel Haoni.

Taïtanic!




Sobre Titanic, de James Cameron

Por Camille Nevers

Carta aberta, 28 de abril de 1998

(“E o vencedor é”)

Agora se trata de um fenômeno, se é que ele já foi outra coisa além disto, um fenômeno. Uma sensação forte. Um grande sintoma, uma moda. Um entusiasmo de tal modo considerável... No fundo, o que queremos? O filme universal? – nós o temos, é fato, sigamos em paz.

Entretanto. Aqui, no pequeno aqui da Lettre - quer dizer, minúsculo em relação à unanimidade planetária, nós não amamos Titanic, não lhe teríamos dado importância e nem teríamos insistido, sabendo que a multidão amorosa é a primeira a não se importar com o que pensamos. (O triunfo paga o pato). Teríamos ouvido tudo sem retrucar. Se nós intervimos agora, é por força das circunstâncias, porque terminamos saturados; e aí, na realidade, não estamos sozinhos.

O triunfo de Titanic permanece um dado objetivo, numérico. Nesta medida precisa ele interdita formalmente que contestemos o filme, que o critiquemos, que ele sofra de contradições, o plebiscito total comprovando-o: “Ame o filme ou cale a boca”. (E James Cameron, desde então, pessoalmente, especificou estes termos aos desagradáveis do Los Angeles Times. Um homem irritadiço). Está em ordem, a lei do número e do contador. O realismo estatístico. A mídia retransmite, alimenta, compreensiva, demasiado alegre, em entrevistas de rua devidamente representativas – “Eu tenho quinze anos. Eu adoro. Eu o assisti sete vezes. Fui com meus amigos” – ou então informando por ela mesma: “Aí está, recorde histórico, A Grande Escapada foi vencida” – esse suspense que durou, se manteve por bons dois meses. E o elenco rivalizando por múltiplas notas positivas, ou seja, tanta publicidade gratuita, em benefício de cada um (isso produz os ingressos e isso produz a audiência). Desde o lançamento do filme, a imprensa de todo tipo foi unânime, laudatória, os críticos no céu, e uma ou duas exceções consagraram ao filme somente uma coluna. Para o resto, Cameron é grande. Como tudo isto é vendável, convinha dizê-lo duas vezes e não uma, depois mais, e retornar a isto na capa, para “fixar”, se obrigar a belas metáforas marítimas sutis, fazer dossiês completos, oferecer todas as espécies de cifras, analisar em consciência o sucesso gigantesco, ainda mais espantoso por ter reconciliado, meu deus, o público e a crítica – “somos espectadores como todo mundo!”. Sentimos passar uma grande sensação de amor sincero. E o filme é do autor.

Como aqui o espaço é mais propício, é chegada a hora de cuspir no prato em que se comeu – e com a mesma sinceridade. Mesmo as cifras não impedem o fato: entre todos os que viram Titanic, que colaboraram com o box-office pagando suas entradas, nem todos gostaram, e alguns ficaram até enfezados. Destes, no globo midiático, praticamente não se viu indício. Eles entram nas cifras do recorde, são somente um ponto – one point. Não se saberá seu número; as estatísticas são aproximativas.

A isso, a essa omissão fatídica, que recidive a cada sucesso, opomos uma visão menos “edificante” – que seja uma amostra expressamente escolhida, ad hoc. O que segue é o resultado de certos encontros e não aspira à objetividade, nem de longe; trata-se de depoimentos francos. Impressões cruzadas, aos trancos e barrancos, fora do protocolo de entrevista. As pessoas que falam anonimamente aqui às vezes são amigos, ou conhecidos, ou parentes, de cinefilia variável, de acordo com elas, e crítica. Esses depoimentos transcritos aparecem tendo por intenção contrariar um pouco o que já apareceu, os louvores únicos, mas também o modelo de entrevista na rua e o que já descrevemos, em suma, todas as coisas que ouvimos à exaustão, assim que Céline Dion se dignou a parar de cantar nos créditos finais do filme (e tudo mais).

P.S.: há também aqueles que não viram o filme e não têm vontade de vê-lo.

Nota bene: os dois últimos depoimentos relatados são à parte, transcritos de um filme de 1982, Quarto 666, de Wim Wenders, onde Godard, depois Spielberg, entre outros, tomam a palavra. Nesta ocasião, lhes pediram que dessem sua opinião sobre o futuro do (de seu) cinema.

