O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Poética e política



Por Sylvie Pierre 


Os Fuzis é antes de tudo um filme político cuja lição não poderíamos evitar. 

Face a um mal-estar social que chega ao escândalo — desemprego generalizado e fome devido a seca — o governo toma abertamente medidas (o envio de um destacamento de soldados armados), para proteger os interesses do capital contra aqueles da população. A necessidade de uma revolta é evidente. Mas como encontrar mesmo o embrião de uma tomada de consciência política em um povo obstinadamente resignado à só esperar de Deus a sua salvação? Os movimentos de revolta individual não tem nenhuma chance de mover a massa da população. O de Gaúcho, que não está nem relacionado a uma linha de conduta pessoal coerente, só constitui uma desordem prontamente assimilada, uma efusão de sangue inútil, que se encontrará irrisoriamente recuperada por uma sub-religiosidade popular: o imaginário revolucionário (as balas-relíquias). O único elemento de esperança, no nível político, reside na cena final: essa transgressão espontânea, por uma população inteira, de um tabu religioso, adquire uma significação exemplarmente revolucionária. Resta saber se a prioridade evidente da urgência econômica (a fome) sobre o progresso do espirito racional (o tabu vencido) nas conotações do gesto não enfraquece parcialmente, nesse sentido, a sua validade. Símbolo revolucionário, a morte do boi-deus talvez não seja, afinal, um ato revolucionário. Otimista ou cética, a conclusão não é claramente, nem confortavelmente formulada. Da sombra de onde surge às vezes o sentido, essa escuridão deve fazer compreender que o filme de Guerra, para ser político, não é por isso didático. São didáticos os filmes cujos meios poéticos são postos, sistematicamente, a serviço de uma lição, de algo a dizer. Sua retórica obedece a processos essencialmente transitivos: nós mostramos que, nós provamos que. Eles escolhem uma destinação para si, em direção à qual, é preciso escolher os caminhos mais curtos, correndo o risco de inventá-los. 

O filme de Guerra (e talvez com ele todo o bom cinema) diz respeito a um princípio totalmente diferente, cinema intransitivo que diz ele próprio em vez de aplicar seu verbo a um discurso exterior a ele. O conteúdo político de Fuzis — que comporta ao mesmo tempo uma reflexão lúcida e um partis pris sem equívoco (do lado “desses homens que recusam considerar Deus como defensor”) — não é o propósito do filme, mas somente sua situação. 

Se ela não recruta as imposições de uma defesa, essa situação deixa no entanto sua marca viva, sob a forma de estigmas, de arranhões. Esses da violência que a voz do Beato, gritante e como que sulcada por ser constantemente forçada, dá o tom: o insustentável, o excesso. Essa voz que escandalosamente convida à resignação e ao arrependimento de homens já prostrados de paciência, de miséria, assume paradoxalmente — pela sua qualidade puramente sonora — o papel de um protesto, de um recitativo indignado. 

Igualmente insustentáveis, mas da mesma maneira quase musical, não demonstrativa, todas as cenas gritadas, proferidas violentamente, ofegantes, sanguinolentas, loucas, onde a violência torna-se abstrata pela própria insistência do olhar que a desvela. Particularmente significativa nesse sentido, a cena entre Luisa e Mario, que se torna rapidamente o esquema, totalmente irrealista, não do estupro, mas da pura violência amorosa: evasão, nervosismo, temor misturado ao desejo na moça; no homem, rigidez e obstinação, o processo cego da agressão. O acompanhamento sonoro da cena (um cântico — o som muito forte) que poderíamos interpretar como alusão superficialmente simbólica às agressões eróticas, é somente o símbolo de seu valor: um momento de intensidade puramente musical. Nada de menos gratuito então que os planos que se sucedem, completamente abstratos: em contra-plongée, um travelling desenfreado sobre as saliências do telhado. 

Longe de ter a virtude liberatória de rancores descarregados, uma violência desse tipo é herdada de uma afeição verdadeira (talvez como a confusão em Godard); uma espécie de dano, do qual o filme não se liberta, mas que ele assume com grandeza, integrado, sem pornografia de relevo, à escritura. Hemorragia interna, apesar da evidência do sangue. A calma soberana da visão não sofre nenhuma perturbação. Correspondendo a serenidade política de um ponto de vista primeiramente analítico (os soldados, Gaúcho, os camponeses, o proprietário — compreendemos antes de julgar — o todo antes das partes), a escrita sistematicamente adotada é essa da atenção obstinada: longas frases sem elipses, por grandes pans de uma duração distendida até integrar os tempos totalmente mortos. O cinema permite que à custa dessa paciência nasçam verdades (menos ingenuamente assentadas que certas considerações sobre o absurdo em relação ao sol nos olhos). Guerra escolheu a duração pela sua virtude maiêutica: parteira de evidências inerentes à sucessão exata dos fatos. Sem ser ela mesma uma elegância de estilo, essa duração conduz naturalmente — na medida em que Guerra evita, na maioria das vezes, contrariar a continuidade por efeitos de montagem — uma busca evidente em um outro nível de intervenção criadora. Aqui, o das filmagens: ângulos, enquadramentos, movimentos tão perdidamente preparados que um tal grau de elegância só pode fazer renascer um dos maiores mal-entendidos da crítica: só ver, devido a preguiça, um estetismo condenável no próprio prazer, aqui evidente, de filmar. Por que, frente a uma criança morta de fome, o cinema deveria apenas passar envergonhado, crispado de luto? 


Poétique et politique foi publicado originalmente na revista Cahiers du cinéma, n° 190, maio de 1967. Tradução: Letícia Weber Jarek. 

Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída – Ulrich Edel



Por Serge Daney 


A droga mata, a sociologia também

Um clichê, não é nem verdadeiro nem falso, é uma imagem que não se move. Que não move mais ninguém. Que nos torna preguiçosos. Sobre a droga, os clichês não faltam. Todos eles se encontram em Eu, Christiane F., drogada, prostituída, filmado nesse estilo lúgubre e superficial do novo “novo” cinema alemão. O título faz temer (ou esperar) um filme pornográfico, mas parece que ele não é nada disso: nós assistimos a engrenagem crua e sem artifícios de uma decadência. Nada nos surpreenderá verdadeiramente, mas tudo nos sobrecarregará: a sordidez dos detalhes, as seringas que lavamos nas descargas dos WC, o asfalto e os grandes conjuntos, os rostos pálidos e a tristeza sem fundo das crianças perdidas nas calçadas de Berlim, entre a Sound, a “maior discoteca da Europa”, e a estação Am Zoo. 

Nos dizem (toda a publicidade é feita em torno disso) que Christiane F. realmente existiu, que ela existe, que ela saiu dessa, que ela falou durante horas frente aos gravadores de dois jornalistas, que um best-seller resultou disso (em 78), do qual os direitos de adaptação para o cinema foram rapidamente adquiridos (em 79), precedendo à filmagem realizada por um certo Ulrich Edel (em 80), e o lançamento parisiense do filme (no verão de 81). Mas, uma vez o filme terminado (nessa improvável imagem de recuperação), nós nos dizemos: pra quê? Pra quê essa garantia do real, essa fatia da verdadeira vida, de que serve a verdadeira Christiane F.? Bastava colocar no computador toda a literatura sobre esse tema, das confissões dos antigos viciados aos testemunhos dos dealers, passando pelas fichas policiais e pelos relatórios médicos, para obter Christiane F., a anódina menina de treze anos, o retrato-robô de uma criança decaída, a amostra-sociológica que necessitávamos para ilustrar o roteiro-modelo, o roteiro-robô do filme. Que um cineasta faça um trabalho de pesquisa muito avançado sobre um tema, é uma coisa (isso se fazia até em Hollywood), que ele se sirva dos resultados dessa pesquisa para se proteger, é outra coisa. Ao menos que o seu objetivo seja desarmar o espectador, de culpabilizá-lo ainda mais, de impedi-lo de criticar o filme. É preciso muita coragem para sair do filme dizendo que ele é lúgubre e superficial, atraente e confortável. Por sua vez, é se expor para ser criticado: só um drogado, um perverso, um esteta pode recusar andar nessa “chantagem do vivido”. 

