O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Noites de Lua Cheia, de Eric Rohmer


Por Serge Daney

Eric Rohmer, com seu humor sóbrio, seduz seu espectador, arma para sua heroína e coloca seu cinema em um alto nível de maestria.

Não há somente prazer em ver um filme de Éric Rohmer, há prazer em vê-lo suceder tão rápido outro filme de Éric Rohmer. Este prazer, tornado tão raro, da série. Nesses tempos em que o cinema francês perde-se em busca de “nichos”, um cineasta que combina uma vez por ano os elementos de um mundo que é somente dele é, de todo modo, um homem precioso. 

Seu nicho, Rohmer encontrou-o há muito tempo e é suficiente ler a apaixonante coletânea de seus antigos artigos (Le Goût de la beauté, publicado pela Cahiers du cinéma) para entender que ele fala sério. Rohmer começou por trabalhar para fixar alguns princípios (advindos de um bazinismo muito rigoroso), depois ele desobstruiu uma cena para fazer aparecer (comparecer seria mais exato) os personagens. Ele balizou seu território, teoricamente no começo, eroticamente em seguida. Um autor? Um homem que conseguiu filmar apenas aquilo ou aqueles que lhe interessam. 

Como é o último Rohmer? Como os outros, diríamos (e teríamos razão: nosso homem é repetitivo). Muito diferente dos outros, diríamos (e teríamos ainda razão, já que nós aprendemos a perceber – e a provar– a mínima variação dentro do coração da série). A série (depois dos Contos Morais, as Comédias e Provérbios) nos liberta do fardo de julgar cada filme como se ele fosse o último e nos deixa livres para “escolher” aquele que melhor nos convém. Prestidigitador e moralista, Rohmer não pode mais “falhar” em um filme. Seu sistema é muito pensado, muito ponderado, muito perfeito. É por isso, depois do fracasso de Perceval, o Galês (que é para Rohmer o que A Terra dos Faraós foi para seu mestre Howard Hawks: um passo muito grande, lá onde ele não conseguia dar pé, no turbilhão dos figurinos de época), nos colocamos cada vez menos a questão de saber se “o último Rohmer” é bem sucedido ou não e cada vez mais de saber se ele irá nos agradar, pessoalmente. 

Noites de lua cheia é, à primeira vista, um filme grave, áspero, pouco divertido, um pouco cruel e, obviamente, irrefutável, Rohmer, ninguém há de negar, continuará o etnólogo número um da sociedade francesa de seu tempo. Como todo etnólogo, ele vive de uma contradição: ele só ama seus selvagens mas ele os vê sempre “do exterior”, como a soma perfeita dos gestos que eles são capazes, das palavras que eles vestem e dos hábitos dos quais eles se cobrem. Este etnógrafo não ama todas as tribos, quase nenhuma na verdade. Ele estuda apenas uma (a chamaremos “burguesia francesa”) e ele é especializado em dois subgrupos (os chamaremos de “grande” e “pequena burguesia”). São grupos tagarelas que usam as palavras da língua francesa não somente para dizer não importa o que, mas para “fazer cinema” sobre a natureza de seus desejos. Trata-se, em geral, de um desejo de liberdade (no sentido restrito de “livre arbítrio”). Impávido, Rohmer os prende na armadilha de suas palavras e lembra-os secamente que seus desejos não existem para além dessas palavras que eles gargarejam. Cada pequena narrativa se fecha sobre a punição daquele (daquela, geralmente) que tomou a bexiga do seu discurso pelas lanternas do real. E como dizia Chandler: “There’s no trap so deadly as the trap you set for yourself.

Quando ele filma os burgueses (aqueles que não trabalham de verdade, que não estão cansados, que são elegantes), Rohmer adota um tom veranista e sensual e pisoteia os canteiros de flores de Marcel Dassault (Pauline na praia). Quando ele filma os pequenos burgueses (aqueles que têm problemas de horário, de transporte, de trabalho, que têm que dar duro apesar do nariz empinado), Rohmer adota uma luz fria, com azuis fracos, corpos desossados, cenários feios, sem pena para aquilo que tem de naif e de apático em seu mundo. 

É a esta tribo ingrata que pertencem os personagens de Noites de Lua Cheia. A ação gira em torno de um apartamento, aquele que Louise (Pascale Ogier, simplesmente impressionante) quer morar também, já que ela já vive com Rémy (Tcheky Karyo, sim, um ator a ser seguido) na região parisiense. Louise acredita que sua liberdade de mulher depende da sua possibilidade de escolha entre essas duas “casas”, uma para ela em casal e uma para ela solteira. Evidentemente, ela engana-se e toda a história do filme será a demonstração desse erro de partida. 