Primeiro depoimento

(“Vivamos felizes esperando a morte”)

(...) A comunhão plena, todo mundo de acordo, é o que a gente vê daqui. E as pessoas que arregalam os olhos quando você diz que não gosta... Elas parecem completamente surpresas. É claro que com o rumor que corre... Depois, então, falamos sobre isso – um pouco. Não há muito que dizer. Ficamos parecendo esnobes com nossos argumentos frios e essa ausência de sentimentos. Porque Titanic funciona “no calor do momento” ele é, sobretudo, sentimental, e sólido. Quando alguém te diz, de uma vez por todas: “Pode dizer o que quiser, mas comigo funcionou” – bem, a discussão pode parar por aí. Seria preferível continuar: então diga, o que funcionou com você? – conte um pouco. Neste momento, poderíamos tocar o cerne das coisas, sem a chantagem do sentimento anterior, sim, direto ao cerne, e ver um pouco o que acontece ali, como o filme opera, ver como ele “funciona”. É um filme muito malicioso, contrariamente ao que se pensa.

(...) Esse sucesso não chega por acaso. Cameron é um fabricante habilidoso, ele conhece bem a manobra – e bem, eu não o vejo de forma alguma como sendo o capitão do navio, rigorosamente ridículo no filme, e que fracassa na manobra – não, sua manobra é antes a do chefe militar, sem escrúpulos, do tipo lunático, que sacrifica o grosso das tropas, que as envia para a morte certa na esperança de vencer, eis a manobra, e no final é a ele que destinam toda a glória, e as medalhas, e as estátuas, todas as honras. Claro, nada grave, é só cinema... Mas o plano que mesmo assim impressionou, e que volta constantemente quando se quer convencer sobre a beleza do filme, é o grande movimento de câmera que enquadra todos os mortos que boiam, a perder de vista sob a abóboda estrelada, esse grande campo de batalha líquido que parece ser belo. É melhor levar isso a sério, pois é o que está no cerne de Titanic. O coração do oceano, a pedra preciosa de pobre pretexto simbólico (em miniatura, e o grande seixo é o iceberg) – no coração do filme, lá está o grande mergulho nas profundezas, a morte cintilante, prometida desde o início, desde a partida do navio. É assim que funciona, e é o horror. Mas, pelo menos, em alguma medida assume-se o impulso siderante em direção ao vazio, em vez de procurar nos fazer acreditar, como eu li, em um elogio besta da vida, do amor ou, ainda mais característico, da sobrevivência (porque, afinal, os outros podem morrer).




(...) Titanic é desde sua origem uma máquina de morte, um enterro de primeira classe, por imersão nostálgica, e os grandes sentimentos, um filme mortuário em mar aberto, essas coisas fascinam. Isso me deixa realmente louco. Concedo que seja um conto de crueldade, como, por exemplo, A Pequena Sereia, mas filmado pela Disney – vemos que tecnicamente são análogos: os efeitos digitais em 3D, os “bonecos” virtuais (ah, aliás, o filme marca o desaparecimento próximo dos figurantes, que serão substituídos por uma nova profissão, a “figuração digital”); Titanic é o novo desenho animado. Infantil no mau sentido. Para todas as idades. (...) Acima de tudo, é a atração do nada. Por atração, no caso, quero dizer: atração pelo vazio e atração de feira; como essas enormes gangorras, algo nesse estilo, com as emoções fortes, as pessoas que gritam. E aí está. Titanic representa um mundo que vemos se engolir lentamente, em som e luz, artilharia pesada e, francamente, é o cinema pelo vazio, o filme que acolhe a aniquilação como único espetáculo “vivo”. Eu tinha ouvido Julien Husson relacionar isso à Imensidão Azul e ao O Piano, e é geralmente um clima aquático que agrada, porque te situa em um estado pré-natal ou pré-letal, e parece profundo. Eu também tinha lido teu pequeno texto na Lettre, sobre La Rivière, sobre esse clima pesado de “bombeiro” que nos rodeia (quanta água!). Ou Ondas do Destino: em uma outra escala, Titanic poderia se chamar Breaking the Waves. É que é preciso ver como esses realizadores tão diferentes são fascinados à sua maneira pelas tecnologias modernas e por um certo arcaísmo místico no mesmo movimento. (...) Há uma curiosa pureza a alcançar, ou a redescobrir, e na tela isso fornece imagens aquáticas, do verde-mar ao azul ultramarino, do puro formalismo ao puro virtual. Isto não me diz nada, pois são efeitos de superfície. Mas neste caso estou de acordo com aqueles que amam quando eles dizem: “É puro cinema”.