E, contudo, o que vemos em Eu, Christiane F.? Falsas picadas em primeiro plano, rostos desolados filmados de muito perto, o espetáculo penoso de adolescentes fingindo para a câmera a trip, a abstinência, a prostituição, a morte. E o que é que nos dizem? Coisas verdadeiras, tristes, irrefreáveis, clichês precisamente: que se drogam pelo conformismo (ou pior, por uma desilusão amorosa), que a engrenagem é terrível, que não se consegue sair dela: o baseado leva à dose como o soft ao hard, a dose leva à prostituição que leva novamente à dose, até a overdose final. Essa engrenagem tem causas vagas, mas conhecidas: os pais são indiferentes, as famílias desunidas, um amante vive na casa da mãe, as cidades são inabitáveis, o sexo está em todos os lugares, falta o amor verdadeiro. Tudo isso deve ser verdade. Mas uma coisa verdadeira, quando ela encontra uma amostra sociológica, começa a soar falsa. Porque há também a verdade do cinema, do olhar do cineasta. E uma constatação, mesmo que seja implacável (e essa o é), não é necessariamente a verdade. Senão, seria preciso renunciar à crítica de cinema e trazer tudo abaixo da rubrica “Sociedade”. 

Os drogados não têm sorte. Na vida, eles penam (“Não há drogados felizes” lembra o Dr. Olivenstein depois de ter visto o filme). No cinema, tampouco as coisas são melhores para eles. O drogado — sobretudo a criança que se droga — não é um personagem, é um caso. Não nos interessamos por um caso, nós nos debruçamos sobre ele. Nós nos debruçamos cada vez mais de maneira que tenhamos certeza que não iremos esbarrá-lo. Um cineasta, quando ele começa a filmar um drogado (ou qualquer outro marginal) se transforma em assistente social, em médico ou em policial compreensivo, em um cliente reprimido, jornalista perturbado, em psicólogo: nunca um cineasta. Erro. Demissão. Um “personagem” de drogado, isso não existe no cinema: é proibido à ficção. Só conta o caso, a vítima estática, o problema de civilização. A água do banho conta mais que o bebê. Eis porque um filme como Num ano de treze luas de Fassbinder, outra história de marginais muito infelizes, ou mesmo, em Neige, em que o personagem do travesti carece de algo, nos tocam e nos ensinam muito mais que a pequena Christiane F. A verdadeira Christiane F. foi vítima da droga, a falsa (a atriz se chama Natja Brunckhorst) foi vítima do olhar sociológico. 

Há dois tipos de filmes: aquelas que implicam o espectador (são os melhores) e aqueles que somente o concernem. Esses dois tipos de filmes não têm nada a ver um com o outro. No primeiro caso, o espectador está implicado como indivíduo, como “sujeito”, na sua solidão perturbadora de cliente ingênuo. Ele está implicado pelo que não se deve ter medo de chamar a arte do cineasta: o seu significar, o seu savoir-faire, sua moral. No segundo caso, o espectador está concernido como cidadão, pertencendo a uma comunidade “normal” e que vota. O que fazer perante a droga? Se eu sou um pouco preguiçoso, eu reclamo mais verbas para mais centros de desintoxicação, se eu pertenço ao PCF, eu vou denunciar um pequeno dealer árabe da periferia parisiense (mas, isso foi antes de Mitterrand!), se eu tenho uma bela alma e um coração sensível, eu estou arrasado perante tanta falta de amor. Mas é muito tarde. O amor era preciso antes, antes que a engrenagem começasse a funcionar. O amor acompanha a ficção: nós amamos um personagem, não um caso. 

Eu, Christiane F., drogada, prostituída só tem o nome de um filme. Trata-se de outra coisa: de uma simulação audiovisual que, para ser efetivamente eficaz, deveria passar, numa tarde de grande audiência, na televisão, antes de um debate aonde especialistas viriam gravemente nos fazer esquecer que, durante duas horas, nós fomos voyeurs e nada mais. Então, trata-se de fato de um filme pornô. 

24 de julho de 1981 


Retirado do livro Ciné journal – Volume I 1981-1982, p. 32-35. Tradução: Letícia Weber Jarek.  

Rossellini documentarista?

Beaubourg, centre d'art et de culture Georges Pompidou, 1977
         
Por Adriano Aprà

Poder-se-ia dizer que Rossellini nunca foi, ou só o foi ocasionalmente, documentarista. Pode-se dizer de modo igualmente legítimo que sempre o foi. É preciso se entender com os termos.
Seus primeiros curtas-metragens são filmes sobre animais, que não se podem dizer “films animaliers” (documentários sobre a vida animal). São fábulas – alla Esopo ou La Fontaine – onde os casos que se desenrolam debaixo d’água (Fantasia sottomarina), à margem d’água (Il ruscello di Ripasottile) ou em terra (La vispa Teresa, Il Tacchino prepotente) não são senão metáforas dos conflitos “eternos” que dizem respeito aos seres humanos, e que logo depois Rossellini colocará em cena como conflitos circunstanciados pelos acontecimentos bélicos contemporâneos: La Nave Bianca, Un Pilota Ritorna, L’uomo della Croce. Em outras palavras, Rossellini parte de baixo, da origem aquática da vida, para subir gradualmente à superfície e irradiar sua temática moral na água de La Nave Bianca (a marinha), no céu de Un Pilota Ritorna (a aviação) e na terra de L’Uomo della Croce (o exército). Neste último filme também assoma a projeção dos conflitos humanos numa dimensão espiritual mais ampla que as circunstâncias terrenas (a “sagrada família” e a “gruta” de todas as cenas noturnas na izba).
Os animais continuarão a ter papel importante no cinema de Rossellini: ter com estes uma boa relação (ou má) anuncia também boas (ou más) relações com outros seres humanos e com o mundo em volta: veja-se em particular Il Miracolo, Stromboli, Francisco Arauto de Deus, India Matri Bhumi. [1]
Se nos curtas-metragens a ideia de realismo é ausente, onde pelo contrário não se desdenham os “truques”, nos filmes de guerra os elementos que a crítica pôde definir “realistas” derivam também da vontade de Rossellini em documentar-se. Sim, ele o fez nos limites que pôde, dadas as circunstâncias e sua parcial maturidade crítico-histórica. Mas que sua tensão ao realismo passasse através de uma pulsão por documentar, se não propriamente pelo documentário, o podemos perceber nas “narrações débeis” dos dois primeiros filmes (mais articulado narrativamente resulta L’Uomo della Croce, cuja tensão no apólogo antecipa, por exemplo, a “fábula pedagógica” que Europa 51 quer ser). Não por acaso, de resto, grande parte da crítica de então usou, para definir esses filmes tão estranhos ao panorama nacional, a fórmula de “documentário romanceado”, retomada depois também para Roma Cidade Aberta.
Outro sinal da “tensão ao documentário” é a inserção de material de arquivo em La Nave Bianca e Un Pilota Ritorna. No primeiro, sobretudo, é notável a reconstrução “a partir de baixo” – isto é, do ponto de vista dos marinheiros fechados no ventre do navio como “dentro de tantas latas de sardinha” [2] – da batalha de Punta Stilo, a primeira batalha naval combatida pelos italianos na Segunda guerra mundial. O material de arquivo vem neste caso do documentário La Battaglia dello Jonio, rodado pelo Centro Cinematografico del Ministero della Marina, sob supervisão anônima de Francesco de Robertis (supervisor também de La Nave Bianca), durante o combate entre navios italianos e ingleses ao largo de Punta Stilo, na Calábria, entre os dias 8 e 9 de julho de 1940. A valorizar o caráter documentário que vem a assumir esta batalha reconstituída pela ficção está, por exemplo, o fato que De Robertis, anos depois, em Uomini Ombra (1954), um filme bélico de pura ficção, se serve de algumas tomadas de La Nave Bianca (e de La Battaglia dello Jonio), projetadas sobre uma tela como se fossem de arquivo, no momento em que um oficial evoca a batalha de Punta Stilo.

