O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

O rosto mais belo, o maior ator – Lillian Gish, Cary Grant





Por Raymond Bellour

Podemos ainda escrever sobre filmes, sobre realidades de imagens um tanto quanto precisas – se não for para relatórios sempre apressados – sem se submeter à prova tão simples quanto virtualmente constrangedora de verificações nas fitas ou nos DVDs? Escrever a partir de lembranças de impressões que não foram, ao menos nós o acreditamos, reconhecidas durante a projeção, mas que se interpõem um belo dia como sensações de ideias – hipóteses que não saberíamos como verificar, a tal ponto que começar a fazê-lo ou mesmo acabar por pensar demais nisso resultaria não somente a desencorajá-las, mas talvez em transformá-las até lhes corromper e volatizar.

A ideia que me surgiu procura conciliar duas paixões muito diferentes para que a razão seja suficiente, mas parece plausível que sejam iluminadas uma através da outra. Elas estão ligadas igualmente à arte da interpretação e ao mistério para sempre não resolvido da presença. Mas procurar recompô-las juntas permite entrever que essa arte e esse mistério consistem em duas maneiras opostas de se relacionar com o plano. Logo, de habitar esse tempo variável mas sempre crucial durante o qual, ao menos no cinema clássico, um valor de existência se entrega, podendo dar um pouco a impressão de se autonomizar sem, no entanto, deixar de depender estreitamente das unidades de tempo que o cercam. É pensando no plano que eu posso dizer, excessivamente, e tendo sem dúvida a paixão do plano como desculpa: o rosto mais belo, Lillian Gish, o maior ator, Cary Grant.

Se lembrar de Lillian Gish, é tentar deter no seu próprio interior o que seus inumeráveis closes de rosto fixam na imagem, através de sentimentos variados. O medo, tão frequentemente solicitado, a dor que se implanta, como em Lírio Partido, ou afetos de angústia suspendida, mais indefiníveis, em certos momentos de O Vento, mas também instantes de quase simples devaneio ou mesmo de um pensamento alegre, tal como o vemos em vários filmes, curtos e longos, de Griffith. Escrevendo a Jean Paulhan, seu amigo Jules Supervielle lhe confiava o desejo de escrever “textos tocantes”, como os autores anglo-saxões que “não temiam nos emocionar”. Ele acrescentava: “E é esse também, eu acho sem que ele nunca o tenha me dito, o desejo secreto de Michaux que adorava Lillian Gish, o rosto mais desconcertante de todos.” Como não ser tocado pela maneira com que tal desejo de emoção surge da escolha imprevista de um rosto.



Mas de onde vem esse desconcerto? Ele está ligado, primeiramente, à capacidade que tem esse rosto de estar na maior parte do tempo como congelado, em suspenso, o próprio princípio do close num tempo em que ainda não se fazia muito, assim como Hitchcock se vangloriará, “viajar o close”. Mas há na fixidez, níveis, que são uma das coisas mais difíceis de definir. O rosto de Lillian Gish parece fixo porque ele seria chamado de fora por uma força que o transpassa oferecendo ele mesmo, à beira da inocência. Mas ao mesmo tempo essa fixidez é ilusória, e esta é a razão que a torna tão viva. Ela é tramada por estremecimentos quase imperceptíveis, por minúsculas ondas de sensações e afetos indecidiveis que fazem de cada um desses closes uma espécie de paisagem onde se torna possível entrever sempre novas nuances (é isso que Balazs chamava “microfisionomia”, e que Deleuze e Guattari chamarão “traços de rostidade”). E isso é possível antes de tudo porque esses closes duram, ou melhor porque seu tempo de expressividade pura coincide com os limites do plano. De borda a borda, se quisermos. É, eu acho, a razão mais decisiva no efeito vibrante de massa sensível que esses traços tão delicadamente desenhados transmitem. Independentemente do que o filme nos conte, e apesar dos motivos convencionais que fazem acreditar em dramas cheios de sentido, não há mais, subitamente, desde que saibamos nos entregar, outro acontecimento.

Se O Vento é o mais perturbador dos filmes em que Lillian Gish figurou, é porque a matéria com a qual a imagem é frequentemente feita – essa areia que rodopia de tantas maneiras se insinuando por todos os lugares e que, sobretudo, se acumula e se apodera das vidraças opacas da cabana – parece se tornar o análogo de nuances de agitações que seus ímpetos provocam na superfície do rosto, por uma espécie de extraversão do olhar difundido na pele que o envolve. Ao ponto que esse rosto à mercê de sua desorientação e a areia arrastada pelo movimento irracional do vento parecem se tornar uma única substância. Também, nesse filme em que o número de closes não é talvez tão grande quanto gostaríamos de acreditar, Lillian Gish, quando é mostrada em planos mais abertos, planos médios ou em pé, na vida pavorosa que ela leva no interior da cabana, ou planos ainda mais abertos, quando ela dali sai, correndo o risco de afrontar o vento que preenche o deserto, Lillian Gish parece sempre filmada em close, como se todo seu corpo levasse consigo a alma e parecesse ali se fixar.

Daí a impressão estranha que decorre de filmes bem mais tardios onde a encontramos envelhecida, com a crueza que o cinema suscita ao fazer passar a vida tal como ela é. Mas essa crueza lhe é em parte poupada. Em O Mensageiro do Diabo ou em O Passado não perdoa, logo que ela se aproxima ou que a câmera vai em sua direção, é em close que ela sempre parece apresentada, com esse calmo estremecimento que a faz se dirigir diretamente à objetiva que a fixa e à qual ela se confia. Como se a memória acumulada de tudo o que ela viveu, para nós como para ela mesma, no cinema antigo, a protegesse e desse a sua aparência, no fim das contas banal, um esplendor de aparição.   



Lillian Gish é assim perturbadora, entre todas as atrizes, porque ela parece não atuar, movida pelo simples efeito de partículas de alma que a formam e a atravessam. Enquanto Cary Grant, ele, interpreta continuamente. Ele só sabe interpretar. Mas isso, ele o faz melhor que ninguém. Não que ele só tivesse mais talento ou genialidade que muitos outros. Mas porque, segundo um milagre inexplicável do qual os maiores autores de filmes souberam se aproveitar ao extremo, sua atuação revela-se, naturalmente, coincidindo com os tempos do plano. Cary Grant é o plano. Ele é o olho da montagem. Isso quer dizer que ele se mantém no quadro, incluindo quando ele é apresentado em close, de tal maneira que os seus movimentos de corpo e expressões do rosto parece talhar o plano em relação ao plano que se seguirá. Seu olho não para nunca, ele prepara o corte. E, fazendo isso, ele arranja também os cortes rítmicos mais ou menos perceptíveis no interior do plano. Mesmo se ele é apresentado de frente, algo de oblíquo, seja mesmo no rosto, seja na relação do rosto com o corpo ou de certa parte do corpo com outra, se torna uma correia de transmissão do movimento que chama o plano seguinte. Hitchcock não teria escolhido, finalmente, pendurar esse pequeno quadro cubista, que desconcerta tanto os policiais de Suspeita, para dar uma imagem da atuação de Cary Grant, da sua capacidade, de desencadear os planos um atrás do outro, de se manter simultaneamente em vários planos?

Essa capacidade que parece única, no que concerne o plano, faz de Cary Grant uma espécie de duplo do metteur en scène. Ao menos para aqueles que se compreendem ou aceitam duplos, com o qual ele realiza uma parte de vertigem. Hitckcock evidentemente, Hawks, McCarey, Cukor, mesmo Sternberg, uma vez. Cary Grant é inimaginável em Ford, no qual a montagem não admite nenhum intermediário. E se pensamos nos atores, vemos bem que nenhum desempenha tal trabalho de vigilância. Nem James Stewart, com quem Cary Grant compartilhou filmes e autores, mas cuja extraordinária vigilância é completamente dirigida ao interior dele mesmo que é a parte inalienável e dolorosa de cada um dos seus personagens. Nem Dana Andrews, cuja impassibilidade lendária serve tão bem à mise en scène, nós o vemos melhor nos filmes de Lang e Tourneur, mas tal qual um poder sem partilha, do qual ele é somente a superfície de deslocamento. Ao passo que Cary Grant manipula as facetas, essas facetas únicas do cinema que nós chamamos de planos. Haveria, noutro tempo do cinema, e a partir de um princípio intangível, Keaton que não ri para poder olhar seus planos, visto que ele é, deles, o geômetra.



Se pensarmos, Cary Grant tem um duplo feminino, em um modo aéreo, giratório. Menos precisa nos seus efeitos, menos sistemática, mais simplesmente bricalhona. Mas exercendo mesmo assim uma espécie de direito de olhar interno sobre o que ela realiza e que se desenrola em torno dela e a partir dela. Eu quero falar, certamente, de Katherine Hepburn. Milagre, nesse sentido, é Levada da breca. Pois esse filme não conta somente a história de um homem que vigia um cão por um motivo aberrante e de uma mulher que vigia esse homem para que, enfim, ele a prefira ao invés desse cão. É também a história de uma vigilância mútua da mise en scène da qual eles se tornam os responsáveis, como num espelho. E é a ocasião, também, de discernir como os closes, tão belos, que se detêm intermitentemente no rosto vaporoso de Katherine Hepburn são tão diferentes quanto o possível desses que se estreitam frente o rosto de Lillian Gish. Os primeiros, apesar da dilatação que se opera nas nuances do preto e branco, e de um indiscutível valor de captação, são dirigidos ao exterior, em direção ao parceiro, ao outro plano, à montagem. Ao passo que esses que se entregam ao rosto de Lillian Gish se estendem sobre o seu interior, como se eles procurassem se afundar numa espessura que eles não têm e que torna sua superfície ainda mais impregnante, entregue a si própria o tempo de uma breve eternidade.

Le plus beau visage, le plus grand acteur – Lillian Gish, Cary Grant foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 65, em maio de 2008. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

Nem medo nem pena (fragmento)



Por Jean Narboni

(...)