Quase nada acontece em Titanic, nada além do que se espera que aconteça. Há lugar para todo mundo. Tudo é muito programado, do começo ao fim, tudo vem a calhar, tudo encalha, é habilidoso, mortal, nós nos entediamos. De acordo com a história fielmente respeitada, há os muitos pobres que morreram e há os ricos que escaparam, então Di Caprio pode morrer já que ele é pobre, e é preciso que choremos. Imparável. E mesmo quando no final eles se reencontram, como no primeiro dia, jovens, belos, puros... Todos unidos na morte. “O happy end no além-mar”[1]. Como sou malicioso, imagino se no último plano fosse a Rose idosa quem reaparecesse no momento de sua morte... Aí teríamos uma surpresa – uma verdadeira catástrofe...

Segundo depoimento

(“Como nos velhos tempos...”)

A magia hollywoodiana redescoberta... Isso não nos serve para nada. Sob esse famoso pretexto nós nos ludibriamos com Titanic, e com qualquer outra falsificação; então é suficiente que haja o pôr do sol flamejante, com a mesma tonalidade dos sentimentos flamejantes, que seja como em Scope, que a época tenha acabado – e é sempre a “grande época”, a partir do momento em que há xarope, guardanapos e verniz o suficiente, dizemos que é “como a magia hollywoodiana”. Em nome de um retorno a uma pseudo-inocência, de antes da catástrofe (a magia-que-morreu). As cópias ruins tendem a falsificar os originais. Então saio de Titanic e volto rapidamente para casa e verifico que estou viajando, e que os grandes filmes hollywoodianos não têm nada a ver com isso. Até mesmo E O Vento Levou..., pelo qual não sou realmente apaixonado, mas que em diversos aspectos pode ser comparado a Titanic, conta uma história de amor claramente menos tola. Clark Gable é claramente mais ingênuo que DiCaprio, e os personagens secundários existem. E a magia hollywoodiana, então? O que é? A era de ouro nunca foi inocente. De mágica, existem apenas os efeitos especiais que reproduzem o mesmo de antes com as tecnologias mais recentes: as imagens virtuais do navio em vez das maquetes em miniatura, os céus e um mar virtuais em vez de telas pintadas e incrustações, fora isso é a mesma coisa, quer se diga trucagens ou efeitos especiais. Titanic só se aplica à reprodução cuidadosa de aparências falsas, de engodos, de efeitos suaves. É como as telas que Rose carrega consigo, essa vanguarda do passado agora certificada como “os grandes mestres”: que grande prova de gosto arriscado, este “retrospectivamente”... Titanic é o próprio falso, mas com o mesmo artifício. Enquanto os grandes filmes americanos, no cúmulo das aparências, explodiram o trompe-l'oeil, correram todos os riscos para fazê-lo mentir, desmascará-lo e fazer aparecer uma verdade ainda mais inverossímil, Cameron simula, quebra alguns pratos e se prende aos procedimentos preciosos, às aparências verossímeis. Ao fac-símile.

O que é, o que é? Um filme sobre um grande barco, um cruzeiro entre a Europa e os Estados Unidos, uma grande história de amor, mas ela está prometida a um marido rico, o herói é pintor nas horas vagas, eles não pertencem ao mesmo mundo, ainda que os dois não tenham um tostão, e seu amor vem pôr tudo em xeque... Chega a catástrofe, o filme oscila na direção do drama, prende-se a respiração, um dos amantes corre o risco de perder a vida... E, além disso, há uma bela canção melancólica. Eu revi uma vez mais Tarde Demais para Esquecer, de McCarey, um grandíssimo filme.




Terceiro depoimento

(“Em um filme como em cem...”)