Em Paisà Rossellini retorna a este emprego das imagens de arquivo, desta vez para entremear os vários episódios entre si, com exceção, porém, do último. Estas imagens de arquivo, acompanhadas de uma voz over, de cinejornais, não servem somente de liaison narrativa entre os vários episódios. Elas adquirem um valor estilístico não diverso daquele que possuíam La Nave Bianca e Un Pilota Ritorna: atenuam a diferença entre documentário e ficção, realizam aquilo que podemos definir como ficção documentada, tanto é verdade que o material de arquivo é excluído da passagem do quinto ao sexto episódio, como se a ficção já houvesse absorvido definitivamente os traços estilísticos do documentário.
Em sua atividade posterior Rossellini alternará filmes de “pura ficção”, “roteirizados” e, porém, baseados sobre uma documentação pormenorizada, pela qual a ficção parece assumir os traços do documentário – é o caso de Roma Cidade Aberta; e já diferentes, mais puramente ficcionais, serão Una Voce Umana, Europa 51 e La Paura, para não falar de Giovanna d’Arco al Rogo – e filmes “orais”, estilisticamente mais grosseiros, ao menos aparentemente, como Alemanha Ano Zero, O Milagre, Stromboli, (onde torna o emprego de imagens de arquivo na erupção do vulcão [3]) e Francisco, Arauto de Deus.
No meio situa-se um filme de certa forma anômalo como Viagem à Itália. Aqui é a distância analítica, com a qual Rossellini radiografa as peripécias do casal inglês postos em confronto ao calor meridional, a consentir falar de filme “etnográfico” (o confronto - desencontro entre duas culturas) ou, como fez Jacques Rivette, de filme ensaístico. [4]
Cinema ensaístico, cinema didático, cinema etnográfico. India Matri Bhumi assinala uma reviravolta radical na obra de Rossellini, mesmo se retrospectivamente possamos discernir seus traços nos filmes precedentes. “É um filme que muito amo porque [...] foi nele que procurei realizar uma tentativa de renovação no campo do conhecimento, da informação: uma informação que não seja estritamente científica ou estatística, mas que seja também uma espécie de documentação dos sentimentos e do modo de se comportar dos homens. É também, se se quiser, de certa forma, um filme etnográfico”. [5]
India Matri Bhumi, que é um filme de ficção em quatro episódios entremeados de material documentário rodado por Rossellini (e, presumivelmente, também de imagens de arquivo de operários trabalhando, no episódio da represa de Hirakud), deve ser visto ao par de J’ai fait un beau Voyage/ L’India vista da Rossellini, a série documentária que constitui o ponto de chegada de parte das “inspeções” filmadas com (ou feitas se fazer por) Aldo Tonti antes das gravações do filme, e por outro lado da ideia de aproveitar a viagem para realizar também uma série de curtas-metragens. Se India Matri Bhumi é um filme de ficção com aparência de documentário, não diferentemente de Paisà, do qual retoma a escansão episódica, J’ai fait un bon Voyage (melhor que sua contraparte italiana L’India vista da Rossellini, na qual o jornalista que conversa com Rossellini parece mais “surdo” e bronco que seu colega francês) é um experimento muito original, espécie para a época de jornalismo ensaístico, com um Rossellini que comenta de modo muito descontraído, e dando a impressão de improvisar, aquilo que se passa na tela: quase uma conferência “multimídia” (que Rossellini não improvise no sentido próprio do termo mas – como quando realiza seus filmes – se baseie senão num roteiro com ideias muito claras, é confirmado pelo fato de que, seja na versão francesa, seja na italiana, diz praticamente as mesmas coisas, com as mesmas palavras).
A oposição entre ficção e documentário, escrita e oralidade, prosseguirá de maneira ainda mais declarada com Il Generale Della Rovere e Era notte a Roma, que são releituras “à distância”, resfriadas, do calor “documentário” que caracterizava filmes do imediato pós-guerra como Roma Cidade Aberta e Paisà, aos quais evidentemente remetem. No mesmo período, a Il Generale della Rovere e a Era notte a Roma se opõem não só India Matri Bhumi mas também Viva L’Italia, uma espécie de Paisà do risorgimento, e o primeiro filme a explicitar a conversão de Rossellini a um cinema “enciclopédico histórico”, depois da tentativa indiana de cinema “enciclopédico geográfico”. [6]
Viva L’Italia nos introduz num outro aspecto do Rossellini documentarista, ou melhor, “documentado”, que está na base de todo o seu cinema didático, de A Idade do Ferro a O Messias (isto é, a parte mais consistente, ao menos em termos quantitativos de minutagem, de sua atividade, e de todo modo aquela a qual era notoriamente mais apegado, desinteressado, como se proclamava, daquela anterior, pela qual era e permanece mais apreciado) [7]. Nos filmes didáticos Rossellini muda radicalmente o próprio método de trabalho. Seus roteiros que eram, no mínimo, elusivos quanto ao filme realizado são agora bastante precisos e respeitados, precedidos de um longo trabalho de documentação, quase como se ele quisesse limitar-se a obter, com os filmes, um documento em forma de ficção baseado o mais possível em fontes autênticas (mas, a se indagar, o quanto de subjetivo, seja no nível dos fatos pré-escolhidos quanto àquele do estilo, penetra nestes projetos declaradamente “objetivos”). Este modo de proceder transforma aquelas fontes que são, ainda assim, ficção, em ensaios em forma de ficção. Em certos aspectos, mesmo que as escolhas estilísticas sejam muito diferentes entre si, pode-se aproximar o modo de proceder de Rossellini, que se distancia das formas tradicionais de narração (mesmo suas próprias), àquele quase contemporâneo de Chris Marker, Jean-Luc Godard e Alexander Kluge: o eclipse do cinema como estória e o surgimento do cinema como ensaio.
Um traço de documentarismo mais explícito nos filmes didáticos de Rossellini encontramos no momento em que sua enciclopédia tem que se ver com épocas mais próximas aos nossos dias: em A Idade do Ferro, o quinto e último episódio é quase que inteiramente baseado em material de arquivo acompanhado de voz over; A Luta do homem pela Sobrevivência procede do mesmo modo nos episódios dez, onze e doze (intitulados Esta nossa grandiosa civilização da pressa, Uma arte nova num mundo de máquinas e Não obstante tudo, ainda além). Naturalmente o material de arquivo, embora fornecendo uma base objetiva ao discurso ensaístico de Rossellini, vem ligado, seja na seleção, seja na montagem, ao tanto de subjetivo que ele não pode passar sem nos introduzir. [8]