Muitos anos após esses filmes dos anos trinta, no outro polo de sua carreira, no dito segundo período de declínio dos anos sessenta, Naruse dirige Tormento (Midareru, 1964), um de seus últimos filmes. O cineasta taiwanês Edward Yang encontrou uma nova ocasião para professar a sua admiração por esse cineasta, atendo-se sobretudo à última cena. Ele destaca, com trinta anos de distância, um gesto em todos os pontos comparável àquele que descrevemos em Depois de Nossa Separação (Kimi to wakarete, 1933) e Três Irmãs de Coração Puro (Otome-gokoro sannin-shimai, 1935). Reiko, viúva de guerra há quinze anos e ainda jovem, encontra-se em uma aldeia montanhosa com seu cunhado, Koji, doze anos mais novo que ela. Ele lhe faz entender no começo do filme que a ama há muito tempo. Chocada de início, ela o mantém distante, o rejeita, mas deixa-se pouco a pouco ganhar pela emoção e enfim pelo amor, hesitando sem parar entre o que ela experimenta com o jovem e as lembranças do seu marido, ao que se adiciona o peso onipresente das convenções. No fim, durante a viagem que a leva definitivamente de volta à cidade de seus ancestrais e que o jovem rapaz quis fazer com ela, Reiko, aproveitando uma etapa na montanha, pede-o para partir. Koji, desesperado, fica bêbado em um albergue da aldeia e se afunda em plena noite, titubeante, em um bosque vizinho. Na manhã seguinte, Reiko vê da janela do seu quarto de albergue um grupo de aldeões que carregam um corpo sobre uma maca. Ela identifica Koji pelo anel que lhe deu como um sinal de adeus e que ele leva em sua mão direita, caída do pano que o cobre. Ela precipita-se para fora do albergue, começa a correr atrás dos aldeões, a câmera a acompanha depois a ultrapassa em seu movimento, mas o cortejo se distancia e desaparece na esquina de uma rua. Reiko, subitamente, deixa de correr e fica imóvel. O filme termina em um close de seu rosto sem expressão. Edward Yang descreve longamente essa passagem, fala de sua surpresa e admiração diante da parada brusca da corrida de Reiko e o corte que ocorre no close do rosto. É verdade que o momento, em sua brevidade, é surpreendente. Uma personagem se precipita e depois põe um fim à sua busca sem que nenhuma decisão consciente tenha presidido essa parada, sua imobilidade é como uma aquiescência do movimento da vida que continua, o qual neste instante confunde-se com aquele da separação, da perda e da morte. Edward Yang não hesita em afirmar que no momento em que escreve seu texto, em 1998, poucos cineastas seriam capazes de tal audácia. Para qualificar este fim emocionante de concisão e literalmente de contenção, ele emprega uma palavra que não esperamos, que é “generosidade”, e para definir o cinema de Naruse, ele conclui com a bela expressão “invencível estilo invisível”.

(...)

Extraído do livro Naruse - Les temps incertains, Paris: Cahiers du cinéma, 2006, pp. 126, 127. Tradução: Cauby Monteiro. 

As aventuras de Hajji Baba





Por Jacques Lourcelles


No cinema hollywoodiano do pós-guerra, a corrente dos filmes de aventuras orientais, adaptados de perto ou de longe das “Mil e Uma Noites”, foi quantitativamente pouco importante, mas era ilustrada por tendências variadas. Na Universal dos anos 40, essa corrente dá origem, por exemplo, a toda sorte de narrativas espetaculares para as crianças, em que a inovação recente da cor foi particularmente valorizada (cf. As Mil e uma Noites, John Rawlins, 1942, ou Ali Babá e os Quarenta Ladrões, Arthur Lubin, 1944). No fim dos anos 50, o conto oriental reencontra seu caráter fantástico, favorecido por efeitos especiais particularmente atraentes (Simbad e a Princesa, Nathan Juran, 1958). Situado entre esses dois períodos, As Aventuras de Hajji Baba representa uma tentativa quase única – pelo menos pela sua qualidade – de valorizar, em uma narrativa não fantástica, a dimensão adulta, elegante e discretamente erótica do conto oriental. Don Weis, naquele que é sem a menor dúvida o melhor filme da sua carreira, demonstrou um refinamento plástico, ou pura e simplesmente um refinamento, absolutamente extraordinários em que o aporte do “color consultant”, o célebre fotógrafo George Hoyningen-Huene (colaborador de Cukor em todos os seus filmes a cores, de Nasce Uma Estrela a A Vida Íntima de Quatro Mulheres) foi verdadeiramente determinante. O filme manifesta, de fato, uma exigência muito grande em todos os níveis: em seus cenários, de um luxo habilmente abstrato; em seus figurinos, fantasistas e multicoloridos, sempre de uma perfeita unidade de estilo; na beleza picante de suas intérpretes: as soberbas Elaine Stewart e Rosemarie Bowe. John Derek não está nada mal também, como um distante primo de Fabrice del Dongo. Com muita técnica e leveza, Don Weis faz o espectador respirar o ar da grande aventura, purificada de toda grandiloquência assim como de todas essas facilidades burlescas que são o mal do gênero. O meio sorriso do narrador acrescenta constantemente a nota irônica sem a qual uma obra desse gênero seria incompleta; uma certa desilusão é necessária àquele que conta a história como àquele que a escuta.



N.B. A crítica americana, tão raramente lúcida, ignorou, claro, este filme que ela deveria ter lisonjeado. Bosley Crowther, o crítico do “New York Times”, revelou seu obsceno mau gosto declarando que ele preferiria ter visto Bob Hope no papel de John Derek. O filme deve sua reputação à perspicácia de certos cinéfilos franceses, em particular os Mac-Mahonianos.

Les aventures de Hajji Baba
foi publicado no Dictionnaire du Cinéma: Les Films, Paris: Laffont, 1992, p. 102. Tradução: Cauby Monteiro.

O olho esquerdo e o olho direito





Por François Mars

Existem, para ver este filme, pelo menos dois pontos de vista possíveis.

Um seria, por exemplo, o de Robert Lachenay, que não vai nunca ao cinema sem levar no bolso um exemplar, agora bem desgastado, da “Psychopathia Sexualis”. Aqui estão alguns adendos que ele pode levar para seu célebre dicionário:

Hipoestesia: Hajji, que tem os ombros, mas também os longos cílios e os olhos aveludados de John Derek, proclama, desde a primeira sequência, que ele aceitaria todas as garotas bonitas – “se elas também me quiserem!” Efetivamente, todas as cenas de amor são inteiramente conduzidas por suas parceiras femininas. A Rainha das Amazonas o faz compreender, em termos tão pouco velados, como ela mesma , que sua vida depende de sua virilidade. “Eu buscarei minha força em ti” responde Hajji. Mais tarde, ele só decidirá falar de amor à bela princesa Fawzia quando, suspensos um e outro entre o céu e a terra, ele será incapaz de esboçar o menor abraço. Assim que liberto, ele nega precipitadamente suas ternas promessas, foge rapidamente, e é quase à força que ele é mandado de volta para conquistar sua namorada abusiva: ainda assim, para fazer isso, ele adota a aparência de um Santo Homem, que fez o voto de pobreza, silêncio e, é claro, de castidade.



Homossexualidade feminina: a tribo das guerreiras, ferrenhas inimigas do dito sexo forte. Virilização pelo travesti: a princesa Fawzia se veste de garoto – o que nos oferece, com Hajji, disfarçado ele mesmo de monge, uma cena de amor muito imprevista. Exibicionismo das vestes: as túnicas inverossímeis das amazonas, compreendidas entre o “burlesco” da Broadway, a Filha da Selva e A Coroa de Ferro; ou o pequeno conjunto persa de Elaine Stewart.

Não paremos em tão bom caminho; passemos à Necrofilia; o personagem de Amanda Blake, nova Antinéa, que amarra seus amantes debaixo de ravinas e os deixa apodrecer docemente. “Vocês me privaram da minha vingança”, diz ela, diante do cadáver do tirano, e seu olhar é ganancioso, ganancioso...

Sadismo enfim: as damas de companhia são jogadas em banhos fervilhantes por sua rabugenta senhora. Amarradas em camas macias, elas veem as plantas de seus pés serem delicadamente golpeadas. As belas escravas têm os tornozelos acorrentados a pesadas pranchas. Quanto a Elaine Stewart, ela também pagará por sua posição, a ondular sob seu abismo: “Piedade! – Nada de Piedade” responde uma de suas consortes; “eu te tratarei como tu me trataste!” E opa, um pulo no ar....

Podemos continuar assim longamente; mas passemos ao outro ponto de vista, aquele do amador de boa fé, que não se envergonha de semelhantes sutilezas e tem seu prazer em acompanhar um filme de aventura alerta, de bom gosto (ou melhor, do bom “mau gosto” das comics), de cores agradáveis, que não deixa de lembrar qualquer velho Fairbanks, agilmente modernizado; não encontramos
aliás nos créditos o nome do nosso velho amigo Don Weis, do qual não esquecemos o adorável I Love Melvin, e que, ingrato, nos abandona agora pelos televisores de outra frota.



Mas talvez os dois pontos de vista não sejam inconciliáveis? – se for verdade que no coração de todo porco, adormece um diretor.

L’œil gauche et l’œil droit foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma nº 81, março de 1958. Tradução: Cauby Monteiro.

Sobre cinema e história



Por Jean Luc-Godard

(Discurso feito por Jean-Luc Godard no recebimento do prêmio Adorno em Frankfurt, no dia 17 de setembro de 1995. Transcrição de Klaus Theweleit.)
As frases que seguirão já foram ditas, há muitos anos, em uma conversa com o senhor Serge Daney, na ocasião dos primeiros trabalhos relativos a "introdução à uma verdadeira história do cinema, a única, a verdadeira."

Era um lugar, o cinema, era um território. Se eu tenho uma lembrança das projeções da avenida de Messine, é porque era um lugar sem história alguma, nem mesmo a descoberta de um novo continente, porque o próprio sentimento desta descoberta era algo de profundamente desconhecido.

Eu conhecia Spengler e Husserl, mas não Murnau, e ninguém me havia dito que eles moravam no mesmo país que Bismarck e Novalis. Eu conhecia Lulu, mas era aquela de Alban Berg, não a de Canary Murder Case. E eu não sabia que os sons de Sacre du printemps eram contemporâneos às imagens de Vampires.