Basta de Titanic. Depois de seu remake de La Totale (True Lies), vejam só, Cameron quis refazer O Atalante... Dizem que ele correu grandes riscos... O único risco verdadeiro foram as finanças que um filme tão caro poderia implicar, e é tudo. Em todo lugar nos venderam-no como “o filme mais caro da história do cinema”, isso funcionou, necessariamente, todo mundo quis ver “o filme mais caro da história do cinema”, como a coisa a não deixar de ver – e isso não falhou, pois rapidamente ele se tornou o filme mais sumoso da indústria do cinema. O produto certo no momento certo, como dizem os americanos (...) Eu quero sim, mas então que não me venham com historinhas... É vazio e é cretino, e só isso fisga muitas pessoas. Um filme catástrofe + uma história real (uma catástrofe de verdade verdadeira) + uma história de amor + os ricos e os pobres (sobretudo os ricos) + um filme de figurinos + efeitos especiais + um grande barco... O que o povo quer? Ele paga para ver. E aqui estamos todos, todos embarcados no mesmo barco e esperando pelo dilúvio. Quanto à sua eminência James Cameron (J.C. para os íntimos), o pequeno tirano megalomaníaco (aliás, será que ele viu A Grande Escapada? Ele podia fazer um remake), todo o cinema, o Cinema, é ele. Mesmo assim, deveríamos desejá-lo boa sorte... Recentemente, na televisão, houve uma pequena homenagem a Roger Corman, e Cameron, por ter começado junto a ele, declarou: “Com o orçamento de Titanic, Corman poderia ter feito uma centena de filmes... (Um silêncio). Well, who cares? (Tradução: O que eu tenho com isso? ou Pouco importa!). Titanic é tão rentável quanto cem filmes de Corman...”. Como se queria demonstrar.




Então ouvimos os entusiastas que se regozijam, que nos asseguram ingenuamente que um monte de gente que nunca vai ao cinema começará a ir dali em diante, graças a Titanic. De jeito nenhum. Titanic não cria nenhum espectador novo além dos seus, isso é claro. Uma vez que você viu Titanic, você não vai ver o Eastwood, você retorna para ver Titanic. E ao lado disso, diríamos que todo o cinema se acanhou. Isso é passageiro, não vai durar por anos – eu espero, enfim –, mas por enquanto não se trata realmente de cinema; trata-se do “Guinness Book” dos recordes, daqueles que veem um filme 80 vezes sem pensar em pular a cerca – e um filme que não dá vontade de pular a cerca não pode ser um bom filme. O único recorde que o filme não bateu foi o dos Óscares, pois a Academia premiou o grande objeto técnico, a grande obra, porém vazia, sem contemplar os atores, então o prêmio foi bem despachado. E Sean Connery, que entregou o Oscar a Cameron, com sua voz grossa de estentor britânico – “Taïtanic!” –, e Cameron urrando que ele é o rei do mundo; isso deve ter feito Sean Connery rir, ele que interpretou O Homem que Queria ser Rei. (...). A questão, então: será que, com as receitas, serão produzidos cem filmes? Isso eu pago para ver.

Quarto depoimento

(“Reader’s (In)digest”[2])