Neste período registra-se ainda seu projeto sobre A Ciência (c. 1970), para o qual não só rodou algumas “provas” (tomadas ao microscópio, sobretudo), como também uma série de entrevistas com cientistas da Rice University de Houston, Texas, que depois utilizou no documentário – aliás jamais transmitido mas que sobrevive nos arquivos da RAI – intitulado, precisamente, Rice University. [9]
Explicitamente documentário é então Idea di un’Isola, filme realizado sob comissão de maneira bastante tradicional (a onipresente voz over) mas que decalca os interesses didáticos de Rossellini com sua evocação, seja sobre os aspectos contemporâneos, seja sobre os históricos, da Sicília.
A Entrevista com Salvador Allende (conhecida também como La Forza e la Ragione), um documento de excepcional importância de testemunho, mesmo se rodado como qualquer especial televisivo, devia fazer parte de um projeto mais vasto de entrevistas com os líderes da Terra, entre os quais Mao Tsé-Tung, projeto do qual permanece o único realizado: primeira peça de uma “enciclopédia política”?
Até aqui devemos dizer que, com exceção de J’ai fait un beau Voyage, a atividade propriamente documentária de Rossellini é, seja como empenho ou como resultado, no todo, “secundária”, enquanto que, como foi visto, seu “ponto de vista documentado”, tanto no período didático quanto no precedente, aparece central. Podemos contudo afirmar que, à conclusão de sua atividade, reacende-se um clarão propriamente documentário nas suas duas ultimíssimas obras: Concerto per Michelangelo e Le Centre Georges Pompidou. Ambos os filmes são reflexões sobre duas “máquinas artísticas”, espaços institucionais de exibição de arte. O primeiro, comissionado pela RAI e pelo Vaticano para o Sábado santo de páscoa, é interessante, para além do autorretrato talvez involuntário que se torna para ele Michelangelo, como experimento: o único no qual Rossellini entrelaça cinema e vídeo, ou melhor, tomada eletrônica direta; o segundo é, por sua vez, uma tentativa exemplar numa direção nova: aquela da “constatação” documentarística. Envolta dos esparsos sons dos visitantes, na ausência de voz over, a câmera se move entre o “continente” – a arquitetura ultramoderna de Renzo Piano e outros – e o “conteúdo” – as obras de arte expostas – com uma curiosidade descritiva que não esconde um velado ceticismo de fundo (estamos bem longe de qualquer tipo de “celebração”). De um lado Rossellini reflete sobre a relação clássica entre arte e Igreja, de outro sobre aquele moderno entre arte e instituição laica. Em ambos os casos identifica a arte como processo de produção, além ou antes de seus resultados expressivos.
Como não ver nestas obras involuntariamente últimas uma reflexão de Rossellini sobre a própria arte? Emaranhado de política, de economia, de técnica, de documentário e de ficção em cujos limites, mas influenciado também pelos estímulos de tais limites, ele se exprime.
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[1] Remeto a esse respeito a um ensaio meu, Rossellini et les animaux de “Fantaisie sous-marine” à “India”, no precioso Nathalie Bourgeois, Bernard Bénoliel, com Alain Bergala, India. Rossellini et les animaux, Cinémathèque Française, Paris, 1997.
[2] Francesco Savio, Cinecittà anni Trenta. Parlano 116 protagonisti del secondo cinema italiano (1930-1943), organizado por Tullio Kezich, vol.III (NAZ-ZAV), Bulzoni, Roma, 1979, p.963 (entrevista radiofônica em 22 de setembro de 1974). Na mesma página Rossellini fala do filme, ainda que retrospectivamente, como “um filme didático sobre como se desenrolava uma batalha naval”.
[3] O sabor documentário de Stromboli deriva também de uma das fontes de inspiração do filme: os documentários realizados pela Panaria Film, Tonnara (Francesco Alliata, Quintino di Napoli, Pietro Moncada, 1947), Bianche Eolie (Di Napoli, Moncada, Fosco Maraini, 1947) e Isole di Cenere (Di Napoli, Moncada, Maraini, 1947). Claude Mauriac, numa revisão ao filme na saída deste em França, considera erroneamente que a cena da pesca ao atum tenha sido realizada empregando-se material de arquivo, confirmando indiretamente, assim, o sabor documentário do filme: cf. Claude Mauriac, L’Amour du Cinema, Fratelli Fabbri, Milano, 1957, p. 131.
[4] “Havia O Rio Sagrado, primeiro poema didático: agora há Viagem à Itália, que, com clareza perfeita, oferece enfim ao cinema, até agora obrigado à narrativa, a possibilidade do ensaio” (Jacques Rivette, Carta sobre Rossellini, “Cahiers du Cinema”, nº 46, abril de 1955, p.20).
[5] Conversazioni Televisive, declarações de 1962 registradas para a televisão francesa mas nunca transmitidas; agora em Roberto Rossellini, Il mio Metodo. Scritti e interviste, organizado por Adriano Aprà, Marsilio, Veneza, 2006, p. 203.
[6] A enciclopédia geográfica seria desenvolvida, logo depois de India Matri Bhumi, com Geografia della Fame, uma adaptação do ensaio Geopolítica da Fome (1951) de Josué de Castro, sociólogo e etnólogo brasileiro, que Rossellini provavelmente leu na versão italiana editada pela Leonardo da Vinci, Bari, em 1954, com prefácio de Carlo Levi; para este projeto, que herdou de Cesare Zavattini e Sergio Amidei, Rossellini viajou ao Brasil em agosto de 1958, encontrando De Castro. Prolongamentos da enciclopédia geográfica podem ser retraçados no projeto de série para televisão La straordinaria storia della nostra alimentazione (c.1964) e em A Question of People, onde Rossellini (e seus colaboradores) utilizam não só tomadas feitas na Índia em 1957 mas também outras tomadas, destinadas a projetos não realizados, feitas no Brasil (talvez em vista do projeto La civiltà dei conquistadores, c. 1970) e na África.
[7] “Apêndices” de Viva l’Italia, concebidos como o filme em ocasião das celebrações do centenário da Unidade Italiana, podem ser considerados os documentários (um media-metragem para a televisão, o outro um curta-metragem para o cinema) Torino nei cent’anni e Torino tra due secoli. Ambos, apesar de decalcar temáticas didáticas caras ao Rossellini do período, resultam de fato filmes comissionados não particularmente memoráveis.
[8] No campo dos filmes de imagens de arquivo (ou de montagem, ou de compilação, se se quiser) pouco ou nenhum relevo tem Benito Mussolini, que explicita ainda nos títulos “un film di Roberto Rossellini”. De fato, ele se limitou a fazer-se de fiador de uma operação que na época se contrapunha “do centro”, juntamente com Benito Mussolini: anatomia di un dittatore (1962) de Mino Loy, à reconstrução “de esquerda” do ventennio feita pelo senão admirável All’armi siam fascisti! (1962) de Lino Del Fra, Cecilia Mangini e Lino Miccichè, com comentário de Franco Fortini.
[9] Traços deste projeto se encontram no média-metragem de Claudio Bondi Roberto Rossellini. Sognando la scienza (1997).