Nunca tínhamos visto isso. Um mundo que não tinha história e que, entretanto, passava seu tempo a contá-la. E sobretudo, fora da leitura. Porque a escrita, desde Rimbaud e Mallarmé, era o terror. A página branca era inimiga. Por que continuar escrevendo depois de Joyce e das elegias de Duino? Enquanto que, face à tela branca, quando a luz começava a abaixar, se passava em nós o exato contrário do que tinha conduzido Nicolas de Stael ao suicídio. Uma segunda luz tomava forma na escuridão. A tela não era mais um obstáculo, mas um amigo, a camisa de Verônica e do Samaritano.

Nós descobríamos o direito de fazer nossos deveres sem precisar portanto ir a aula. Houve então um sentimento absoluto de liberdade. Um homem, uma mulher, uma estrada, e era uma viagem à Itália. Substitua o Jaguar por uma xícara de café, e Ozu substitui Rossellini. Mesmo se nós não sabíamos fazer filmes, nós sabíamos que nós podíamos fazê-los e esse fato nos dava um pouco da dignidade que as duas guerras mundiais nos tinham roubado.

Eu creio no homem à medida em que ele produz obras. Os homens devem ser respeitados porque eles produzem obras, que seja um buquê de flores ou patinetes, um concerto ou equações de quinto grau. Deste ponto de vista, eu não sou um humanista. François Truffaut disse : "política dos autores". Mas hoje em dia, nós não guardamos nada mais do que a palavra “autor”, quando a palavra digna de interesse era a anterior. Quem se lembra do incolor xerife Marshall, mas nenhum habitante de Berlim esqueceu a ponte de mesmo nome, quer dizer o ato, quer dizer pelo o que seu Goethe gostaria que o mundo começasse.

Primeiro as obras, nos ensinou Langlois, depois os homens. E se você respeita uns, você respeitará os outros. Não o inverso. Nós vemos nesta pobre Yugoslavia. Eles são bons, eles são maus? Começamos a perder seu latim, como dizemos em francês. Passamos o tempo a nos lamentar do horror e da miséria, com sinceridade, se somos um simples cidadão, com astúcia, se fazemos parte do governo, e nos esquecemos da guerra, do ato, da paz, o ato dela também; e o mundo está invertido, e são as marionetes que jogam com Wilhelm Meister e a dura Microsoft com o destino dos povos.

Então, eu diria provavelmente: há algo que existiu, e que era relativamente único: o cinema. E como os filhos únicos em geral, ele acabou mal. Algo assim deve ter se passado, há mais ou menos três mil anos, no desaparecimento de Micenas, ou de um certo tipo de animal ou de vegetação há centenas de milhões de anos atrás.

Houve alguma coisa, uma imagem, uma imagem que era apenas um movimento - não uma imagem como vemos na televisão, que não mostra nada mais que a chegada e a partida, jamais o que vai de um pro outro, e o que volta do outro pro um -, e esse movimento, esse ato, essa imagem, nos dizia alguma coisa que não quisemos escutar. Preferimos falar por cima - como nesses terríveis comentários esportivos. Deste ponto de vista, se vocês aceitam, a obra, para mim, é a criança. E o homem, é o adulto, são os pais. E com o cinema, havia alguma coisa: a criança mostrava aos pais o que eles eram, e ao mesmo tempo falava o que ela era. E os pais não quiseram saber de nada. Eles tiveram medo. E Hitler se pôs a gritar e a punir, e Roosevelt propôs um "New Deal", porque se tornava perigoso, não contar histórias, mas ver a história.

Mas para vê-la, ainda é preciso mostrar, e fazer o que Lévi-Strauss, Einstein ou Copérnico fizeram. Se dizemos que Copérnico, por volta de 1540, trouxe essa ideia de que o sol parou de rodar em volta da terra, e se dizemos que alguns anos próximos, Vesale publicou De Corporis Humanis Fabrica, então temos Copérnico em um livro, e no outro Vesale. Em um livro o universo é infinitamente grande. E no outro, o interior do corpo humano, infinitamente pequeno. E depois, quatrocentos anos mais tarde, temos François Jacob, o biologista, que escreve: no mesmo ano Copérnico e Vesale… e bem, aqui, ele n
ão faz biologia, Jacob faz cinema. E a história não é em nenhum outro lugar senão aqui. Ela é aproximação. Ela é montagem.

Parecido, quando Cocteau diz: se Rimbaud tivesse vivido, ele morreria no mesmo ano em que o marechal Pétain. Então, temos o retrato do jovem Rimbaud, e do velho marechal francês em 1948, e nós vamos olhá-los de um ao outro, e aqui, nós temos uma história, nós temos a história, essa de nosso terrível Hegel, se você quiser, ou essa de nosso querido Benjamin. Não uma história falada, mas vista, et quando Marx "gaguejava", se sua forma de falar tem um peso, é porque ela já é uma imagem, e que Niépce e Nadar haviam lançado suas primeiras fotos.

Por essas razões, eu intitulei o primeiro capítulo de minha obra sobre o cinema: "todas as histórias", e depois eu continuei com: "uma história única", e depois: "só o cinema" - o que quer dizer: somente o cinema pode fazer isso, mas isso também quer dizer: o cinema estava sozinho face à tempestade de palavras dos adultos, tão sozinho que…jamais Jean Vigo recebeu o prêmio Heidegger, e portanto, todos esses "Unterweg", ele os havia bem percorrido.



Minha ideia, como vocês podem adivinhar, super ambiciosa, que Michelet não teve, mesmo quando ele fazia sua grandiosa História da França - essa Sistina da história - minha ideia é que a história é sozinha, ela está longe do homem. Fernand Braudel diz algo desse gênero quando ele diz que existem duas histórias: uma história perto, que corre até nós com passos precipitados – e é a televisão ou o Spiegel, e logo Goya e Matisse nos CD-Rom’s (Rom para os romanos, sem dúvida, pax romana, pax americana), e uma história longe que nos acompanha a passos lentos, e é Kafka, é Pina Bausch, é Fassbinder, para falar dos maiores artistas de vocês.

Existe esta coisa que fica estritamente no interior do cinema, crisálida bloqueada que jamais se tornará borboleta - nós o sabemos agora - essa coisa que é a montagem. Minha ideia, de médico do interior ou de jardineiro do cinema, era que um dos objetivos do cinema era inventar ou descobrir a montagem, tal como eu vos falo de maneira simples com os exemplos de Copérnico e Vesale, e que deveríamos ensinar nas escolas - nós podemos sempre sonhar, não é? Por exemplo, qual é a diferença entre dois antigos presidentes da República Francesa, Charles de Gaulle e François Mitterrand? Eu diria: se ele quer mostrar a diferença como instrumento científico, o cinema dirá isso: são dois franceses, que tinham um território, e teve uma guerra, e invasores. A um dado momento, um deles, François Mitterrand, foi feito prisioneiro, e começou sua ascensão ao poder saindo e voltando da França. O outro, Charles de Gaulle, ao contrário, se retirou de seu país, a França, e começou o combate no estrangeiro. Eis a diferença, eis a montagem, eis um momento da história, eis um momento de cinema.

Nós usamos muito a palavra montagem. Nós dizemos hoje: a montagem em Welles, em Eisenstein, ou ao contrário, a ausência de montagem em Rossellini. Ah! Os imbecis, diria Bernanos. A montagem, o cinema jamais a encontrou, a Tobis e a RCA não nos deixaram tempo, e algo se perdeu no caminho, sua linguagem, e é a língua, as palavras que levaram a melhor, com certeza não a língua nem as palavras das crianças de Jeronime, nem de Narciso e Goldmund. É a evidência quando assistimos a apresentadora que vos fala as notícias do dia ou da noite, e que não te fala nem de nós, nem dela, nem dos outros. Se o cinema tivesse tido a oportunidade de crescer e de se tornar adulto em vez de permanecer uma criança gerida - para empregar uma palavra na moda na França - uma criança gerida pelos adultos, esse desastre humano que é a apresentadora falaria de suas famosas notícias como de Copérnico e de Vesale, e isso seria mais claro, e ela seria nossa grande irmã.

Sim, o que procurava a montagem? Griffith, codificando o close, não procurava se aproximar de uma atriz, como quer a lenda. Ele procurava uma aproximação de algo longe com algo perto, sobretudo no tempo. Eisenstein achou o ângulo, precedido por Greco e Degas. Quando assistimos as famosas imagens dos três leões em Outubro, se os três leões fazem um efeito de montagem, é porque existem três ângulos de ponto de vista, não porque existe montagem. Os alemães desconheciam a montagem, mas eles a procuravam à sua maneira, partindo primeiramente do cenário, da luz, de uma filosofia do mundo, vocês dizem "Aufklärung", eu acho. Todos procuravam algo que nós não podemos dizer hoje o que é, que não havia jamais existido em outro lugar antes, e que estava acontecendo, se podemos dizer, de comentário. Era a imensa força do cinema mudo. Podemos ainda imaginar a força que era filmar Molière sem som? Mesmo o notável Tartufo de Beno Besson não tem a grandeza demoníaca de Jannings filmado por Murnau. E depois de tudo, será que as estrelas que falam para os físicos os segredos do universo não empregam elas também imagens tão eloquentes e profundas como aquelas do modesto bonde de Aurora?

Existe um grande combate entre os olhos e a língua. Os olhos são os povos. A língua são os governos. Quando o governo fala sobre o que ele vê e age em consequência, é bom, porque é a linguagem do médico. Ele diz: é uma sinusite, e faz ato de montagem, de aproximação. Com o cinema, existiu um sinal de que as coisas eram possíveis se nos esforçássemos em chamá-las pelo nome, como dizemos em francês. Que o cinema, sobretudo, era uma nova forma - que nós nunca tinhamos visto - de chamar as coisas pelo seu nome, uma maneira de ver os pequenos e os grandes eventos que foi imediatamente popular, e que também o mundo inteiro pedia. Em suma, o cinema era feito para pensar, e portanto para curar as feridas.