Não podemos contar o filme. Podemos somente dizer que Rohmer não deixa nada ao léu, como se ele experimentasse um prazer soberano em mostrar o mínimo mecanismo da armadilha que vai se fechar sobre Louise. E um prazer ainda maior (beirando a perversão) de fazer crer que, quem sabe, a armadilha talvez não se feche. Ele sabe, melhor que qualquer um, fazer o espectador aceitar um ponto de partida artificial para melhor lembrá-lo, no fim do percurso, que ele fez mal em aceitá-lo. 


Mas como tudo é irrecusável, rápido e preciso no detalhe da mise-en-scène, esquecemos de nos perguntar onde se encaixa o conjunto. É a ilusão do movimento verdadeiro que nos faz perder de vista a realidade dos sentimentos simulados. Aí está a armadilha. Deliciosa e amarga, conforme nos identificamos com os personagens rohmerianos ou ao Rohmer marionetista (e comigo, eu admito, é assim, mas eu gosto ainda mais dos filmes de Rohmer em que eu também gosto dos personagens: A Marquesa d’O, A Mulher do Aviador). 

Ao longo dos seus ires e vires Paris-subúrbio, Louise frequenta diversos personagens. Mas há uma diferença entre ela e eles. Louise mente a ela mesma (sua segunda casa não é a que a aproxima da sua liberdade mas a que a joga para a solidão) e isso porque ela é de uma só vez patética e irritante. Os outros se contentam em mentir para ela. É porque são medíocres. Há também dois retratos dos homens em Noites de Lua Cheia que não são exatamente a propaganda de “homens de verdade”, mas duas destruidoras pinturas dos machos como eles são. Rémy, o bom Rémy, que construiu cidades novas perto de Paris e que, cobaia caseira, aceita viver nelas, o Rémy possessivo que diz ter achado em Louise “um absoluto” e que a trairá no momento em que ela virar as costas. Octave (Fabrice Luchini, de uma fanfarronice assustadora) o companheiro-melhor amigo que, subitamente incapaz de se segurar, fará uma cena pífia a Louise. 

Há uma acentuação da duração no filme. As relações homem-mulher não se ajeitam. Mulheres que fazem joguete com a ideia da sua liberdade (não se trata jamais de “liberação” que, por uma trapaça assaz hipócrita, Rohmer supõe já ter sido conquistada) e homens que se colocam como agradáveis companheiros-amorosos gélidos e que retornam durante o filme a um estado bestial (o estupro, a possessão doentia) que Rohmer, certamente, não filma nunca (é muito sujo) mas que ele tangencia às vezes. Há violência neste Noites de Lua Cheia, e não somente no incansável bate-pronto dos diálogos. Violência do tapa que não sai do braço de Rémy (ele bate o cotovelo, o que se torna uma gag), violência do interrogatório de Octave, ciumento e obstinado, quase um estupro. Louise sozinha em cena, sonhando em voz alta, escrava de seu capricho, presa na rede inócua dos homens, Louise, pensando bem, é heroica. 

Rohmer é, em certo sentido, o cineasta contemporâneo do feminismo e se ele é visto hoje como um cineasta tão atual – ele que é resolutamente estrangeiro às modas e que passa sua vida a se bater com a ideia de “modernidade” – é porque seus filmes mais recentes coincidem com o desaparecimento do discurso feminista. É o velho tema literário da “mulher livre” que já havia tratado, de uma maneira muito final do século XIX, em Minha Noite com Ela, que retorna, sob formas mais “antenadas” nas Comédias e Provérbios. Perceval, o ingênuo místico, foi o último personagem masculino e rohmeriano ainda capaz de cometer equívocos sobre seu desejo. Depois, todos os homens (mesmo os jovens) se dedicam à covardia daqueles que sabem muito bem o que eles querem conseguir. Sobram as mulheres. Somente elas se “beneficiam” desse grande privilégio, o de não confundir o desejo com a satisfação do desejo. 

É porque o etnólogo é, mais fundamentalmente, um teólogo, em que o enredo de predileção será o da imaculada conceição. As mulheres “se fazem ter” (em todas as acepções do termo) justamente onde elas não estão (a Marquesa d’O durante seu sono, Louise depois que ela se ausenta do domicílio conjugal) e nunca onde elas estão. E as mulheres “livres” sonham apenas em guardar por mais tempo possível seu quarto de moça. Não esqueçamos a dolorosa precisão com a qual Rohmer já cartografou um bom número de quartos de moças (o de Marie Rivière em A Mulher do Aviador, o de Béatrice Romand em O Casamento Perfeito). O etnólogo que se camufla toma então um ar de confessor sadiano ou de educador amoroso. 

O charme oblíquo dos filmes de Rohmer tem uma razão simples: é muito difícil de se identificar com seus personagens. Patéticos e irritantes, como crianças mimadas. É porque Rohmer pratica uma forma de brechtianismo perverso. No começo, quase que por convenção, ele nos propõe nos “aproximarmos” do personagem que, por seus caprichos, coloca em movimento a ficção. Mas o momento em que nós entendemos que esse personagem está indo em direção a uma punição merecida e que somos obrigados a largá-los (para vê-los “mais de longe”) é precisamente aquele que o autor esperava para ficar frente a frente com o seu personagem, para o consolar e para gozar com suas lágrimas. 