Publicado como posfácio em Luca Caminati, Roberto Rossellini documentarista. Uma cultura da realidade, Carocci/MiBAC-Centro Sperimentale di Cinematografia, Roma 2012, pp. 125-131.

Publicado online em http://www.adrianoapra.it/?p=1158. Tradução de Eduardo Savella.

Rohmer ou a mise en scène da linguagem

Minha noite com ela

Por Michel Mourlet

Em 1969, Minha noite com ela nos pareceu o filme francês mais sério, o mais inteligente, o mais original e um dos mais compreensivos das verdadeiras vias do cinema que nós víramos há cerca de uma década. Esse julgamento, compartilhado já por um certo número de espectadores, repousava naturalmente sob alguns pressupostos que convêm precisar brevemente. 

O mais sério: o “novo cinema” tinha tentado nos habituar a uma forma assaz desagradável de coquetismo intelectual e estético: a tentativa de impressionar os burgueses, o desprezo pelo público, recusa ou incapacidade de contar claramente uma história coerente (a coisa mais difícil do mundo), recusa ou incapacidade de fazer um “bom trabalho”, esse trabalho profissional, aprimorado e reaprimorado, onde o artesão encontra o seu orgulho. Toda essa falsa cultura, falsa porque não vivida, superficial e publicitária, que ferve nas panelas parisienses, Éric Rohmer evitou, se afirmando como um espírito são, profundo, maduro, longe da moda e da publicidade. E sobretudo, no que ele diz, no que ele mostra, ele se respeita e respeita os outros; ele fala a um auditório ideal que ele supõe capaz de compreendê-lo pois ele faz o que é necessário para ser compreendido. 

O mais inteligente: ainda que a forma e o conteúdo dos seus diálogos se refiram deliberadamente à literatura e mesmo à filosofia, ou até à teologia, Minha noite com ela se situa nos antípodas dos balbucios político-metafísicos que substituem habitualmente o pensamento em tais realizações cinematográficas. Por outro lado, a análise que esse filme propõe das condutas humanas, de maneira geral, e de personagens inscritos de forma precisa na nossa sociedade, essa análise desta vez parece justa, ou seja, ao mesmo tempo clarividente e honesta. O espectador de hoje, ou de sempre, pode se reencontrar nesses seres que vivem perante seus olhos e que não são nem alienados, nem marcianos, nem entidades porta-vozes dos fantasmas do autor. 

O mais original: pela sua forma e seu conteúdo, aliás indissociáveis como convém numa obra bem sucedida e que se rementem um ao outro, Minha noite com ela é uma espécie de desafio. Trata-se de filmar um diálogo privilegiado, uma peça de teatro por assim dizer: uma “conversação sob um lustre”. E filmar isso de tal maneira que o resultado não seja de forma alguma uma peça de teatro, que o diálogo se enraíze e se encarne na realidade concreta, seja animado por uma circulação sanguínea estreitamente conectada ao ambiente social e natural. É bem mais estranho, muito mais raro e fascinante, de observar e escutar sem se entediar, nós diríamos mesmo com paixão, duas ou três pessoas que discutem durante quartos de hora inteiros sobre a aposta de Pascal, o marxismo ou os sacramentos, que ver a trigésima milésima sequência desse insólito varejo com o qual os epígonos do surrealismo, os dementes do cinema de arte e os profetas do conteúdo mental filmado nos importunam há setenta anos. 

Um dos mais compreensivos das verdadeiras vias do cinema: tanto pela estrutura e pelo desenrolar da história, quanto pelo modo de narração, esse filme é um dos mais solidamente realistas. Ora, o realismo sempre foi e será sempre a via central do cinema, já que é de um desejo de realismo absoluto (a reprodução do mundo tal como ele é) que nasceu a técnica de registro de imagens, e visto que a técnica se aperfeiçoa ao longo dos anos para se aproximar cada vez mais desse ideal (som, cor, grande tela, relevo, etc.). 

Cúmulo do exotismo e da audácia, a história começa em seu começo, prossegue em seu meio e se conclui no seu fim. Ela não mistura nem os tempos nem os lugares, conhece uma progressão, incertezas, uma culminação (a noite) e uma recaída reconfortante em direção ao equilíbrio definitivo. Quanto à mise en scène, de uma extrema sobriedade e de um grande rigor, seu classicismo promete à obra uma atualidade duradoura.

Poderíamos abordar Minha noite com ela de várias maneiras pois, esse filme, o contrário de uma obra didática ou de um filme de tese, é, no entanto, uma espécie de ensaio que propõe ao espectador uma soma de reflexões sobre a vida e sobre o mundo. Essas reflexões se organizam em torno de três eixos principais e interdependentes: as relações entre os homens e as mulheres, o cristianismo vivido e, se sobrepondo aos diversos aspectos das relações entre os seres por um lado e, por outro, entre os seres e Deus, o problema do acaso e da providência, da graça para os crentes, da sorte para os outros: Minha noite com ela, tanto pelos recursos da sua dramaturgia quanto pelas declarações de seus personagens, é antes de tudo um ensaio sobre a reconciliação do acaso e do milagre, digamos, sobre o acaso providencial.

O roteiro é construído a partir de alguns encontros aparentemente e talvez, realmente, perfeitamente contingentes: encontro do herói e seu antigo camarada Vidal, encontro de Maud, encontro de Françoise. E esses acasos parecem tão determinantes que a questão se coloca inevitavelmente em saber se eles não são também determinados.

A primeira discussão entre o herói e Vidal sobre a probabilidade de seu encontro é já uma pequena indicação do tema que vai correr entre os fios da intriga. Mas os eventos mais significativos, nesse aspecto, são os encontros sucessivos do herói e Françoise, simples transeunte de bicicleta que enche instantaneamente Jean-Louis da evidência e da certeza que ela está destinada a se tornar sua mulher. A ação, aqui, confundindo-se com o verbo, convém por uma vez citar, não os gestos, mas as palavras:

J.L. - Você acha que fiz mal ao trazê-la?
F. - Não. Eu poderia te dispensar.
J.L. - Eu sempre tive sorte. A prova, você não o fez.
F. - Talvez eu tenha me enganado... É a primeira vez que eu sou abordada desse modo por alguém na rua.
J.L. - É a primeira vez eu abordo alguém que eu não conheço. Felizmente, eu não pensei muito, nunca teria tido coragem de fazê-lo. (...) Eu gosto de me aproveitar do acaso. Mas só tenho sorte para as boas causas. Mesmo se eu quisesse cometer um crime, acho que eu fracassaria.
F. - Assim, você não tem problemas de consciência!
J.L. - Não, muito poucos. Você tem?

Na verdade, o pensamento de Éric Rohmer é muito sutil, muito moderno e muito ocidental, para se satisfazer com uma simples ideia de predeterminação, que estaria de acordo com o fatum dos Antigos ou o “Inch Allah” dos mulçumanos. Se nossa vida pode ser feita de milagres, é preciso também e, talvez sobretudo, o dom de reconhecê-los. Outra definição da liberdade: saber escolher os momentos providenciais.

Notemos, no diálogo, que uma exceção brilhante constitui o essencial desse filme sem desnaturar a natureza fílmica, a frequência de aparição da palavra “escolha” (como das palavras “sorte” e “acaso”).