Para mim, tudo isso se esclareceu lentamente à partir do momento em que percebi que eu estava acompanhado, desde meu nascimento, por essa segunda história que falava Braudel, essa que nos acompanha à passos lentos. E que eu percebi, depois de alguns bons filmes, eu e outros, que nós não havíamos mostrado os campos de concentração. Basicamente, nós havíamos falado, mas não havíamos mostrado nada. Eu me interessei por este aspecto das coisas sem dúvida por causa do meu passado, de minha classe social, de minha culpabilidade, de meu pai, que me havia transmitido seu amor pela Alemanha de Siegfried e Limousin. Me pareceu que com o cinema dito liberado, a primeira das coisas a mostrar deveria ter sido os campos, no sentido de como mostramos, no começo, o homem com o fuzil cronofotográfico de Marey, coisas como isso. Mas nós não quisemos ver. Nós preferimos falar, dizer: isso, nunca mais. E depois tudo recomeçou, cada vez mais forte, se podemos dizer, Vietnã, Argélia - não acabou - Biafra, Afeganistão, Palestina. Eu percebi que a palavra "muçulmano" havia sido inventada por sei lá qual Kapo de Dachau ou Mathausen para designar um judeu à partir do momento em que ele não havia mais forças. E a história nos acompanha realmente lentamente, porque precisa-se de cinquenta anos para encontrarmos esse judeu em uniforme muçulmano nas ruínas de Sarajevo e Srebrenica.

O cinema assistiu menos o mundo do que o mundo que o assistia. E quando a televisão chegou, ela se colocou rapidamente no lugar do mundo, e ela não o assistiu mais, quer dizer, em francês, assistir duas vezes. E quando nós assistimos a televisão, nós não vemos que a televisão nos assiste, quer dizer, que ela nos assiste duas vezes. E a imprensa não ajudou em nada, compartilhando o poder como ela pode. Então, quando Ingrid Bergman esconde uma chave em sua mão, nós não vemos mais que esta chave nos assiste. E isso aconteceu em um momento em que nós não quisemos mais ver o mundo no estado em que os campos o haviam deixado.

O cinema, ou quer dizer, o cinematógrafo, desapareceu neste momento. Ele desapareceu porque ele havia anunciado os campos. Igual Viena e sua música haviam anunciado a Primeira Guerra mundial, o cinematógrafo havia previsto a Segunda. Mas Charlie Chaplin, no entanto popularmente mais conhecido que Napoleão e Ghandi, Chaplin, que todo mundo acreditava, quando ele fez O Ditador, nós não acreditamos mais. Renoir, quando descreveu a grande ilusão ou a regra do jogo, ninguém prestou a menor atenção. E ainda, antes da noite de cristal, qual crítico de cinema notou que o primeiro filme de gangsters era obra de dois judeus alemães, um americano, Ben Hecht, e o outro austríaco, Sternberg?

Les signes parmi nous (Os signos entre nós). Tal é o título do romance de Charles-Ferdinand Ramuz. O cinema não foi nada mais do que um vendedor ambulante que nos fornecia esses sinais baratos. Mas nós não estamos mais no tempo desses vendedores. Agora o verdadeiro combate começa: do dinheiro e do sangue. Foi o vosso Spengler que o escreveu, há quase cem anos. E cada um festeja à sua maneira esse centenário horrível. Mas então, o que fazer? Escutemos este filósofo, o único à apoiar Till Eulenspiegel, quero dizer Dany le Rouge, en 1968, e que gritava, eternamente feliz: infelizmente, à frente!

À propos de cinéma et d’histoire foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 18, primavera de 1996. Tradução: André Schaefer.

James L. Brooks, o segredo magnífico






Por Murielle Joudet

“Todos nossos dias são tão pouco aproveitáveis quando eles passam, que é maravilhoso que possamos ter adquirido um pouco daquilo que chamamos de sabedoria, poesia, virtude. Não há um dia exato do calendário em que tenhamos recebido isso.”
Ralph Waldo Emerson, “Experience

“Estou convencido de que as palavras importam, de que algum dia desses iremos reencontrá-las todas novamente.”
Brice Parain, Joseph

Um cinema intraduzível

Há uma experiência que todos compartilham e que consiste em, quando em viagem, ligar a televisão em outro país que não o seu. Dominando ou não a língua desse país, há uma espécie de barreira intransponível entre nós e esses programas. Algo relacionado ao fato de que não estamos familiarizados com eles, que esses programas se relacionam intimamente com o cotidiano de seu público enquanto nós somos apenas espectadores de uma única vez, quase voyeurs, firmemente mantidos do lado de fora dessa familiaridade. Isso faz parte, para nós, do folclore cuja gramática compreendemos por comparação: sabemos reconhecer um jornal televisivo, mas dos cenários aos jornalistas (e passando pelos assuntos abordados), tudo nos parece um pouco folclórico, levemente absurdo, definitivamente intraduzível. O que seria um cineasta que exportaria essa estranheza, essa “intraduzibilidade” para o cinema? Isso nos dá, para mim, os seis filmes de James L. Brooks.

Em 2010, lembro-me de me demorar em frente a um pôster de Como você sabe (How Do You Know) afixado numa coluna, analisando esse título que me interpelava no meio da rua mas cuja ausência de ponto de interrogação denotava um tipo de serenidade desesperada – havia ali algo além da promessa da comédia mainstream, alguma coisa mais estranha e intrigante. Resolvi ir assistir ao filme, eu nem sabia quem era James L. Brooks. Conhecendo minha obsessão pelas teorias do cinema de Stanley Cavell, um amigo me dissera: “Vá vê-lo, é feito para você”. Duas semanas após seu lançamento o filme já não estava mais nas salas. Lembrei-me de um primeiro contato com James L. Brooks, anterior a esse: quando pequena, eu tinha ido assistir a Spanglish (Espanglês, 2004) com meu pai. Só me resta a lembrança da bilheteria e do passeio familiar, em que o filme era somente um pretexto para passar um momento juntos. Ninguém se importava com o nome do realizador: havia apenas um?

Depois de ter sido fascinada por How Do You Know, finalmente resgatado em DVD, eu vi seus outros filmes. Em cada vez eu ficava na defensiva, receosa de que a qualquer momento o filme pudesse resvalar naquele tipo de distanciamento televisivo de que já falei, algo que não fosse dirigido a mim: o aspecto de seus filmes dá a impressão de que o autor jamais revela sua presença e sua assinatura, de que há apenas um savoir-faire industrial. Descobri mais tarde que o aspecto ingrato de seu cinema era a sua força, o que o tornava precioso: sua maneira tão própria de se assegurar uma certa inocência estética que, ao longo de sua filmografia, vai mantê-lo sempre distante das modas, das tendências, da pretensa sofisticação do cinema de autor globalizado com sua luz supertrabalhada e uniforme. Uma maneira de nos dizer: a integridade de um cineasta se encontra além dos sinais superficiais de riqueza.

Esse cinema, que eu chamo de intraduzível, se opõe diretamente à ideia de “cinema atrativo”, esse que marca nossa época de eventos cinematográficos frequentemente bastante anódinos. O que se torna o preço da cinefilia, a saber, uma certa capacidade de imaginar um filme que será lançado a partir de poucos elementos (uma imagem, uma sinopse, o anúncio de uma filmagem) e que já se tornou completamente histérico, de modo que os filmes nunca são tão bons quanto quando ainda não os vimos. Muito frequentemente os devaneios cinéfilos são atropelados pela idiotice do filme, a menos que ele contraponha nossos devaneios por outros, frustrando nossas fantasias. A esses filmes que se vendem antes mesmo de se mostrar, o cinema local e inatual de Brooks opõe uma certa indiferença quanto à sedução. Para continuar na metáfora turística, ele não tem nada de atrativo, ele não vai buscar seus visitantes, como uma cidade idiossincrática indiferente à nossa visita. Sua maior generosidade reside em sua capacidade de ser trabalhado somente por si, de nos dar as costas. No cinema como turismo de massa, alguns cineastas, como James L. Brooks, ainda resistem ao cultivar cuidadosamente o segredo de sua beleza.

Cinema e televisão


É importante lembrar que James L. Brooks é primeiramente e antes de tudo um grande artesão da televisão americana: no início, copyboy para o canal CBS News, ele escreve documentários antes de ser introduzido à escrita televisiva por Allan Burns, que o toma como protegido. Roteirista a partir dos anos 1960, cria sua própria série, Room 222, em 1969, composta de 122 episódios, seguida por The Mary Taylor Moore Show (As solteironas), multipremiada série em 168 episódios da qual James L. Brooks é, ao mesmo tempo, criador, produtor, roteirista e consultor. Até o início dos anos 1980, ele participa de vinte e tantas séries televisivas, sendo roteirista, produtor, produtor executivo, e estando na origem de oito séries.

É em 1979 que ele escreve e produz seu primeiro filme, Starting Over (Encontros e desencontros), dirigido por Alan J. Pakula, com Jill Clayburgh e Burt Reynolds. O filme, que não é propriamente dele, já carrega os traços do futuro cinema de Brooks, e mais do que isso: é muito mais um filme de Brooks do que de Pakula. É mesmo algo muito intrigante e que se repetirá nos quinze títulos que ele produzirá sem dirigir: todos têm um toque brooksiano, são anomalias na filmografia de seus realizadores, de maneira que se poderia dizer que são filmes realizados por Brooks. Será o caso do magnífico Riding in Cars with Boys (Os garotos da minha vida, 2001) e de Big (Quero ser grande, 1988) de Penny Marshall, únicos filmes notáveis da realizadora e ambos produzidos por Brooks.