Não protestemos muito. Aí está a própria definição do “filme de autor” no cinema moderno. O autor “clássico” (diríamos Renoir) doaria a nós seus personagens e nem pensaria em repreendê-los. Era a sua generosidade. O autor moderno tem ciúmes de seu espectador. Sua arte, no máximo, consiste em nos conduzir à porta do quarto. Podemos chamar isso de “distanciamento”. De todo modo, ele engoliu a chave. 

4 de setembro de 1984 

Les nuits de la pleine lune foi publicado no livro Ciné Journal (Volume II), p. 157-162. Tradução: Cauby Monteiro.

Edifício Master

Por Miguel Haoni

A partir de Santo forte (1999), Coutinho amadurece o seguinte método: uma produtora ou assistente de direção bate numa porta e fala com o morador sobre o projeto. Nesta conversa, a pessoa aceita ou não ser filmada, e ali já se estabelece um contato prévio que servirá como munição para o diretor, garantindo certo desequilíbrio entre entrevistador e entrevistado. Este morador não conhece Coutinho até o momento da filmagem no qual, a partir de um único encontro, sem antes nem depois, pode nascer a cena para o filme. O que é solicitado nesse instante é uma mútua disponibilidade. O encontro com este personagem-diretor – cronista que desenha um grande painel brasileiro a partir da conversa com as pessoas –, através do olho no olho, na dinâmica estabelecida no diálogo, faz surgir algo. Alguma coisa que não poderia ser ensaiada, nem decorrer de uma experiência prévia. A cena necessita do vigor e do frescor de uma pessoa que conta uma história a outra pela primeira vez. 


Na filmagem cada um dos participantes escolhe mais ou menos conscientemente o quadro que ocupará, através da disposição dos objetos no fundo e de sua postura diante da câmera. Existe - no acordo entre o personagem e a câmera - algum nível de preparo no campo a ser captado: uma pequena mise en scène que é, também, reveladora potencial da vida ali apresentada.



Nesta disposição, os espaços se tencionam e é sempre interessante quando o entrevistado atravessa o campo e lança uma pergunta para os de trás da câmera. Coutinho, o perguntador oficial do filme, mostra-se curiosamente o mais desarmado quando interrogado. E registra seu próprio despreparo: quando Roberto interpela-o perguntando “Senhor quer me dar um emprego?” Coutinho não sabe o que responder. Apesar de toda pesquisa e preparação ele também está muito nu. 

Edifício Master (2002) impôs a este método uma porção de problemas. Trata-se, no filme, de um grupo novo para o cineasta - apesar de fazer parte dele: pessoas da classe média carioca, residentes em apartamentos. Mesmo sendo a realidade do homem, o artista nunca havia se debruçado sobre ela. Ao realizar o filme, o diretor traça uma forma de reencontro, explorando o seu nicho, o seu quintal. O segundo problema é que se trata de um grupo essencialmente amedrontado por uma porção de valores e construções sociais que obstruem sua abertura ao diálogo. Quando conversa, por exemplo, com um morador do sertão nordestino ou de uma favela num morro carioca, o entrevistado tende a contar suas histórias com prazer, em jogos sempre muito ricos no trato com a língua e com a lógica argumentativa. Na classe média Coutinho encontrou um bloqueio, uma vontade de falar pouco. E até mesmo problemas na própria qualidade do relato: em determinado momento, para ele, aquele parecia um grupo sem graça. 

O desafio que Coutinho se impõe é o de sempre entregar um filme ao espectador. Ele nunca se contenta a apenas abrir o dispositivo e aceitar passivamente o que a realidade lhe oferece. Sua intenção é que os espectadores cheguem a algum lugar no ato da fruição. Não lhe interessa o exercício no vazio. Em Edifício Master ele equilibra as dificuldades, reduzindo cada encontro a um segmento essencial e extrapolando o número de entrevistas: foram 37 apartamentos, dos quais 27 aparecem na montagem final. O filme apresenta um painel gigantesco: esforço balzaquiano da construção de uma Comédia Brasileira de tipos, rostos e gestos.

Esta busca assume o pressuposto de que existe sempre uma espécie de camada subjacente nas aparências, onde atingimos estratos mais profundos e complexos do real. No jogo que esta forma de arte opera com a realidade, há sempre uma verdade escondida, que a observação atenta acaba por revelar. Um dos momentos mais interessantes em relação a este caráter intempestivo do real aparece durante o depoimento de Rita e Lúcia quando a mãe de Lúcia atravessa o quadro fílmico: sua presença irruptiva amplia a complexidade da relação entre as personagens, oferecendo nuances imprevistas àquela apresentação.