Mas aqui está o problema posto:

F. - Você não aparenta ser alguém que parece contar com o acaso.
J.L. - Minha vida é feita apenas de acasos.
Sua vida é feita apenas de acasos, mas ele calcula, ele pesa, ele filtra esse acaso. Ele escolhe seus milagres.
J.L. - (...) Eu me relaciono com muita dificuldade. Sim, eu acho idiota se relacionar com alguém porque ele é seu vizinho de mesa ou porque ele tem um escritório ao lado do seu. Você não acha?
Françoise, no entanto, se enganaria. Esse rapaz que a encontra em uma esquina e que decide imediatamente casar-se com ela, há boas razões para estar desconcertado!
F. - (...) Ao contrário de você, eu não acredito na predestinação. Eu penso que, a cada instante de nossa vida, nós estamos livres para escolher. Deus pode nos ajudar nessa escolha, mas há uma escolha.
J.L. - Eu também escolho. Acontece que minha escolha é sempre simples.

No entanto, Jean-Louis termina por expressar completamente sua ideia:

J.L. - Eu amava uma moça, ela não me amava, ela me deixou por outro. E, finalmente, foi bom que ela tenha o escolhido, ele e não eu.
F. - Sim, se ela o amava.
J.L. - Sim, mas eu quero dizer: é bom para mim. Na verdade, eu não a amava realmente... O outro deixou sua mulher e seus filhos por ela. Eu, eu não tinha nem mulher nem filhos para deixar. Mas ela bem sabia que mesmo que eu os tivesse, eu não os teria deixado por ela. Então, essa má sorte é, na verdade, uma sorte.

Assim, os acontecimentos se combinam às vezes com uma certa felicidade, mas frequentemente em vão, pois muitos homens e mulheres não veem ou se recusam a aceitar essa mão que lhes é estendida. Nosso herói não é um desses.

A sorte ou a graça, pode ser aquela de encontrar Deus, é também, no grande vaivém de homens e mulheres, alguns encontros para toda uma vida, e algumas vezes o germe de um milagre. Ainda, é preciso, nós o vimos, que os dois seres sejam igualmente dotados dessa faculdade de reconhecer o milagre, caso contrário, o germe abortado se diluirá no decorrer dos dias. Quantos homens e mulheres passam ao lado da felicidade, os olhos fixados em uma miragem e que é, ainda, medíocre. Assim, Maud poderia ser a miragem de Jean-Louis. Mas esse último, a despeito da sua banalidade aparente, é de fato um ser excepcional; é nisso que ele nos interessa excepcionalmente: ele tem o dom, ele percebe o instante — ou o ser — providencial. Uma desconhecida passa de bicicleta e é a mulher de sua vida.



  
É preciso ser beata em Saint-Germain-de-Près ou monge no monte Athos para acreditar por um momento que Jean-Louis se enganou por não preferir Maud. Essa moça charmosa, brilhante e complicada devido suas provações é a última a poder preencher a vida de um Jean-Louis complicado pelos escrúpulos da sua moral e os meandros do seu espírito. É da simplicidade, da nitidez, de um charme um pouco mais discreto, de uma ternura menos tensa, menos praticada que ele necessita; para que ele descanse, que ele se tranquilize, que ele faça as pazes para sempre. O equilíbrio que o seu bom senso lhe designa, Françoise lhe proporcionará. Eles correrão em direção ao mar, segurando seu filho pela mão: um dos belos planos evidentes e simples, à la Flaherty, à la Dwan, da antologia cinematográfica da felicidade. 

Esse bom senso, em vias de extinção nos seus contemporâneos, Jean-Louis o secreta em abundância e sem se perder nas suas frases, como a aranha desenrola seu fio interminável, enreda-o, tece-o e, concluída a teia, se encontra instalada no centro. O amor tal como ele o concebe não é nem o amor louco de adolescentes tardios que se libertam nos seus escritos da mediocridade de suas vidas, nem como as quadrilhas nas quais trocamos sem cessar de cavaleiro sem trocar de música, diversão bem monótona e muito própria para engendrar a melancolia. O amor não deve ser nem uma paixão devastadora nem a troca de duas fantasias, mas o florescimento de dois seres um pelo outro, nos seus corações e nas suas carnes: 

Maud - Então, se você encontrasse aquela que você procura hoje, você se casaria imediatamente e juraria ser fiel a ela para sempre? 
 J.-L. - Com certeza. 
M. - Você tem certeza que seria fiel a sua mulher? 
 J.-L. - Sim, evidentemente. 
 M. - E se ela te trair? 
 J. –L. - Se ela me ama, ela não me trairá. 
 M. - O amor não é eterno. 
 J.-L. - Sim, ele é, tal como eu o concebo. Se há uma coisa que não compreendo, é a infidelidade. Nem que seja só por amor próprio, não quero dizer branco depois de ter dito preto; se eu não a amasse mais, eu a desprezaria. 

Essas palavras sobre a fidelidade fazem um som bem estranho em pleno concerto de absurdos que difundimos hoje, em todos os lugares e a cada instante, para persuadir os homens que lhes interessa tornarem-se, no que diz respeito ao amor, tão disponíveis quanto os cães. E contudo, onde está o problema?

J.-L.- (...) Quando amamos verdadeiramente uma moça, não temos vontade de dormir com outra. Não há problema. 

E então, o amor não é uma doença ou uma fatalidade que se lança sobre o pobre mundo e ao qual nós somos entregues com as mãos atadas. Para que seja duradouro e construtivo, é preciso, como qualquer coisa humana, o controle da razão e a obediência a uma disciplina. 

M. - Eu não gosto da sua maneira de amar sob condição. 
 J. - L - Eu não lhe disse que era preciso amar com condições, eu lhe disse que era preciso amar somente uma mulher. Eu não vejo onde está a condição. 
 M. - Eu não falo disso, mas da sua maneira de calcular, de prever, de classificar... 

Notemos que tal concepção do amor, que repousa sobre a fidelidade, poderia muito bem ser defendida por um descrente. Um mal entendido quer que seja a religião que imponha essa regra, quando se trata inicialmente de um imperativo psicológico elementar — o sentido da propriedade sexual — que a religião só fez ratificar, para garantir na união de dois seres maiores chances de estabilidade, estado que beneficia tanto a sociedade quanto o indivíduo. 

Mas acontece que o nosso herói é católico, praticante, preocupado com os problemas da fé e não é a menor particularidade do filme, ele nos propor esse personagem absolutamente novo de um rapaz que vive quotidianamente seu cristianismo. Jean-Louis mantém com o cristianismo uma relação dupla: por um lado, ele procura harmonizá-la com a sua vida, por outro, ele extrai da religião princípios de harmonia para a condução de sua vida. Do mesmo modo que ele é um amante racional, ele é um cristão racional, pouco atormentado, que aspira ao equilíbrio e o alcança. 

Falamos, a propósito do diálogo, de Valéry, Diderot e mesmo de Marivaux e Voltaire. O que quer dizer um estilo profundamente francês. Renovamos aqui uma tradição bem viva, feita de clareza, de precisão, de ordem e de lógica. Aqui, prazer realmente soberano, as névoas do Norte e a logomaquia da Europa Central derretem como a neve ao sol. Mas seria passar ao lado do essencial, ao não ver até que ponto esse diálogo é, na verdade, uma ação, a ação do filme, seu motor. E essa ação completamente moral se inscreve em um cenário jamais abstrato, sempre presente: a vida provincial, uma cidade (Clermont-Ferrand), a missa, o restaurante, a livraria, o dia, a noite, uma rua decorada para o Natal, a neve que cai, uma paisagem sob a neve, uma praia, os ruídos da circulação. Minha noite com ela é um belo filme, pois é um filme encarnado, onde a inteligência não se torna jamais teórica ou dissecante. Ela está aqui como a fonte que vivifica o mármore — ou o celulóide. Porque ele está na contracorrente da derrocada que ameaça nossa civilização, porque ele mantém contra tudo e contra todos os direitos do bom senso e do rigor, Éric Rohmer encontra-se numa situação bem precária no nosso presente. Mas, precursor de um novo classicismo, ele tem — sem dúvida — o futuro ao seu favor. 