A televisão não terá sido somente um trampolim, mas o próprio centro da carreira de Brooks (um centro subestimado por nós, cinéfilos franceses), seu meio privilegiado: após o sucesso de seu primeiro filme, Terms of Endearment (Laços de ternura, 1983), coroado com cinco Oscars, ele não deixa a telinha, como é habitual para um cineasta vindo da televisão e que pode então encontrar êxito em uma forma maior. Ao ouvi-lo em diferentes entrevistas, o que Brooks aprecia na televisão é a disciplina que ela demanda, a indecente rapidez de execução, a obrigação de resultado que o obriga a se superar, sendo englobado num projeto coletivo do qual ele é apenas uma no meio de tantas mãos. À pergunta de um jornalista que lhe pede para explicar a ligação profunda do público a uma série como The Simpsons, da qual é produtor, Brooks responde: “Nada funciona melhor do que o esforço coletivo, a televisão e o cinema funcionam por esse esforço; o sucesso ou o fracasso, é questão do acaso”. O que Brooks parece encontrar na televisão é uma exigência de rapidez que vem amenizar seu temperamento perfeccionista; esse se mostra abertamente quando seus filmes estão em fase de preparação, cujo mais extenso momento pode ser o de documentação e montagem. Daí uma carreira que combina duas velocidades: a rapidez de realização que demanda a televisão, e o paciente trabalho de ourives que exige sua meticulosidade de cineasta.

O mal-entendido da luz


O que manteve o Brooks cineasta do Brooks homem de televisão? De início, essa luz levemente farinhenta (Terms of Endearment), ora viscosa, que escorre como mel (How Do Your Know). Essa luz que desce como um véu sobre as imagens e que nos indica todos os sinais de um conteúdo padronizado. Pressentimos muitas coisas só pela luz de um filme: uma época, uma nacionalidade, a atitude geral do cineasta. James L. Brooks fala melhor do que ninguém sobre isso nos comentários em áudio que acompanham o DVD de Terms of Endearment, manifestando sua vontade de fazer “um filme americano sobre o que somos em vez dessas coisas internacionais... aqui está uma luz americana”. A luz pode ter uma nacionalidade, falar uma língua, um dialeto, e esse dialeto deveria ser escolhido no lugar de o que seria uma língua globalizada: não se deve desenraizar a luz, mas ancorá-la profundamente. Brooks nos lembra que o cinema certamente tem coisas a aprender (ou talvez seja melhor dizer: a desaprender) com a televisão, como uma certa maneira de acompanhar silenciosamente a vida das pessoas, de livrar-se das cerimônias (ligar uma televisão não faz barulho), ou seja: amenizar-se depois de ser muito admirado. Com sua luz, Brooks joga sobre as coisas um véu de indiscernibilidade que é o próprio tema de seus filmes. É sempre a história de um desafio lançado aos personagens: conseguirão provar seu rigor, sua capacidade de exigir algo de si mesmos no coração do cotidiano mais desesperado, serão capazes de reconhecer o encontro ou de se tornarem melhores mesmo quando nada a seu redor os leva a isso? Quanto ao espectador, será ele capaz de retirar o véu dos seus hábitos e preconceitos a fim de levar em conta a beleza fugidia e não-glamurosa dos filmes de James L. Brooks? De distinguir o maior no menor?



No final de Spanglish, Flor (Paz Vega) deixa seu posto de empregada doméstica na casa dos Clasky, a imagem da abastada família tipicamente americana. Ao despedir-se de John Clasky (Adam Sandler), com quem ela mantém um idílio secreto e platônico, ela lhe sussurra um “mi amor” quase inaudível. Brooks desejava que essa fala fosse ouvida por um terço dos espectadores: face à incompreensão de sua equipe, ele percebeu que seriam dois terços. Essa anedota contada por Brooks, ainda que seja uma brincadeira, fala muito sobre a concepção de seus filmes, que salpica de detalhes que não são exatamente evidentes à primeira vista. Essa arte do detalhe se deve a uma confiança irrestrita no espectador: demanda dele a maior atenção e a maior inteligência. Nós não somos espectadores perfeitos mas nós podemos rever os filmes. A beleza dos de Brooks é de uma evidência branda, matinal: estando ali, ela não é gritante, não sucumbe aos alaridos. Talvez seja isso o que alguns recriminam.

Terms of Endearment ou a coragem dos vivos

Na ocasião do lançamento de Terms of Endearment, Serge Daney escrevia no Libération: “É uma pequena frase que resume muito bem uma emoção que o cinema americano, em suas sagas e seus melodramas, suas novelas televisivas e seus afrescos familiares, sempre soube destilar. E essa frase diz algo como: ’É a vida’. Laços de ternura é isto: a vida se obstina ao ponto de ser obscenamente apenas a vida.” Serge Toubiana chegava à mesma constatação na Cahiers du cinéma: “Entre a grande mitologia cosmogônica à la Lucas-Spielberg para tela grande e Dolby, e aquela, com desconto, à la Dallas (ou em folhetim familiar) para a telinha, há claramente lugar para um caminho intermediário, trivial, vulgar: aquele que traz Terms of Endearment”. Nessas críticas, nenhuma cegueira, mas sim um mal-entendido cultivado pelo cinema ambíguo de James L. Brooks, que traça seu próprio caminho, “intermediário, trivial”. Seus filmes são como as pinturas de Norman Rockwell (que o cineasta cita abundantemente): retratam modestamente assuntos modestos, representam o American way of life, buscam compreender uma intimidade tipicamente americana, que seu povo mantém consigo mesmo, o cinema torna-se uma língua vernacular.



Ao fazer Terms of Endearment, Brooks tinha o desejo de fazer um filme realista sobre o câncer, portanto um filme que não fosse somente sobre o câncer. Deveria então introduzir outros filmes no “filme sobre o câncer”, fazer sentir a densidade de uma vida americana: a intimidade cortante entre uma garota e sua mãe, as reticências da mãe acerca do casamento de sua filha, o lar de dois recém-casados, os filhos, o adultério, a hipótese de uma vida perdida, uma mãe histérica que progressivamente deixa cair suas máscaras para revelar-se a nós em toda sua frágil solidão, a repentina aparição de uma doença. Fazer um filme sobre tudo menos sobre o câncer, sobre o câncer que chega ao filme como ele chega à vida. O mais cortante em Terms of Endearment talvez não seja o câncer, mas o que ele acentua: o desespero tranquilo de seus personagens. Terms of Endearment não é um filme sobre o câncer, mas sobre o fato de que é preciso algo assim grave e fulminante, como a doença, para que os humanos se acordem, para que a vida retorne a sua verdadeira intensidade.

É possível compreender que os críticos da época não tenham visto o melodrama cortante que era Terms of Endearment: Brooks faz tudo o que pode a fim de amenizá-lo. A grande beleza do filme está em sua capacidade de manter-se febril e lânguido face ao drama que se desenrola. Sua forma e seu tom jamais se dão o privilégio de impor-se sobre os personagens, é isso que lhe dá essa incrível capacidade de vibrar, de permanecer vivo, de tornar-se um melodrama precisamente enquanto resiste a sê-lo. A morte não “paira” sobre o filme, ela se espalha por baixo. Ela é uma conclusão irreal, que assim continua quando ela enfim chega. Os heróis adiam ao máximo o momento de desabar.

A força de um melodrama como Terms of Endearment vem dos choques e colisões de seus eventos e dramas contra a sólida coragem dos heróis: as lágrimas não vêm de empatia ou pena, mas de uma capacidade de resistir na dor e da obrigação que têm os seres humanos (“human beings”, importante expressão brooksiana) de dever ser inafundáveis enquanto estão vivos. Quando Emma (Debra Winger) se descobre condenada, ela faz uma última vez seu papel de mãe e dá a seus filhos alguns conselhos antes de morrer: nada de solene, ela lhes fala como uma mãe angustiada e apressada que envia seus filhos a uma viagem escolar. A coragem, em Brooks, é uma atitude obrigatória, uma modalidade de desespero, mas sobretudo a primeira e única maneira de estar vivo.

Greg Kinnear e Helen Hunt em As Good As It Gets (Melhor é impossível, 1997), Paul Rudd e Reese Witherspoon em How Do You Know, Paz Vega e Adam Sandler em Spanglish, Nick Nolte em I’ll do Anything1 (Disposto a tudo, 1994): há sempre um momento em que os heróis brooksianos “tocam o fundo”, e esse é sempre o momento que inagura, se não o início do filme, pelo menos o início de um desafio que eles deverão superar. Algo neles estava mal configurado e precisa ser arrumado: eles deverão se fortalecer, aprender a ser verdadeiros seres humanos (“a real human being”), reconhecer o amor e abrir-se, ou então, pelo contrário, ter a capacidade de rejeitá-lo. Com sutileza, Brooks faz aparecer esse aterrorizante sentimento de adversidade face a seus personagens, esse que nem mesmo os Post-its cheios de frases feitas colados no espelho de Lisa, em How Do You Know, a fim de lhe dar coragem, conseguem conter. Apenas a adversidade pode fazer com que melhorem. Mais uma vez, isso nunca é aterrorizante em Brooks, é somente a rigidez constitutiva da vida, nossos problemas pessoais, tão insignificantes para os outros, tão paralisantes para nós. Isso nunca é verdadeiramente o precipício, e talvez seja ainda pior: a impossibilidade de desanimar-se (sempre pode ser pior) supõe também a obrigação de sair de lá.

Do perfeccionismo moral ao self-improvement


Em How Do You Know, George Madison (Paul Rudd), depois de ficar sabendo que era o objeto de uma investigação federal por associação criminosa, diz esta frase: “Eu vou me administrar como uma empresa em perigo”. Talvez seja uma das coisas a se entender no aspecto estranho e intraduzível do cinema de Brooks, dessa vez não de um ponto de vista formal, mas sobretudo filosófico: tudo o que seus filmes carregam como ideologia do self-improvement (autoajuda2) e do otimismo americano. Portanto o cinema de James L. Brooks tem menos a ver com o self-improvement do que com uma de suas raízes filosóficas: o perfeccionismo moral de Ralph Waldo Emerson e de Henry David Thoreau. Em resumo, a ideia defendida por Emerson e Thoreau é a de um tipo de “moral doméstica” que se oporia às correntes de filosofia moral europeia que não permitiam nem de pensar sobre os problemas morais que surgem no cotidiano, nem de respondê-los. Haveria então uma inframoral a estabelecer (um “caminho intermediário”, como diria Toubiana), que num primeiro momento consiste de autorizar-se a “moralizar” o cotidiano, a conferir-lhe o máximo interesse posto que Emerson e Thoreau consideram que o cotidiano é a única esfera na qual nós poderíamos agir e que, por desinteresse ou por “desespero tranquilo3”, nós deixamos escapar.