O casal homossexual divide o apartamento com uma mãe policial: uma pequena narrativa, cheia de meandros, possibilidades, promessas de conflitos e, ao mesmo tempo, absolutamente simples. E completa – na experiência total do filme - a recorrência, flagrante nos outros relatos, de uma presença subtrativa dos pais na vida das filhas.

Nos filmes de conversa de Coutinho, não sabemos se o que os personagens dizem é verdade ou mentira. Neste campo apenas podemos intuir. O que interessa, porém, é que se existe mentira deliberada – e certamente há – ela é sempre um aporte a uma verdade mais profunda. A mentira sempre revela, pelo menos, o esforço de encobrir algo. 

Em Edifício Master, muitos depoentes nos apresentam uma espécie de “mito fundacional” íntimo: narrativas auto-mitológicas que quase sempre se iniciam num passado de glórias e avançam rumo às dificuldades até o presente das filmagens. O que o filme deixa nítido, neste jogo, é como a chegada da câmera convida a uma performance. Não acessamos a pessoa, mas uma espécie de soma dela com sua imagem. O efeito câmera provoca no personagem um deslocamento, que põe a nu as forças e as fragilidades da auto-imagem. O síndico Sérgio, por exemplo, em seu depoimento, parece excessivamente orgulhoso de sua própria sabedoria e talento – o que imprime na tela um personagem provavelmente mais vaidoso do que sábio.


No depoimento de Renata ou dos integrantes da banda (João, Fábio e Bacon) flagramos uma leve hesitação, uma dessincronia entre a fala e a expressão, como se a verbalização de suas pretensões pessoais revelasse o pequeno absurdo em que repousam. Os personagens vão aos poucos, enquanto falam, perdendo, muito sutilmente, a fé em suas próprias palavras. A câmera observa este mal-estar, manifestado na frágil encenação de um excesso de segurança.



Quando o volume massivo de material filmado chega enfim à montagem, surgem novos problemas: não existe ali sugestão de onde cortar e colar. Até então Coutinho localizava eixos temáticos que lhe permitiam organizar os filmes em seqüências. Em Santa Marta – Duas semanas no morro (1987), Santo forte ou Babilônia 2000 (2000), os depoimentos mais ou menos tratavam de temas em comum como trabalho, espiritualidade, arte, vida e morte. Em Edifício Master, na ausência dessa possibilidade, optaram pela saída mais simples: elencar as conversas pela ordem da filmagem. O que se vê no filme finalizado é basicamente o percurso de entrevistas na semana de filmagem, com algumas “trapaças estratégicas”. Por exemplo: encontravam-se colados dois relatos de mulheres que diziam querer se atirar da janela; a montagem as afastou. 

A intervenção mais grave e mais interessante, porém, foi em relação ao último depoimento, que na filmagem era o de Henrique, cujo “My Way” oferecia ao filme um gran finale, e que de diversas formas incomodava a equipe de montagem. Cabra marcado para morrer (1984), por exemplo, que poderia ter terminado com a tomada da palavra por Elizabeth Teixeira, encerra-se numa cena de importância cronológica, a morte de João Virgínio, que garante um anti-clímax ao final. A decisão enfim é tomada, segundo a montadora Jordana Berg, quando o amigo Eduardo Escorel diz que “se prevalecesse essa sequência, já imaginava o público do Festival de Brasília em pé, aos prantos, ovacionando a obra” (OHATA, 2013, p. 335). Foi suficiente. A equipe considera que Edifício Master não se presta a estes efeitos. Ser aplaudido num festival de cinema era para Coutinho um atestado de mediocridade. A explosão de Henrique é então deslocada para o meio e o filme conclui com a serenidade do depoimento de Fabiana. O filme adquiria desta forma a respiração que lhe era fundamental. Este gesto de generosidade aos seus personagens – esta recusa a golpes baixos - é absolutamente incomum.



O filme se estrutura sobre dois regimes de imagem: o “plano cheio” com a figura humana e o “plano vazio” de quartos, corredores e janelas, cujo silêncio carrega pequenas narrativas sobre os moradores. Aproximamo-nos, por outras nuances, do universo dos personagens nessa solitária devassagem de suas intimidades. Estas micro-narrativas espaciais carregam às vezes uma autonomia e espontaneidade fascinantes, como no episódio do gato e do menino no corredor, que compreende todo um arco dramático (a saída do elevador, a queda da chave, a batida na porta errada, a devolução do gato a um dono encoberto pelo ponto cego da câmera), cheio de tensões e alívios.


Edifício Master é pontuado também pela presença do canto, algo já esboçado nos filmes anteriores e que assumirá a função central, alguns filmes depois, em As canções (2011). Muitas são as passagens em que os entrevistados cantam - ou apresentam um talento artístico - e o filme registra isto como uma das mais potentes formas de expressão intima. Coutinho sustenta que uma forma de religação se estabelece quando, dentro de uma comunidade lingüística, uma pessoa canta e outra ouve. 