Os aprendizados de Perceval 


O espectador desprevenido que assiste as primeiras cenas de Perceval, o Gaulês acredita ter caído em outro planeta. Árvores de metal cortado representam uma floresta. Uma fachada de castelo feito de material leve, sempre a mesma, representa todos os castelos que demarcam a narrativa. Só mudam os brasões em cima da porta. Um céu e um sol pintados, interiores de decoração variada que dissimula uma arquitetura única são os lugares dos deslocamentos circulares dos atores, que ali evoluem como sobre um palco de circo. A ação é sublinhada por coros de jovens que arranham alguns instrumentos medievais.


E o que dizem, esses atores vestidos com uma extrema precisão histórica e cuja naturalidade perfeita contrasta com a estilização do cenário? Um poema em octossílabos de Chrétien de Troyes.

Ao menos que não nos deixemos desencorajar logo no início, o charme opera insensivelmente. A qualidade plástica dos planos, os movimentos sutis dos personagens, a beleza dos rostos, a elegância das atitudes, o ritmo do texto e a sua delicadeza (às vezes, sua comicidade), compõem uma cantata culta, repetitiva, que impregna e encanta. Uma ação de graças.

O autor de Perceval ou o conto do Graal, Chrétien de Troyes, nascido na capital de Champanha por volta de 1137, morto provavelmente em 1190, é considerado como o maior poeta francês de seu tempo e iniciador do romance moderno. Recordemos que, inicialmente, “romance” significa poema em língua romana, intermediário entre o latim tardio e o francês. Le roman de Renart, por exemplo, é uma coletânea de fábulas, um bestiário antropomórfico sem a mínima relação com aquilo que nós chamamos hoje de romance. Os romances de Chrétien de Troyes, em compensação, mesmo que escritos em versos, introduzem na ação evoluções psicológicas e morais, análises de comportamento, uma ironia que já não é o cômico das fábulas e, sobretudo, técnicas de narração bem elaboradas: narração e diálogo, individualização nuançada dos personagens, entrelaçamentos das intrigas.

“Pensamos, sinala Éric Rohmer, que esses romances eram destinados a um público essencialmente feminino [1]. A mulher ocupa um lugar muito importante em todos os romances de Chrétien de Troyes. Quer se trate de Perceval, de Lancelote ou o Cavaleiro do leão, são histórias de amor.”

Essas histórias prefiguram, dessa maneira, o romance cortês do século XIII e as adaptações em prosa (séculos XV e XVI) de ciclos cavalheirescos, caminhos que levam ao romance tal como nós o entendemos desde o século XVII. A obra de Chrétien de Troyes se coloca contra uma visão fatalista da paixão que resulta da lenda céltica, para preconizar um voluntarismo do amor livremente consentido. Concepção extremamente moderna que implica que suas narrativas sejam, particularmente, “educações sentimentais” cujos heróis devem passar por suas provas. De todos seus romances, Perceval é certamente o mais engajado nas vias da educação. É, por excelência, o romance de formação.

Pertencendo ao ciclo arturiano, ele conta as aventuras de um jovem Gaulês ingênuo, nascido em um castelo no coração da floresta. Sua mãe, que perdeu seu esposo e seus outros filhos no combate, tenta preservá-lo dos perigos educando-o na ignorância da cavalaria. Mas um dia, na caça, ele encontra cavaleiros tão belos em suas armaduras que os toma pelo Espírito Santo cercado pelos seus anjos. Para a tristeza de sua mãe, ele decide tornar-se cavaleiro.

A sucessão de episódios que marcam seu itinerário descreve uma linha de progresso constante, a despeito dos obstáculos e dos erros: da ingenuidade à sabedoria, de um egocentrismo quase animal ao respeito pelo outro, da credulidade à fé. Educação física, sentimental, moral, social e religiosa.

“Todavia, indica Éric Rohmer, eu não exagerei essa ingenuidade nem forcei o seu lado cômico. Para preservar o tom elegante desse romance para castelãs, eu não quis cair na grande farsa, mesmo se muitos momentos do texto são bem fortes, bem engraçados. Eu disse que havia um pouco de Buster Keaton em Perceval ou, melhor dizendo, que há em Buster Keaton um pouco de Perceval. Mas a sua comédia é mais engraçada porque de ordem essencialmente física enquanto que, em Perceval, ela provém só do texto.”

“Só o texto”, nós o veremos mais adiante, é a chave de Perceval o Gaulês como de todos os filmes de Rohmer. É por isso que não era supérfluo considerar seu contexto histórico e literário.

Sobre o plano da forma, o projeto parece bem singular. Não se referindo a nenhum modelo conhecido, ele é, no entanto, imediatamente assimilável e perfeitamente legível. Definição e privilégio das grandes obras cuja forma, por assim dizer, transpira de maneira natural os motivos que as inspiram. Ainda que essa espontaneidade seja frequentemente, e aqui mais do que em qualquer outro lugar, o fruto de um trabalho obstinado.

A singularidade do filme provém, por um lado e de maneira notável, de seu cenário único, polivalente, rigorosamente artificial que, segundo o metteur en scène, “constitui uma homenagem ao teatro da Idade Média (...) um pouco no espírito da representação dos mistérios, onde cenários fixos representam o céu, o inferno, etc..., permaneciam em cena e, às vezes, se deslocavam sobre rodas.”

Ao certificado de novidade atribuído a essa obra, poderíamos objetar que não se trata do primeiro cenário estilizado e construído em um estúdio de cinema. Alguns cineastas do período expressionista pintaram ruas convulsivas, cercadas de casas bizarramente titubeantes. Mas os atores exageravam e se contorciam em uníssono. O temperamento de Éric Rohmer, que o leva as antípodas do exagero expressionista, não poderia se conformar com tais exemplos. Seus intérpretes atuam com a maior naturalidade, em figurinos completamente realistas. A exatidão histórica conduziu também a escolha pelos objetos que manipulam, armas e instrumentos diversos. Esse contraste entre o ambiente e o utensílio traduz, simultaneamente, o pouco de atenção que Chrétien de Troyes deu às paisagens e à presença concreta, insistente, de objetos na sua narrativa. Além disso, podemos ver aí, ainda que Rohmer se defenda, uma alusão a várias miniaturas anteriores ao século XIV, que reúnem um verismo ingênuo de personagens no primeiro plano e de suas atividades industriais ou militares em fundos simplificados, simbólicos, ou mesmo puramente decorativos.

Outra fonte de surpresa nesse filme: o diálogo. Os versos quase inalterados, ligeiramente adaptados aqui e ali, quando a velha língua se torna incompreensível. Tradução — de Rohmer — muito respeitosa, que preserva o charme do texto ao ponto de manter a narração na terceira pessoa quando um personagem, para descrever sua própria situação, recita trechos não dialogados no poema. Depois de alguns instantes, a convenção é aceita e assimilada tão facilmente quanto aquela do cenário.