Lembro-me das advertências de Stanley Cavell4, filósofo que amplamente comentou o cinema hollywoodiano pelo prisma desses dois autores, acerca do perfeccionismo. Ali ele já percebia o risco de uma possível associação a esse tipo de subfilosofia que é o self-improvement, nessas “filosofias populares atuais que propõem liberar o seu potencial para causar infelicidade no mercado imobiliário ou para dar-lhe os meios de ser o que quiser ser5”. Da moral perfeccionista às teorias do self-improvement, do sujeito moral à queda narcisista, a fronteira permanece muito fluida. Fluida como aquilo que, em Brooks, separa a vulgaridade televisiva da sofisticação das grandes comédias americanas, separa as pequenas preocupações pessoais das grandes questões morais. Os filmes de Brooks são trabalhados nesse limite, oscilam entre o perfeccionismo clássico e o que às vezes pode ter a ver com o “coaching da vida”.

Brooks não faz atalhos e sempre aborda muito frontalmente as questões de seus filmes. É geralmente a mesma história e geralmente começa como num manual de autoajuda, ou grosso modo, num momento de crise na vida de um ou mais personagens que os obriga a reconsiderar tudo a sua volta. A própria estrutura do filme evocaria quase que as diferentes etapas de um processo de um livro de self-improvement: “faça o inventário de suas qualidades”; “quem são realmente seus amigos?”; “pare de ser uma vítima”; “afaste as energias negativas”; “tome as rédeas da sua vida”... Isso poderia ser reduzido a apenas uma sucessão de etapas de autoaperfeiçoamento se Brooks não fosse definitivamente obcecado por uma versão totalmente primitiva do perfeccionismo6. Isso permaneceria ambíguo se os filmes de Brooks não se preocupassem em diferenciar os “seres humanos” bons dos maus. A prova da verdade consiste sempre em colocar os personagens face a uma escolha moral cuja resolução revelará sua natureza profunda.

“A real human being”

Todos os personagens de Brooks, excetuando-se talvez as crianças, são avaliados pela seguinte medida: eles são bons seres humanos? Eles se utilizam de noções do bem e do mal para julgar as próprias atitudes ou eles são desprovidos dessa chave de leitura? Até mesmo o amor é considerado segundo essa regra: o desabrochar do sexo, os interesses em comum e a admiração se tornam critérios secundários que devem ser complementados pela prova da moralidade do parceiro. O exemplo mais forte e fascinante dessa moralidade como critério erótico e elemento fundador do sentimento amoroso se encontra em Broadcast News (Nos bastidores da notícia, 1987).



É a história de um triângulo amoroso entre Jane Craig (Holly Hunter), produtora de um canal de notícias na televisão, Aaron (Albert Brooks), repórter talentoso, melhor amigo de Jane e por ela secretamente apaixonado, e Tom (William Hurt), ex-apresentador esportivo, menos brilhante que os outros dois mas que compensa pela cara de bom moço. Assim que Jane começa a se relacionar com Tom, Aaron decide avisá-la: “Você não pode ficar com Tom, seria incoerente com o que você é. Tom, sendo tão gentil, é o Diabo. Com o que você acha que o Diabo se pareceria? Com uma cauda comprida e pontuda ele seria um fiasco. O Diabo é sedutor, gentil, atencioso. Sua posição o ajudaria a influenciar muita gente. Ele jamais será maldoso com as pessoas. Ele atacará nossos valores mais importantes pouco a pouco, ele nos enfeitiçará com um truque barato. E ele nos dirá que não somos mais do que vendedores. E ele terá as mulheres mais lindas. Aceite isto: ele representa tudo aquilo contra o que você nunca se cansou de lutar.”

Aaron acabará revelando a Jane que na ocasião de sua primeira reportagem sobre vítimas de estupro, Tom tinha apenas uma câmera para filmar sua entrevista: somente após o final da gravação da entrevista ele pôde produzir o plano em que aparece emocionado, às lágrimas, ao ouvir o relato da vítima entrevistada. Jane, cada vez mais envolvida com Tom, irá verificar os brutos da entrevista, descobrindo assim que por trás da fachada sedutora e gentil há um verdadeiro manipulador capaz de, sem escrúpulos, produzir uma imagem mentirosa para uma reportagem sensacionalista. Isso é só um detalhe que Jane poderia nunca vir a conhecer ou, mesmo conhecendo, poderia ignorar. Mas para um personagem brooksiano, um “real human being”, que é extremamente apegado à ética do seu ofício, tudo é revisto à luz desse detalhe fatal. Essa falsa imagem cria um abismo intransponível entre Jane e Tom, entre duas visões de mundo: uma em que a imagem que mente é meramente um detalhe, e a outra em que isso é falha moral.

O discurso de Aaron é um verdadeiro manifesto brooksiano em si (e, além disso, é dito por um outro Brooks): ele aconselha Jane a permancer vigilante e lembra a ela que o mal nunca se apresenta com maldade, ele sempre surge mascarado. O diabo (mas também a bondade e a beleza) está nos detalhes, e Jane se esquecera disso. Ela acabará deixando Tom, a quem ela deveria dar uma chance ao partir de férias com ele. Depois de ter buscado o reconhecimento de seus colegas como um verdadeiro jornalista, Tom passa para o outro lado da história, lá onde as pessoas não se incomodam com avaliações morais dos seus próprios atos. Não é Jane, mas é essa falta que provoca a separação: eles não habitam o mesmo mundo, e Tom se esquecera de lhe avisar.

Em How Do You Know, quando George (Paul Rudd) conta a sua namorada que ele é investigado num tribunal federal por fraude, em vez de apoiá-lo durante essa dificuldade, ela decide dar um tempo no relacionamento até que ele tenha resolvido seus problemas com a justiça. Em I’ll Do Anything, Cathy Breslow (Joely Richardson), produtora, decide não aceitar a escolha de seu namorado Matt (Nick Nolte) de atuar num remake de Mr. Deeds Goes to Town, a fim de tê-lo perto de si. No mesmo filme, o produtor Burke Adler (Albert Brooks) é constantemente desafiado por sua colega (Julie Kavner), com quem mantém uma relação amorosa, a recusar seu cinismo e sua insensibilidade. Em Spanglish, é claramente na mãe histérica (Tea Leoni), oposta à bondade dos personagens que a rodeiam, que se encontra a anomalia. Podemos laboriosamente enumerar aqui todos os deficientes morais e outros monstros éticos presentes nos filmes de Brooks (seria necessário incluir todos os personagens interpretados por Nicholson). Aqueles que chegam a se dar conta do mal que fazem e aqueles que, percebendo vagamente, desejam melhorar; todos esses gestos e frases ofensivos que surgem como pequenas mortes.

Decency can be sexy.

Brooks disse e repetiu em várias entrevistas: “Decency is sexy”; ou, com um pouco menos de firmeza: “Decency can be sexy”. Frase que podemos traduzir como: a moral pode ser sedutora – inicialmente para seus personagens, mas sobretudo para o cinema, que hoje se preocupa apenas vagamente com isso, como um nó que fizemos e que parece difícil de desatar. A palavra decency é interessante porque pode ao mesmo tempo sugerir a moral, a decência, a cortesia, o pudor. De modo que comumente nos vemos face a uma acepção da moral que beira as noções de boas maneiras ou de etiqueta, oscilando sempre entre o que é importante e o que é acessório. E talvez o verdadeiro personagem brooksiano, o “real human being”, é aquele que se torna capaz de discernir no acessório aquilo que é de fato importante. O interesse de Brooks pela moral não é somente vivo – ele é total; torna-se um sistema. Seus filmes só tratam e falam disso, eles só pensam em uma coisa: que, de um extremo a outro do filme, seus personagens se tornem melhores. Não dizem “eu te amo” mas “você me dá vontade de ser um homem melhor” (As Good As It Gets). Nesse sentido, Brooks se junta a Cavell na constatação de que a moral não é limitadora, que ela pode ser uma fonte inesgotável de alegria. Ela não reprime nossa natureza, pelo contrário: encontra sua origem numa forma de instinto moral que pouco a pouco se revela ao longo do filme. Do mesmo modo, os heróis brooksianos aprendem que fazer o bem não pressupõe necessariamente um sacrifício mas que ali também se pode encontrar um certo prazer. Portanto esse é o percurso de redefinição da moral que vale a pena ser escrito e realizado – e, nessa disciplina perfeccionista, Brooks aparece como o mais ortodoxo, o mais íntegro e, por isso talvez, o menos atraente.



Um cineasta como Judd Apatow, grande admirador de Brooks, é também muito marcado pela moral perfeccionista que, em seu caso, sempre se mostra misturada a outra coisa: um gosto pelo sketch, pelo stand-up, por gracejos socioculturais e geracionais. As comédias americanas atuais misturam cinismo e inocência, primeiro e segundo grau, como se já não pudéssemos aceitar uma forma pura de sentimentalismo sem o seu exato contrário7. Como um remédio amargo, nós a aceitamos com muitas caretas. É por isso que Brooks nos desarma; ele é justamente inatual no tom inocente de seus filmes. Hoje Apatow parece ter escolhido envelhecer com seu público e criar uma relação de conivência geracional que vai agradar o paladar de qualidades superficiais de seu público, enquanto Brooks busca uma conexão mais profunda com seu espectador. Há outra diferença importante que separa Apatow de Brooks: toda uma cultura bastante condescendente e todo um folclore do fracasso. Por isso que Apatow é certamente mais cool e exportável: em seus filmes, encontra-se conforto no fracasso, como se numa poltrona aconchegante8; em Brooks, o fracasso derruba os personagens que o vivem como uma crise, um estado doloroso que deverá ser atravessado com tenacidade e perseverança. Porque os heróis brooksianos, longe de serem os herdeiros da comédia, são os filhos sérios do melodrama.