Saindo da sessão do filme na primeira semana, ele ainda não era o que se tornou. Era somente decepcionante. Bem. Tem o prólogo, o choque contra o iceberg que passa despercebido, e o momento em que ela está nas coxias com a água lá em cima, e em que a luz se apaga. Grosso modo, das 3h20, trinta minutos – se muito – são razoáveis. De resto, um retrogosto bizarro quanto ao que ele conta em seu conjunto. Isto é: o lado reaça do filme. Mas enfim, eu já havia perdido tempo suficiente assim. Foi depois que eu li os jornais. As críticas. Eu li tudo isso. Perseverando, acabei por ficar nervoso. No Libé, por exemplo, tivemos direito a tudo, começando por Gérard Lefort que se meteu a citar Proust; e depois ele nos diz que o filme não nos toma por idiotas, uma “massa confusa de idiotas...”. Eu sublinhei os trechos, tenho realmente que lê-los para você. Titanic fez com que se dissessem coisas que não eram possíveis, algumas besteiras, e certamente não por acaso. Está tudo no filme. E isso confirmou a impressão que eu tive na saída da sessão. Espere, escute... “O naufrágio, efetivamente, não tem nada de fatal: basta ficar em terra firme ou ser prudente. (...) Os finais de jogo sempre selecionam os melhores” - caímos no senso comum, ficamos sem ter o que dizer, e no juízo final Deus reconhecerá os seus, aqueles que merecem escapar, a prova: pela “seleção”... “Titanic é um filme politicamente engajado. Ele recoloca com uma vivacidade empolgante a questão da luta de classes. (...) A ‘classe’ é então inscrita ao mesmo tempo sobre os tickets de viagem (primeira ou terceira classe) e nos códigos vestimentários, linguísticos, culturais, através da boa ou má educação. Os dominantes dominam, os dominados fazem número. (...) É a bela ideia de Titanic: valorizar mais a filosofia dos indivíduos que aquela de seus grupos. Pelo naufrágio, tocamos em um limite. Mesmo o noivo malvado de Rose sofre. (...) Come-se bem no lado dos ricos, mas se dança melhor no lado dos pobres, e outros exemplos se encarregam de perturbar as categorias” – sim, isso é muito ousado como relação de classes, isso perturba todos os lugares-comuns, os ricos que comem melhor e os pobres que dançam melhor de estômago vazio... Os bem e os mal educados... Ele tem alguma noção do que escreve? E esse engajamento político em uma “luta de classes” que privilegia acima de tudo a primazia do indivíduo que salva sua pele em detrimento da massa, isso é que é classe, um verdadeiro filme subversivo... “O tema do filme – isso é flagrante – não é o naufrágio do famoso navio, mas o suicídio, no meio do Atlântico, de uma sociedade dividida em classes” – isso é flagrante, havia sido investigado, tudo é culpa da sociedade, e assim o tema que fez sucesso é o suidício, mais “filosófico” que um naufrágio vulgar... “Titanic é menos uma obra em primeira pessoa (...) do que sobre a primeira pessoa. (...) O suicídio é uma bela coisa em Titanic, sacrifício, marca de heroísmo e, sobretudo, meio mais seguro de escapar das listas de sobreviventes ou de mortos perdidos na multidão. (...) Enquanto entrega generosamente suas lembranças, Rose guarda suas reservas e seu segredo de fora-da-lei (encobrimento da joia), libertando-se de uma vez por todas do destino comum dos mortais” – pobres, pobres mortais perdidos na multidão... Aí, trata-se de completa confusão: impressionam-nos com a beleza altruísta do espírito de sacrifício, e depois da grande luta individual do “cada um por si”, e nos dizem que se trata da mesma coisa, e que é melhor um belo suicídio acima da peleja do que um afogamento de miséria entre os miseráveis... Depois do golpe da “luta de classes”, é o pompom ideológico. Querem que a escapatória instantânea se passe por luta radical! E eis que outro continua: “Em seu paciente trabalho de comutação das forças descendentes em forças ascendentes, o filme chega a fazer do suicídio um ato de resistência. (...) Melhor, o suicídio se torna uma maneira de assegurar a sobrevivência de outrem. (...) É talvez o mais belo plano do filme. Rose se desfaz do corpo inerte de Jack, agarrado à sua mão, como se descola uma pele morta. É preciso aprender a cortar o que está morto em si para que o que está vivo perdure. (...) Da mesma forma, há uma ave de rapina em Titanic: o personagem do larápio de restos. Mas ele se arrepende” – então a moral está salva, as forças de morte identificadas às forças da vida, como intercambiáveis, o suicídio pela sobrevivência, a resistência pelo suicídio. Viva a “sobre-vivência” e viva a morte. Mal podemos esperar para nos arrepender. Não havíamos entendido nada. E para nos dizer algo assim, era preciso um americano puro e verdadeiro, não um daqueles mestiços que fracassam em sua empreitada. Ademais, só resta comparar: “Muitos cineastas tentaram: Bertolucci com Novecento, Sergio Leone com Era uma Vez na América ou Michael Cimino com O Portal do Paraíso. Tantos filmes (...) que quebraram a cara com brio. O que eu quero dizer é que, se eles não encontraram, como Cameron, a matriz perdida, é talvez porque eles não eram americanos o suficiente. Era preciso ser essencialmente americano para ao mesmo tempo investir na máquina hollywoodiana, fazê-la cuspir todos seus tesouros em dólares e em meios técnicos e, paralelamente, explodir a máquina. Era preciso, para dizer a verdade, ser inocente”. A verdade foi dita. A matriz perdida reencontrada – isto é Proust. Eu leio esse tipo de coisas, eles se deixam enganar - eu pensei: isso está no filme, uma confusão impossível. Um filme que aborda de tudo um pouco e de tal modo nada, apenas para que haja dele para todo mundo. Para todos os níveis, o mínimo teórico garantido, e todas as derivas. Um pouco de primeira classe, um pouco de terceira classe, um pouco de psicologia de massas e, sobretudo, de heroísmo pessoal – claro, é melhor se distinguir nobremente ao se “suicidar livremente” quando um navio afunda (sic) do que ser obrigado estupidamente a morrer perdido na multidão. É mais digno e dá direito a um close-up. (...) Em compensação, se você faz parte de uma família árabe e não sabe ler um cartaz publicitário, você não tem nenhuma chance de escapar. Se você está sobre a ponte em pânico, e você proclama que pretende atravessar o Vale da Morte (é uma alegoria judia), DiCaprio te dá um empurrãozinho, ele te diz para calar a boca e ir em frente, e no plano seguinte o padre terá tempo para celebrar uma missa. Bem. Dois planozinhos de nada, tudo bem. Mas quando vemos o resto... tal como ele apareceu na imprensa. Todas essas genuflexões, incrível. (...) O que se vê então é que dentro do cúmulo da técnica há o cúmulo da mística reaça. Não como nos grandes cineastas reacionários que fizeram grandes filmes “de esquerda”. Aqui é definitivamente retrógrado. Não há “luta de classes” que se mantenha em pé. Titanic está claramente do lado das primeiras classes, isso salta aos olhos. A “massa de pobres”, efetivamente, interpreta as utilidades maltrapilhas, e depois os afogados. Todo o cuidado é concedido à reconstituição minuciosa, maníaca, do luxo de outrora, do passado. Cameron está totalmente imerso na nostalgia fascinada desse mundo em crinolina que ele vê naufragar, e de um cinema fastuoso como não se faz mais. Ele desencalha os destroços. Havia uma manchete: “Após ter explorado os destroços do ‘Titanic’, em 1992, Cameron chorou”.