Que os diálogos versificados passem ao ecrã, nós o sabíamos há muito tempo: por Sacha Guitry, Abel Gance (Cyrano contre d’Artagnan), a televisão (Renaud et Armide de Cocteau; Racine, Molière...). É por outra razão que o conteúdo verbal de Perceval o Gaulês nos interessa. Uma razão pela qual esse filme representa o resultado extremo do projeto cinematográfico completamente original de Éric Rohmer; razão pela qual também a vontade de respeitar o texto, que reforça a homenagem do cenário ao teatro medieval, vai muito além de um simples reflexo de humanista.

Talvez à exceção de Mankiewicz, solicitado pelo problema sem conseguir realmente resolvê-lo, os filmes de Rohmer são os únicos a considerar o diálogo como o próprio assunto de sua mise en scène e não como o complemento da ação. Em todos os outros cineastas, inclusos aqueles que, como Pagnol e Guitry, filmam seu próprio teatro, a ação determina a fala e a conduz; a preexiste de certo modo, mesmo se de uma fala provém uma ação, pois é uma outra ação que, agora, se desenvolve, de onde surgirá uma outra fala.

Em Rohmer, ao contrário, o diálogo preexiste à ação. Profundamente, ele é por si só a ação: confrontação dialética em Minha noite com ela, narrativa cavalheiresca em Perceval. O deslocamento dos atores no espaço como o desenrolar dos acontecimentos no tempo sustentam, prolongam, concretizam os movimentos do pensamento e da linguagem que formam o verdadeiro nó, central e dinâmico, da ação filmada.

Assim, compreendemos melhor como uma troca tão abstrata como o debate entre um cristão e um marxista, em Minha noite com ela, torna-se um fascinante trecho de cinema. E porque, quando Perceval diz, falando dele próprio, “ele faz isso e aquilo”, já o fazendo, nós não nos chocamos nem pela terceira pessoa nem pelo pleonasmo. Nós assistimos, não à mise en scène de uma ação comentada pela linguagem, mas a mise en scène da linguagem.

O país real

Éric Rohmer foi primeiramente, em seus textos, um dos pioneiros de uma compreensão do cinema que encontrou seu coroamento lógico no que nós chamamos de mac-mahonismo, para além do qual, se ela quisesse se distinguir, a crítica só poderia regressar em direção ao impressionismo ou à política, ou falar de outra coisa como a semiologia. Passando da teoria para a prática, Rohmer soube exprimir nos seus filmes a admiração que ele carregava nos seus textos críticos por Murnau e por Flaherty: a raiz do belo está na contemplação da verdade. Nada mais convencional, nada mais contrário à moda e às ideologias ambientes que essas obras em que se fala exclusivamente da felicidade e da fidelidade do casal.

E, no entanto, não existe filme francês, hoje, que dê de certos aspectos da vida real e atual na França, notadamente na província, uma imagem tão leal, tão escrupulosamente realista e, ao mesmo tempo, amigável. Poderíamos pensar que o mesmo que acontece com os filmes de Rohmer, acontece com a França de Maurras: há o país legal e o país real. O país legal é tudo que diz respeito à efervescência midiática e ao microclima parisiense: os dogmas e os tabus da intelligentsia, a televisão, o aborto, o MLF, a revolução à la Godard e a “nova pedagogia [2]”. Mil tentativas de afagar o pelo da História e desagregar o que ainda se mantém. Em última análise, muito barulho por um punhado de dólares. O país real são os homens e mulheres que trabalham, que constroem uma família, que ainda conhecem o preço da tranquilidade, do equilíbrio, e o ritmo das estações.

O conhecimento exato e inquieto desse preço, desse ritmo, disso que os ameaça, constitui a matéria dos filmes límpidos de Éric Rohmer. Se a modernidade se manifesta na faculdade de exprimir nossa época despojando-a de falsos semblantes e a originalidade através de um timbre como nenhum outro, ainda que de alcance universal, Éric Rohmer é o cineasta francês mais moderno e o mais original. Ele é também o cineasta moderno mais originalmente francês, o menos influenciado por estilos ou problemas estranhos ao nosso gênio. Quando nossos descendentes procurarão nosso verdadeiro rosto sob a poeira dos séculos, eles o encontrarão mais seguramente na realidade das ficções de Rohmer que na ficção de reportagens ou de pesquisas.

É porque Rohmer tem o olhar muito treinado e penetrante para perceber a constância dos seres humanos. Essa permanência mostrada no concreto do seu cenário atual, captada nas suas instâncias íntimas que são essencialmente aquelas da relação sucessivamente ambígua, atormentada e solar entre o homem e a mulher, forma todo o tema de seus filmes. O celulóide, como uma hera, prende-se ao Beijo de Rodin.

Ela forma também, evidentemente, o tema dos Seis Contos Morais que Éric Rohmer publicou pelas Éditions de l’Herne. Esses Contos são, se quisermos, os roteiros de seus filmes: A padeira do bairroA carreira de SuzanneMinha noite com elaA colecionadoraO joelho de ClaireAmor à tarde. Na verdade, são histórias suficientemente escritas para justificar sua publicação. Rohmer maneja a pluma com a mesma elegância que a câmera. Seu passado de crítico e seu presente de dialoguista poderiam nos fazer pressenti-la.

Esses Seis Contos Morais compõem muitas variações sobre um mesmo tema, assim definido: “Enquanto o narrador está à procura de uma mulher, ele encontra outra, que retém a sua atenção até o momento em que ele reencontra a primeira.” Rohmer adora brincar sutilmente com as palavras: “moral”, isso significa tanto “de onde podemos tirar uma moral” quanto “retraçar um itinerário puramente moral” em oposição a uma ação exterior. Quanto à moral, ela nunca se impõe: cabe ao leitor — como ao espectador — dela extrair finas análises psicológicas e indicações de pormenores que se entrelaçam sobre a trama do conto.

Quando mensuramos a energia com a qual, normalmente, o público e a crítica rejeitam os alimentos que não foram previamente mastigados e que lhes são destinados, devemos admitir que o sucesso de Éric Rohmer parece um milagre.


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[1] Chrétien de Troyes escrevia para as cortes: aquela de Champanha, depois para a de Flandres. Perceval ou o conto do Graal foi composto entre 1180 e 1190 para Philippe d’Alsace, conde de Flandres. Lancelote, o conto da carreta, por volta de 1168, para Marie de Champagne. Outros romances do poeta chegaram a nós: Cligès (por volta de 1175), romance do amor conjugal, Yvain, o cavaleiro do dragãoÉrec et Enide, e uma obra de juventude inspirada nas Metamorfoses de Ovídio: Philoména. Entre as obras perdidas, devemos lamentar, sem dúvida, especialmente le livre du roi Marc et d’Yseut la blonde, que teria sido apaixonante comparar com os fragmentos conservados das versões de Thomas e Béroul.
Perceval se apresenta sob a forma de um poema com mais de 9000 versos octossílabos (o decassílabo é reservado às canções de gesta), provavelmente escrito segundo um poema anterior do qual só conhecemos uma versão inglesa. O autor morreu sem ter concluído sua obra, retomada e adaptada em versos e em prosa por seus discípulos franceses. Na Alemanha, no começo do século seguinte, Perceval foi copiado por Wolfram d’Eschenbach no seu poema Parzival, do qual Richard Wagner se apoderou para redigir o libreto de Parsifal.

[2] Escrito nos anos 1970. A lista de 1987 seria diferente, mas igualmente bizarra e significativa.


Rohmer ou la mise en scène du langage foi publicado em Sur un art ignoré - La mise en scène comme langage, Henri Veyrier, 1987. Tradução: Letícia Weber Jarek.