How do You Know
ou o canteiro de obras da consciência


Se Broadcast News é certamente o filme mais incisivo de seu autor, How Do You Know, realizado uns vinte anos depois, retoma de maneira muito mais suave o tema do triângulo amoroso que guarda de fato um verdadeiro dilema moral. Na origem do projeto, o desejo de Brooks era de fazer um filme sobre uma esportista. Como sempre, ele pesquisa por um longo período o meio do softball, conversa com várias esportistas que lhe dizem a mesma coisa: as esportistas formam casais com esportistas. Brooks, obcecado pelos detalhes realistas, tira dessa observação uma ideia: fazer um filme sobre uma esportista que se apaixona por um não-esportista. A ideia constitui em si um resumo ideal da comédia americana clássica: pode-se pensar, por exemplo, em Designing Woman (Teu nome é mulher, 1957) de Minnelli, em que um jornalista esportivo (Gregory Peck) e uma estilista (Lauren Bacall) se apaixonam antes mesmo de perceber que seus respectivos hobbies podem separá-los. Observadores externos de uma paixão que eles não compreendem, cada um é logo exasperado pelo mundo em que o outro vive, até o momento em que o amor os faz descobrir que o interesse pelo outro pode levá-los a diferentes centros de interesse. Pode-se ver também em How Do You Know (e, de certo modo, em Broadcast News) uma resposta a His Girl Friday (Jejum de amor, 1940) de Howard Hawks: Hildy Johnson (Rosalind Russell), brilhante jornalista-repórter, decide mudar de vida e casar-se com um modesto corretor de seguros (Ralph Bellamy). Mas isso não agrada a seu ex-marido e ex-chefe Walter Burns (Cary Grant), que decide dar-lhe novamente o prazer do jornalismo ao lhe propor a cobertura das últimas horas de um condenado à morte da qual ela acabará por livrá-lo. Ao redescobrir o gosto pelo jornalismo, Hildy redescobre também a forte cumplicidade que a ligava a Walter. Quando trabalham juntos, parecem impermeáveis a todo o resto. Falando a linguagem de sua paixão em comum, eles se tornam incompreensíveis ao resto do mundo – característica importante da comédia de recasamento, segundo Cavell. É essa mesma linguagem em comum que encontrarão Lisa e George, embora eles sejam mais desfavorecidos e hesitantes do que os heróis hawksianos.



É a mesma questão (à qual cada filme traz sua própria resposta) que propõem esses dois filmes: podemos viver com alguém que, a priori, não fala a mesma língua que nós? Será que dividir os mesmos centros de interesse é a condição sine qua non para a boa compreensão amorosa? Nós já vimos em Broadcast News que aquilo que é determinante é algo mais profundo e que concerne a uma forma de discernimento moral. Em resposta a essa questão, Brooks prefere então desviar dos determinismos e fatalidades a fim de encenar a longa e paciente trajetória de uma consciência que alcança a si mesma ao alcançar o amor. Aqui nada pode interromper ou fazer obstáculo a essa consciência tornada soberana e que ditará ao filme seu percurso. Se os filmes de Brooks são verdadeiros laboratórios que deixam à mostra os mecanismos e engrenagens da comédia clássica, How Do You Know aparece como uma espécie de apoteose. O próprio Brooks confessa que, contrariamente à opinião comum, um bom filme é para ele um filme no qual a escrita, em vez de esconder-se, faz-se sentir a cada instante. Como num restaurante cujas cozinhas são vistas do salão, como numa arquitetura de vidro que deixaria aparecer a sólida estrutura que a sustenta, os filmes de Brooks dão sempre esse retrogosto de fabricação e de artifício, trazem à tona, ao mesmo tempo que a história, a grande sofisticação da estrutura – é como se levássemos à ebulição a mise en scène transparente do classicismo para que, a partir de agora, ela alcance a inquietação de uma fabricação transparente, uma espécie de classicismo reflexivo9.

A coisa admirável que Brooks faz em How Do You Know é deixar todo o espaço para que sua heroína possa se enganar, aproximando assim a estrutura do filme daquela do romance de formação. Diz-se que várias etapas de uma vida poderiam ter sido suprimidas em favor de atalhos e abreviações. Mas o tempo que se espalha ao longo de centenas ou milhares de páginas é precisamente o tempo necessário para que uma vida aprenda por si mesma, e não a partir de elementos exteriores. É um tempo incomprimível, pois a consciência não admite nenhum atalho; o que ela aprende só pode ser aprendido por si mesma, no interior de sua própria temporalidade. É o que indica a cena do tête à tête no dia do aniversário de Lisa: ela agradece George por deixar que ela tome seu tempo para abrir seu presente e por não apressá-la como Matty fazia.

Brooks tem esta frase magnífica quando ele fala de seus diálogos: “A inocência está em não interromper os diálogos longos”. É necessário que cada personagem vá ao fim de seu pensamento, de sua trajetória, pois na extremidade de um pensamento ou de um erro pode se encontrar um pouco de clareza, ou ainda uma revelação. Bastaria o mínimo (uma palavra interrompida, uma escuta medíocre, um ônibus que chega) para que essa pouca luz desapareça, para que o curso da vida seja radicalmente modificado. A inocência de que fala Brooks é um pouco como o que Nietzsche chama de “a inocência do vir-a-ser”, essa leve cegueira inerente a toda vida, ou a toda frase iniciada, e que deve ser protegida a todo custo.

Há em Spanglish e How Do You Know a amplificação de um gesto que se desenvolveu progressivamente ao longo da filmografia de Brooks. Um gesto que consistiria em fazer hesitar o roteiro, em fazer sentir, sob a hesitação dos personagens, a indecisão do fabricante, tentado por diversas palavras, diversas saídas, consciente de que uma palavra a mais alteraria o jogo da narrativa, dando assim a sensação de um filme em construção, ainda quente e vibrante diante de nossos olhos. Esse procedimento é completamente exacerbado nesses dois filmes em que as circunvoluções das consciências em obras são endossadas pela serena clareza da mise en scène. Fazer, refazer e aperfeiçoar, esse poderia ter sido o subtítulo de How Do You Know, já que tudo ali obedece à ideia de que tudo pode infinitamente ser corrigido, feito melhor, refeito ao infinito.

Good talk”, os campeões da conversa


É a arte do diálogo literário, bem escrito e preciso, que reivindica Brooks, e mais precisamente a arte da conversação, característica tipicamente herdada do classicismo hollywoodiano e sinal distintivo das comédias perfeccionistas. Não seria possível encontrar outro equivalente à prosa de Brooks no cinema atual: ele é o último a enxergar a palavra como algo que, no fundo, é também lugar de ação. No extremo oposto de todas as formas de realismo linguístico10, os heróis brooksianos demonstram uma eloquência envolvente em sua capacidade de costurar seus pensamentos na linguagem, de entender o tempo da palavra ideal: as palavras têm um sentido, elas também têm a capacidade de influenciar nossas vidas. Tudo pode significar alguma coisa: palavra, gesto, mímica, objeto – é a expressividade globalizada do classicismo. Mas a palavra mantém o seu lugar privilegiado, ela é o ritmo da mise en scène, e esse lugar de escolha, esse amor pelas palavras, é o reflexo natural de um amor pelo trabalho do ator, que parece deliciar-se ao interpretar a prosa brooksiana. No cinema de Brooks, há hesitação, as palavras são escolhidas, mesmo priorizadas, e até “apaixona-se por uma fala11”, ou, ao contrário, uma relação chega ao fim por causa de uma palavra – toda palavra implica um ethos brooksiano da conversa.



À exceção de Broadcast News, estamos portanto bem longe da onda de palavras delirante da screwball comedy, que em seus momentos de graça tende a retirar os espaços e os silêncios entre as palavras a fim de articular apenas um fluxo de linguagem, uma verdadeira dança de palavras entre o homem e a mulher que, por essa linguagem em comum, descobrem um lugar só seu. Os personagens brooksianos, menos herdeiros da comédia do que do melodrama, são um pouco mais opacos e inquietos em relação a si mesmos para fornecer um ritmo infernal. A graça toma o tempo de uma palavra pronunciada, de uma descoberta interior que Brooks sublinha com um discreto travelling in que vai se pousar no rosto de seu personagem – “the eurêka moment”, como ele mesmo descreve.

Os heróis brooksianos se buscam e se moldam nas e pelas palavras: as suas e as dos outros. Brooks certamente concordaria com Cavell quando este definiu a boa conversa como sendo “o exame de uma alma por outra”; ela começa onde termina a small talk, a conversa fiada. Os próprios personagens não cansam de sublinhar isso: “boa conversa”, “foi a maior/mais bela conversa da minha vida”, “a menor conversa que já tivemos”. O modo de vida brooksiano exige assim que se reflita sobre o que estamos vivendo ao mesmo tempo em que o vivemos.

Essa maneira de apreciar uma experiência enquanto ela é vivida geralmente é reservada a um domínio bem específico: o da vida sexual, em que, a fim de dar confiança ou agradar a seu parceiro, constata-se a qualidade da relação durante ou logo após ter terminado. É que em Brooks, colocando assim trivialmente, falar é transar12.

O que precede o amor é frequentemente a palavra: passamos de um a outro como se fossem a mesma coisa. O silêncio que o amor demanda atesta o fato de que a partir de agora a conversa será feita pelos corpos – é somente um revezamento. Brooks é certamente um dos últimos cineastas da palavra13, no sentido de que ele a filma como algo tangível, material, que tem suas consequências. A conversa amorosa é como um contato entre dois corpos, a carícia de um corpo sobre outro: a palavre imprime diretamente seus efeitos sobre o pensamento do interlocutor, uma espécie de zona erógena hipersensível que se inflama, se entusiasma e palpita a seu tempo. Falar é sempre o que se pode fazer de mais profundo e de mais excitante com alguém, e um convite à conversa é sempre explicitamente sexual: a frase de Jane Craig a Tom Grunick em Broadcast News: “Não estou cansada; meu quarto é logo aqui ao lado, vamos continuar a conversa?”