(...) Podemos então nos livrar de Titanic dizendo que ele é nulo, tudo bem, mas ele não é nulo, é nauseabundo. Ele joga sobre um inconsciente coletivo inquietante – o inconsciente coletivo sempre é inquietante e estúpido. É bom para o medo, pois o faz frutificar. O mundo sonha em estar sobre o “Titanic” e se ver naufragar de corpo e alma. É a Grande Superstição. Ir ver Titanic, brincar de sentir medo, ver-se desaparecer nos limbos e mesmo assim ter a oportunidade de presenciar religiosamente, supersticiosamente, no temor de só Deus sabe o quê, o Grande Espetáculo. Não se trata realmente de um filme catástrofe, mas de um filme catastrofista, que nos anuncia, convocando o passado tão exemplar e tão profético, que por excesso de técnica as coisas vão acabar mal. Sob a proteção do Apocalipse em água benta, do odor de fim do milênio segundo a voga ocidental. É terrivelmente católico sob esse aspecto, e também lindamente niilista, o que não é necessariamente contraditório – a fascinação apocalíptica que acerta em cheio, e, abastecida, a tentação do grande nada. E então no final, para os sortudos, a América.

Quinto depoimento

(Por Jean-Luc Godard [3])

(...) “Os filmes preferem cada vez mais falar sobre outros filmes do que falar sobre uma realidade exterior ao cinema...” – Sim, é difícil filmar em externas, correm-se riscos, é preciso correr riscos... “como se a vida não pudesse mais fornecer histórias...” – realmente, desde que há histórias nós dizemos: sem histórias! Sempre quisemos uma única história que conhecêssemos de antemão, e o que nos tranquiliza não é a história de Alain Delon e de seu revólver, ou de Charles Bronson, ou algo desse tipo, mas o fato de que, por só haver uma história e conhecermos seu desfecho de antemão, somos tranquilizados quanto à nossa própria história. E eu acho que, como uma radiografia de uma doença ou de uma saúde, a imagem deve nos inquietar, nos tranquilizar, mas só depois de termos visto um pedaço de nossa própria história. (...) “Cada vez menos filmes são feitos...” – isso não é verdade, fazemos cada vez mais, enfim, existem cada vez mais... Os americanos são muito fortes nisso, eles fazem cada vez menos filmes, pois perceberam que era melhor fazer cada vez menos filmes. O sonho de Hollywood não é outro senão fazer um único filme... mas distribuído em todo lugar. Assim, os filmes mudam de título, as séries de televisão mudam de título, mas é sempre a mesma coisa. E o texto se tornou o mais importante, mesmo que para servir apenas de título ou de legenda, dessa forma as pessoas pensam que é diferente, como crianças... – por que as pessoas têm filhos? Existe uma atração pelas grandes superproduções, porque elas são produzidas menos, mas elas são distribuídas cada vez mais. “Os filmes menores estão em vias de desaparecer” – realmente: todo o cinema nasceu dos filmes menores. Mas também as nações menores, sejam elas ricas ou pobres, desaparecem. O que é menor é justamente... (Um grande silêncio).