A escolha do edifício, localizado a duas quadras da praia de Copacabana, se deu, antes de tudo, por ser um prédio comum, igual a muitos outros da vizinhança. Cheio de histórias simples, mas vazio de grandes feitos, datas e nomes célebres. Interessava desde o princípio o relato de pessoas comuns e seu cotidiano. E mesmo estando tão perto da praia, não existe no filme o menor vislumbre da natureza. Edifício Master oferece uma experiência claustrofóbica. Este sufocamento formal é quase a manifestação imagética do emparedamento de alguns personagens. Quando a perspectiva sai do prédio, atravessando as janelas, ela esbarra no prédio em frente: uma massa arquitetônica opaca.



Alguns depoentes relatam suas dificuldades no convívio com as vozes que, da vizinhança, invadem o espaço doméstico através dos vãos das janelas. A sociofobia e a invasão da privacidade são conseqüências psíquicas da precarização da vida nos amontoados urbanos, do qual o Master é um exemplar. 

Nos anos seguintes ao lançamento de Edifício Master, a classe média ocupará pouco a pouco o protagonismo no cinema brasileiro. Por outro lado, em ficções recentes como O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), Casa grande (Felipe Barbosa, 2014) e Que horas ela volta? percebemos que alguma coisa alcançada no Master vai deixando de ser buscada. Trata-se aqui, em primeiro lugar, de um deslocamento da classe média baixa para a alta - deslocamento também justificado pela história econômica recente do país e sua forma particular de desenvolvimento. Edifício Master apresenta a classe média antes da era Lula. Com a ascensão do PT ao poder executivo federal, esta classe muda muito. Mudou com Lula e mudou de novo com Dilma. E àquela classe média de 2001, Coutinho oferece no seu filme um retrato preciso e fascinante. O registro de um tempo, por mais que esta época não esteja diretamente implicada no texto do filme: em momento algum se fala, no Master, daquela conjuntura, mas ela se faz presente nas vozes e discursos.

Numa mesa-redonda da Revista Contracampo, em 2010 - Cinema falado sobre o cinema brasileiro - os debatedores apontavam justamente que uma das virtudes do cinema nacional – ou de qualquer cinematografia pobre - era sempre oferecer um registro de seu tempo. Em determinado momento dizem: 
Tatiana Monassa: E eu acho que se, daqui a 50 anos, as pessoas quiserem ver, numa ficção, como eram as cidades hoje no Brasil, elas não vão poder. O aspecto “documental” inerente ao cinema está sendo sistematicamente sabotado. 
Luiz Carlos Oliveira Jr: As pessoas vão ver o retrato dos artistas e cineastas: eles estavam trancados no quarto. Logo, não há as ruas, há imagens projetadas, uma abstração. (CINEMA FALADO, Parte 1: O consenso / “cinema de qualidade” / filmes de conceito. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/96/artcinemafalado1.htm. Acesso em: 16/11/2016)
O Brasil, nestes filmes, é filtrado por uma espécie de poesia de gaveta que oferece uma obstrução entre o olhar e o real. O estilo concebido como obstáculo. Coutinho procura dissolver isso: sua presença, sua fala e a possibilidade sedutora de travar um direcionamento mais localizado aparecem sempre em segundo plano. Quando aparecem.

Os discursos de denúncia ao monstro da classe média - da maneira como é desenhada pelas ficções brasileiras citadas acima - esbarram na espessura do real. Coutinho nos mostrou que este monstro também é belo. Existem beleza e graça nesses personagens e na maneira como eles narram. Em Edifício Master, também, acessamos um objeto extremamente complexo que escapa a todo instante à categorização sociológica de “classe média” (por mais que, num exercício de abstração, como o deste artigo, possamos capturar e reconhecer suas características). Quando Coutinho apresenta o filme, na ocasião de seu lançamento dizendo “este não é um filme sobre a classe média” não se trata apenas da blague de um artista. O contato que o filme estabelece é, acima de tudo, pessoa a pessoa, e com o que cada uma nos oferece. E isto põe tudo em crise. 

Um dos relatos mais reveladores e mais problemáticos, neste sentido, é o do porteiro-chefe Luiz. Sua originalidade individual e a tamanha adesão à sua função social são de uma absurda simultaneidade, quando, nos seus apelos espirituais, chama Deus de patrão.


Reconhecemos, por outro lado, nas ficções contemporâneas a influência de algumas escolas de desdramatização do cinema europeu e asiático, neste esforço de fazer o brasileiro murmurar nos filmes. Em longas ou em curtas metragens premiados em festivais – como, por exemplo, os curitibanos Para minha amada morta (Aly Muritiba, 2015) e A casa sem separação (Nathália Tereza, 2015) - os personagens parecem artificialmente introspectivos. Temos uma grande dificuldade em reconhecer o Brasil e os brasileiros no que estes filmes levam às telas. Suas virtudes secretas - vulgaridade, inteligência, humor, tempero - são estímulos encontrados por Coutinho. Nosso cinema de ficção, de alguma forma, parou de buscar tais valores: vemos agora personagens frios, inseridos em uma narrativa fria, falando muito baixo, sempre muito sérios e compenetrados. Trata-se de uma traição em primeiro grau do pacto ontológico que o cinema estabelece com a realidade. Em Edifício Master, novamente, só interessa o real. São outros os valores e outras as energias convocadas. Muito mais provocantes.

O que pesa no exercício de alteridade a que somos convocados pelo filme, é o encontro com alguém que talvez sustente o oposto de nossas convicções, e que, a princípio, nos incomode profundamente. Por exemplo, pode incomodar, de um ponto de vista ideológico, a americanofilia de alguns personagens - marca reconhecível na classe média brasileira. Trata-se de um verdadeiro fascínio pelo american dream. Isto é muito sério na narrativa de Henrique, por exemplo, ou na de Daniela que compõe seus versos em inglês. Em Opian dreams escreve: 
Opian dreams / Fields so green / Bright mind / Bright future / If they’ve ever reach her / Let her become a sculpture / Or free her / From third world culture (Sonhos de ópio / Campos tão verdes / Mente brilhante / Futuro brilhante / Se a alcançarem / A tornem uma escultura / Ou a libertem / Da cultura de terceiro mundo).
Causa mal-estar e, ao mesmo tempo, desperta o interesse por saber como a pessoa sustenta suas ideias.


Com os preconceitos emergem também algumas verdades importantes sobre os indivíduos. Por exemplo, quando Esther diz chorando: “(o assaltante) um rapaz bonito. Branco, bem vestido” interessa a contradição exposta neste segmento, ela é reveladora do ser humano num estado bruto de sinceridade. Uma das personagens que mais fascinam é também a que mais incomoda do ponto de vista político-ideológico: Maria Pia, a espanhola empregada doméstica que sustenta um posicionamento agressivo em relação à pobreza. O espectador é provocado a querer saber quem é essa pessoa e qual é a sua história. Quando coloca, muito maliciosamente, suas idéias a respeito dos pobres, ouvimos algo raro: a voz de um outro que a priori não nos interessa, mas que o cinema de alguma forma, no ato de escancarar as janelas, nos obriga a ouvir. Para Coutinho trata-se de algo essencial: o outro falando de si, daquilo que acredita e pensa, contando a sua história. E o outro é sempre uma oposição ao mesmo.



O tipo de interesse que estes episódios despertam nasce de um dispositivo absolutamente simples que guarda, na visão de Coutinho, algo de essencialmente estético e cinematográfico: o compromisso da arte é com o horror e a beleza do mundo. Por mais que, na superfície, possamos pensar na lógica do reality show, em profundidade o cinema de Coutinho entrega o exato oposto. O que vale aqui é a presença bruta, incorporando as máscaras, a mentira, a auto-ficção, fábulas e delírios de cada um dos depoentes na apresentação que fazem de si. Acessamos um personagem cuja beleza única, deriva de sua total complexidade. 

Vendo, por exemplo, Que horas ela volta? notamos diversos a priori discursivos, reciclados da tradição teledramatúrgica, que nos fazem pensar o quanto hoje seria impossível, num filme em que figuram patroa e empregada, que a patroa seja apresentada como um ser humano. Ela precisa, para a eficácia da mensagem, ser reduzida a uma caricatura metafísica, uma encarnação do mal, e todos os seus gestos precisam ser ridículos para que o espectador seja convidado a rir. Um posicionamento muito cômodo em relação àquilo que o personagem representa. Quando se extrai a complexidade do personagem, tornando-o completamente equivocado aos olhos da platéia, eliminam-se as potências políticas do reconhecimento. Um personagem complexo, que mesmo quando perverso apresenta alguns traços de bondade, beleza ou graça, rompe um distanciamento confortável. Não se trataria mais de show de horrores: todos, inclusive cineasta e espectador, são implicados. Em Que horas ela volta? temos um esquema (a empregada, a patroa) em que cada uma precisa ocupar o seu nicho na mais absoluta clareza. A realidade, mesmo nos filmes, nunca se reduz a uma categorização sumária. Ela é um organismo que permite, no exemplo de Edifício Master, que uma empregada doméstica – contra toda conceitualização - sustente um posicionamento absolutamente reacionário.

Dona Bárbara em Que horas ela volta? (2015)

A opção pelo show de horrores visa um mal estar esvaziado. Farsa assumida como verdade em Que horas ela volta?. A realidade mesmo permanece em outros lugares: nas pessoas e em suas vozes, nas ruas e em seus ruídos. Coisas que o cinema sempre soube nos mostrar. Neste sentido, é sempre mais inquietante e perigoso desenvolver estratégias para diminuir os abismos e os muros que o espectador tende a estabelecer com a realidade representada. Quando a dramaturgia nasce de uma observação delicada ela, invariavelmente, se enriquece. O real é essencialmente contraditório e o cinema pode nos revelar suas nuances.