Sexto depoimento

(Por Steven Spielberg)




Eu sou um dos últimos otimistas quanto ao futuro do cinema em Hollywood. Eu penso que todos meus colegas que amam o cinema, e não conhecem outra coisa... – se o fim do mundo chegasse, não saberíamos nem mesmo cavar um buraco para nos abrigar. Nós só sabemos fazer filmes. É por isso que só posso ser otimista quanto ao desenvolvimento de nosso cinema, mas espero que ele não aconteça à custa de outros filmes que seriam esmagados pela pressão econômica. Hoje falta dinheiro. Estamos em 1982. O dólar está desvalorizado. Em 1974, quando eu filmei Tubarão, e ultrapassei o plano de filmagem em 100 dias – em vez de 55, foram 155 –, o orçamento subiu para 8 milhões. Ele dobrou. Hoje, por causa do dólar, do franco, do marco, do iene, e não sei o que mais, e por causa da inflação de custos na indústria do cinema, hoje esse filme custaria provavelmente 27 milhões de dólares, se o filmássemos durante 155 dias, com toda a equipe hospedada e alimentada, além de custos adicionais. É por isso que o meu medo é que um filme como E.T., que custou 10,3 milhões de dólares – o mais barato que eu realizei nesses últimos anos –, que mesmo um filme como E.T. custe 18 milhões em cinco anos. E, no entanto, o filme se passa em uma casa, com crianças, um jardim, uma cena na floresta, cenários muito limitados. Não podemos culpar ninguém, nem os sindicatos por terem inflado os orçamentos, com o aumento anual de 15% para todo mundo em Hollywood, nem o governo, nem o dólar que desvaloriza. E como não há ninguém para culpar pelos problemas econômicos (the state of the economic art), é preciso trabalhar com o que temos. Fazer os melhores filmes possíveis. Se for preciso fazer concessões para rodar um filme que deveria custar 15 milhões de dólares, e filmá-lo com 3 ou 4 milhões, nós faremos. Nós somos prisioneiros de nosso tempo, e nossa geração é provavelmente a única a poder romper com essa... Não sei como chamá-la. Parece que em Hollywood – e não sou culpado disso, só tive a sorte de fazer filmes que fizeram sucesso –, parece que todo o mundo, nos grandes estúdios, os decisórios, todos querem bater o pênalti decisivo na prorrogação da final do campeonato mundial, quando o placar está empatado. Everybody wants to be a hero. Eles querem chegar em Hollywood em cima da hora, desenterrar uma merda qualquer da prateleira e fazer dela uma galinha dos ovos de ouro, um gol de último minuto que valeria 100 milhões de dólares... Parece-me que os dirigentes dos estúdios – não todos, mas muitos deles – pensam assim: “Se um filme não tem chance alguma de chegar às semifinais, não temos realmente vontade de fazer esse filme”. Aí está o perigo, não nos cineastas, nos produtores ou nos roteiristas, mas naqueles que controlam o dinheiro e que dizem em linhas gerais: “Quero recuperar meu dinheiro e quero que a quantia seja multiplicada por dez. Não estou realmente a fim de ver um filme sobre sua própria vida, sobre seu avô, como foram seus anos de escola, como foi se masturbar pela primeira vez, aos treze anos ou sei lá. Quero um filme que agrade a todo mundo”. Em outras palavras, Hollywood quer um filme ideal. Com uma coisa para cada um. Mas, claro, isso é impossível...

[1] NdT: Jogo com as expressões homofônicas “l’eau-delà” e “au-delà” (além, além da vida).

[2] A propósito de trechos do Libération de 7 e de 27 de janeiro de 1998 e dos Cahiers du Cinéma n. 520 e 522.

[3] As frases em itálico entre aspas, lidas em voz alta por Godard, provém de um texto que lhe foi entregue para o filme de Wenders e ao qual, descobrindo-o sobre uma folha de papel, ele reage conforme a leitura.

Taïtanic ! foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°6, verão de 1998. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.