Seguindo esta lógica, Edifício Master apresenta um episódio quase didático: a terceira depoente, Maria do Céu, fala de um passado permissivo do edifício. Com contagiante alegria levanta e gesticula. Quando fala das melhorias recentes no edifício, de seu asseio moral, a atitude se torna subitamente grave. Testemunhamos a morte do prazer: toda aquela energia é subitamente castrada e com a chegada da civilização no relato vem também esta máscara triste da seriedade.


Trata-se aqui de uma pedagogia da moral hipócrita brasileira. Em todo o seu horror e graça.

Essa tarde lhe botamos fogo




Por Camille Nevers

Travolta et moi. Digamos que há filmes que complicam a vida, e aqueles que nos simplificam a existência. Caro diario, ou Travolta et moi, esses dois filmes que avançam cada um da sua forma, nós os percorremos um pouco da mesma maneira [1]: com a uma sensação nada fácil de descrever, de estar lá, muito simplesmente. Quando Moretti deixa o guidão de sua vespa no ritmo da canção de Khaled, ou quando explode White Riot de The Clash em contraponto à melopeia de Christine perdida sobre o gelo, é enfim a mesma coisa — começamos a bater os pés. Estar em cadência, o espectador e o filme, os planos e a música, o movimento e a duração, Travolta et moi, o que pode ser mais simples? Sim, nada mais simples, bastaria apenas conhecer a música. Mas Nanni se desespera por não saber dançar e Christine afirma não saber patinar: há então outra coisa, que não deve nada ao “savoir faire”, que é exatamente o oposto. Não é um acaso se as trilhas sonoras de Travolta et moi e Caro diario são as mais excitantes que escutamos desde muito tempo (estranha coincidência, os mais belos filmes, esse ano, reservam à música e à dança um lugar essencial no seu “desenvolvimento”: J’ai pas sommeilHexagoneTrop de bonheur — e eu adicionaria: do mesmo modo que os mais decepcionantes, o que prova que não há milagres), e os dois filmes se correspondem através da evocação groupie de um modelo, modelo de dança e de cinema popular, John Travolta em Mazuy e Jennifer Beals em Moretti, de tal maneira que Christine reconhece seu ídolo em cada rapaz (Nicolas, Igor e até o aprendiz de confeiteiro) e Nanni em cada mulher (as dançarinas do baile ao ar livre). É que a música não é só o acompanhamento melódico da imagem e que a imagem não é só a ilustração rítmica, pela montagem, da música. Não há um movimento para se acompanhar, mas um movimento a ser criado a partir de várias linhas, a linha de uma narrativa muito simples (um passeio em Roma, um primeiro amor), a linha sinuosa de um corpo que se desloca no espaço (numa estrada, numa ilha, numa padaria, numa pista de gelo...), a linha melódica de uma canção, as linhas do diálogo, as linhas do cenário e outras ainda. Nesses entrelaçamentos de intensidades distintas, que se afastam e se coincidem, o movimento se insinua, se transforma, se desdobra, o tempo se acelera ou desacelera, faz uma pausa, recomeça, tudo isso que chamamos de mise en scène e que é a canalização (uma tubulação ou uma rede elétrica) de um determinado número de energias, de várias linhas de força — tudo isso libera uma certa tensão, mas de maneira que começamos a bater os pés, em cadência... Então, de nada adianta conhecer os passos, ser um entendedor em matéria de música, se é para impressionar, os connaisseurs são maçantes. Os grandes dançarinos percorrem o mundo, eles nos convidam a segui-los passo a passo, e se mexem de tal forma que tudo ao redor deles começa a dançar, que as linhas vacilam e que um movimento se inventa no coração daquele no qual nos encontramos. O filme assim acarreta essa estranha sensação de estar lá, que é física tanto quanto psíquica, o corpo assim como o pensamento são apanhados por um mesmo elã, entram na dança. Quanto a isso, Patricia Mazuy e Nanni Moretti concordam certamente — ou seja, quanto ao essencial: Jennifer Beals e Pasolini, Travolta e Nietzsche, “ambos são dançarinos”. Travolta et moi. 

Nada menos abstrato e também nada menos natural (o filme não é experimental, não é naturalista) que essas linhas. Elas são, aliás, tão visíveis que a imagem é toda sulcada por elas. E, em primeiro lugar — uma pequena linha, uma dançarina —, um cordão no sapato de Christine. Uma linha de ônibus na saída do liceu. É lhe entregando o cordão que Nicolas, esse rapaz “bizarro” com longos cabelos loiros, marca um encontro com a jovem no dia seguinte. Uma história de aposta lançada a um amigo que deve conquistar a terceira, não, a quarta garota que subiria no ônibus — Christine. Uma aposta que teria a ousadia de uma provocação, de uma bravata, desde o início, do roteiro que resolveria nos alertar: primo, que podemos fazer uma história com qualquer coisa e com qualquer um, só importa o que fazemos, a forma de tratar (bem, mal) esse “o que” e esse “quem”; segundo, que, em um filme, dois personagens não se encontram, fazemos com que eles se encontrem, eles são aproximados, então é melhor começar por aí e forçar o encontro; é em seguida que veremos se isso funciona ou não, se os golpes que se sucedem (Christine não poderá ir ao local combinado porque, golpe do azar, seus pais lhe confiaram a guarda da padaria da família para irem a um congresso de confeitaria, em Vichy... o azares se acumularão), se eles se assemelham à vida, seus infortúnios, e ao amor. A partir daí, Travolta et moi nos fará passear através de dois espaços em Chalôns-sur-Marne, o lugar mais vertical da padaria, depois aquele da pista de patinação, mais horizontal. As linhas estão por todos os lugares, as barras da escadaria, as grelhas das bandejas da padaria, as linhas e as faixas coloridas nas paredes, os neons, toda uma arquitetura com ângulos retos, rígidos no espaço da padaria, enquanto que na pista de patinação as linhas são mais curvas. Um é o lugar “quente”, o forno, o espaço reduzido, a família, a clientela frequente, a única música do Bee Gees, o outro “frio”, o gelo, o espaço gigantesco, o metal da estátua, as músicas que se sucedem bruscamente sem unidade de “gênero” (mas sim de espírito, o do rock’n roll, mesmo em plena época do disco (1978), mesmo com Joe Dassin e os Jackson ao lado de Dylan, Nina Hagen, os Clash — é justamente essa junção que é o rock’n rol). Ambos são perigosos: pôr fogo, cair sobre o gelo. Então o filme poderia ser perfeitamente simétrico, com todas suas linhas e seus dois espaços complementares, porém, ele não o é completamente, nem completamente perfeito, nem completamente simétrico e é nesse “não completamente” que o filme se revela genial. Patricia Mazuy filma entre as linhas. A mise en scène se une aos interstícios, ela se interpõe, no sentido que a câmera circula sem cessar entre, ao menos, dois polos de energia que ela libera e conduz na sua sequência (entre Christine e seu pai, Christine e sua amiga, Christine e Nicolas, etc., ou Christine e Saturday Night Fever, a música, Travolta, o cartaz do filme). Um pouco como o disse sobre Moretti (e sim, ainda ele), Alain Philippon em um belo artigo do número de julho, Mazuy está sempre “entre”. E nesse título formidável, Travolta et moi, ela é o “et”, evidentemente. É porque ela ama os desvios, sejam desvios de conduta ou de linguagem, os de ritmo, os de gosto e os cantos afastados, tudo o que precipita o movimento onde nós não o esperávamos, para impelir os limites, encontrar as linhas de fuga: eis o melhor ângulo, um ângulo de ataque, selvagem, para captar as intermitências da adolescência. Sem psicologia, sem interpretação, sociológica, metafórica ou outra, não se trata disso. Somente um campo de intensidades para percorrer, um movimento coreográfico para descobrir, um vai-e-vem ininterrupto (“Isso vai e volta”, “Bom dia, senhora, até logo, senhora”) que nos mergulha na expectativa sem nunca antecipar nada. É verdadeiramente surpreendente do princípio ao fim, funciona bravamente, no momento certo, e funciona. Do menor figurante aos papéis principais (os habitantes de Chalôns-sur-Marne), o jogo se harmoniza. E então Christine. Eu creio que não serei injusta com ninguém ao dizer que Leslie Azzoulai é a atriz adolescente mais surpreendente de todos os tempos. À mercê das palavras que se dissolvem, observem-na, escutem-na quando ela pronuncia — “Um tipo de lanche medíocre para retardados mentais...”, “Chocolate é chocolate!”, “Ela não é triste. Ela é feia” —, tente encontrar algo melhor... Em pouco mais de uma hora, Travolta et moi traça a curva imensa que vai da inocência à liberdade, da pura energia à loucura pura. Acendemos o rastilho e o impacto da explosão, o grito da garota, são de revolta. Ao longo de dois dias e duas noites, Christine não terá dormido, terá conhecido o amor, o real — o amor real, terá lutado por ele, terá percorrido o mundo, terá revolvido a terra e o céu. E o movimento de Christine é como aquele da terra, revolucionário. 

[1] Por mais que eu tenha tentado, esse artigo insistiu em começar por aí: a proximidade singular dos filmes de Patricia Mazuy e Nanni Moretti... Eu deixei que isso acontecesse. 

Ce soir on vous met le feu foi publicado originalmente na revista Cahiers du cinéma, n° 485, novembro de 1994. Tradução: Letícia Weber Jarek.

Link para o filme: https://mega.nz/#!FGBSFAia!4HQV0csi6dv4NLa9BaPTgaZx8UvU20khhaCoK5VG6yU
*Sem legendas, por enquanto.