Mais tarde, quando Tom deve cobrir ao vivo o ataque de um avião líbio a uma base americana, Jane comanda da sala de direção a edição especial, dando-lhe indicações pelo ponto eletrônico. Ela, por sua vez, é guiada pelo telefone por Aaron, que, afastado dessa edição especial, a acompanha em sua televisão. Exausto e animado ao sair do programa, Tom agradecerá a Jane: “Você é uma mulher de tirar o fôlego; que sensação foi ter você na minha cabeça! Você sabia o exato momento de introduzir a sequência na hora em que eu precisava. Tinha ritmo, foi como um bate-bola”. Nessa sequência incrivelmente límpida dentro de um filme trabalhado pela energia da screwball comedy, o cineasta consegue ilustrar o que, na economia de sua filmografia, seria uma relação amorosa ideal, o ponto culminante de uma conversa: ter literalmente o outro dentro da cabeça.

O cogito brooksiano

O tempo da experiência contém em si mesmo o tempo de seu comentário e de sua avaliação. Viver sempre é, em Brooks, consciência de viver, de escutar, de falar. É a marca de seu cinema, sua assinatura, o que torna seus personagens tão conscientes de si mesmos porque são atentos a seus menores estados, sempre saboreando a si mesmos, questionando o que pensam. Nesse sentido, a apoteose, o êxtase, só pode vir de uma certa qualidade de conversa que se manifesta no momento em que uma consciência se torna totalmente transparente a outra. Lugar em que, para continuar na metáfora carnal, as palavras do outro tocam no fundo, revelam e iluminam partes ainda escondidas de nós mesmos. Não se trata simplesmente de uma noção narcisista da compreensão, mas algo mais amplo, em que o outro é o intermediário indispensável para que se possa alcançar a si mesmo. É uma realização que vai além da simples e mesquinha ideia de bem-estar; o desafio é sempre educar-se, ser menos opaco a si mesmo. É aqui que a diferença entre perfeccionismo moral e self-improvement, ou ainda entre bem-estar e consciência moral, é pertinente: não se trata de encontrar no outro uma zona de conforto, mas ao contrário uma zona de riscos, portanto de elevação.



Essa distinção se encontra, por exemplo, em How Do You Know, na bela perseverança de Lisa (Reese Witherspoon), que dá todas as chances a Matty (Owen Wilson), seu namorado mulherengo e negligente mas que gostaria de melhorar. Após uma noite passada em sua casa, ela vai ao banheiro onde encontra um estoque de escovas de dentes e roupas íntimas para moças que testemunham sem complexos a intensa vida sexual de Matty, habituado a “bem receber” em sua casa. Após fugir de seu apartamento, ela se questiona. Brooks insiste no detalhe de sua mão sobre a porta, e não para, ao longo do filme, de fazê-la questionar-se. Os filmes de Brooks (sobretudo os dois últimos) são cheios de planos-detalhe hesitantes, como em suspensão: pensamos no pé de Flor, em Spanglish, que hesita encostar no chão pois soaria o fim de um momento mágico passado com John. Para James L. Brooks, o plano-detalhe é sempre ditado por um movimento de consciência; cristaliza-se na superfície um momento decisivo, o de uma hesitação ou de uma revelação.

Perseverança

O que pode uma boa conversa: decifrar o rascunho de uma alma. Mas isso pode levar um certo tempo antes de funcionar, pois poder enfim falar, encontrar esse tempo, que é um luxo que se dão os personagens brooksianos, é antes de tudo conseguir criar essa louca intimidade, esse ar quente e elétrico entre dois seres que é uma das coisas mais simples e mais belas de se ver no cinema. Mas o problema é o seguinte, e ele é tipicamente brooksiano: como criar intimidade quando tudo separa? Como tornar íntimos uma esportista e um homem de negócios? Um grande chef e sua empregada mexicana? Uma jovem garçonete otimista e prestativa e um misantropo infrequentável? Uma mãe psicorrígida e seu vizinho don juan? Um ex-jornalista esportivo de físico avantajado e uma campeã da ética jornalística? É necessária uma mistura bem feita de tempo e de perseverança. Que a vida dê um pouco de espaço, ofereça algumas ocasiões, e que os heróis estejam à altura dessas ocasiões. É incrivelmente frágil, podemos errar e recomeçar, e recomeçamos por essa mistura complexa de atração e intuição que faz com que reconheçamos vagamente no outro um espaço familiar e que adoraríamos percorrer.
 

São numerosas as cenas de jantares malsucedidos, talvez catastróficos, nos filmes de Brooks, porque, precisamente, cada um se apresenta ao outro sob os ornamentos de suas velhas máscaras de sempre: a psicorrígida MacLaine e o mulherengo Nicholson (Terms of Endearment), a jovem gentil que tenta arrancar um elogio do incorrigível misantropo (As Good As It Gets), o homem de negócios com a corda no pescoço e a esportista desempregada (How Do You Know). O jantar é sempre uma zona experimental para o cineasta: em How Do You Know, Witherspoon propõe a Rudd comer silenciosamente em vez de falarem sobre seus problemas pessoais. O silêncio como outra modalidade da palavra, como outra maneira de medir as palavras e não escolher nenhuma: “Não dê sua voz àquilo que sucumbe”, ele lhe dirá mais tarde, e How Do You Know revela o inverso de sua façanha: sendo um grande filme sobre a conversa, só poderia ser um grande filme sobre o silêncio.

As Good As It Gets e How Do You Know se encontram em seus finais: não o happy end cheio de entusiasmo da comédia romântica, mas algo um pouco mais desiludido e tímido. Uma chance deixada a alguém mas cuja escolha ainda traz a marca da hesitação, da reticência, que jamais a levarão frente à perseverança, à aposta que fazemos conosco de que isso valerá a pena.

Entre esses seres que tudo separa, isso pode funcionar lá onde nos reconhecemos, uma sensibilidade em comum abafada pelas máscaras e pelos sinais particulares – a arte de Brooks é a do strip-tease das almas. Não se trata de encontrar um pouco de si no outro, mas um tipo de intensidade escondida em nós, e que é reativada ao ser reconhecida face a face. É aqui que se materializa o otimismo tenaz de Brooks, por essa maneira de traçar, sob os determinismos, caminhos clandestinos onde se encontram almas irmãs. É preciso então retornar às origens de si mesmo, a um estado anterior, não viciado por aquilo que os acontecimentos nos forçam a ser e que está firmemente sedimentado.



É o que nos diz a maioria das cenas de abertura de seus filmes, cuja maioria remonta à infância dos heróis (Terms of Endearment, Broadcast News, How Do You Know), ou são simplesmente muito anteriores ao presente da narrativa (I’ll Do Anything), mas sempre correspondem a um tempo de inocência. Brooks sempre teve um dom para sintetizar o máximo de informações no interior de uma cena de abertura: ela determina o caráter de um personagem mas constitui igualmente um tipo de cena original que dá ao filme todo seu impulso. A cena de abertura pode ser o retrato completo de um de seus personagens (As Good As It Gets), um desejo de que se faça sentir o caminho percorrido (Broadcast News), as promessas não mantidas (I’ll Do Anything), o sentimento da vocação (How Do You Know), ou o tom de uma relação mãe-filha (Terms of Endearment), em todos os casos é uma maneira de dar ao filme uma origem, ou um ponto de partida de onde os heróis sairão à procura de um estado mais autêntico de si mesmos.

“God bless the language barrier14...”


Nesses seis filmes, há um que resiste a iniciar-se numa cena de infância. Spanglish é em si o longo relato retrospectivo de um fragmento de infância contado por Cristina Moreno (Shelbie Bruce), uma jovem que se candidata à universidade de Princeton e que deve lembrar-se da pessoa que mais marcou sua vida. Todo Spanglish é construído na direção contrária dos outros filmes citados, é o filme das origens: ele começa no presente e se segue no passado, e essa primeira cena no escritório de candidaturas de Princeton é essencial: ela nos indica, bem antes de nos darmos conta, o que não será o filme.



Assim como seus personagens chegam a emancipar-se de seus costumes, os filmes de Brooks borram as linhas dos gêneros, nunca se deixam antecipar. O que dita as trajetórias dos pontos de vista é sempre esse cuidado incessante de desdobrar toda ação (de um personagem, do próprio roteiro) em seu movimento reflexivo. Em Spanglish, Brooks passa o tempo a retardar o momento de resvalar na comédia romântica e decide não ceder a essa facilidade a fim de tentar desbravar uma saída mais complexa e apaixonante. É necessário voltar à cena original para compreender que o que estará no cerne do filme será a relação mãe-filha, assim como a relação pai-filha é o centro de I’ll Do Anything. Há aqui uma outra modalidade da perseverança brooksiana supracitada: um certo tipo de integridade que em Brooks sempre se encarna por heróis que são pai ou mãe. Se I’ll Do Anything e Spanglish não são comédias românticas, trazem delas todas as premissas, mas não cessam de desviar dessa trajetória por conta de um senso de prioridades parentais que compartilham Flor Moreno (Paz Vega) e Matt Hobbs (Nick Nolte).

Além da perseverança como maneira de se abrir ao outro, a integridade: uma certa maneira de fazer-se inatacável, mesmo pelo amor. Não tanto uma perseverança dirigida ao outro, mas sim uma perseverança de ser. Flor Moreno talvez seja, de todos os personagens que povoam os filmes de Brooks, o personagem menos brooksiano se esperarmos que um personagem brooksiano seja um rascunho atormentado, expansivo, eloquente. Se Flor não é um personagem brooksiano, ela é contudo a própria imagem do cinema intraduzível de Brooks, encarnando a sólida integridade de sua filmografia: morando com uma famíia de americanos ricos, ela ainda assim não esquece suas origens modestas. Nesse convívio, ela não tem nenhum tipo de cobiça ou inveja, apenas seu mundo e sua cultura próprias são desejáveis. Flor é a criatura brooksiana mais perfeita, mais idealizada. Modesta e íntegra, ela é uma metáfora de seu cinema.

Não se trata de pessimismo social por parte de Brooks em não selar o amor entre Flor e Adam: ele prefere nos lembrar que seu cinema é filho do melodrama, logo da duração da vida, da abnegação, da filiação. Não será o encontro amoroso, mas sim o futuro de sua pequena filha, e essa decisão já é uma forte tomada de partido, uma maneira de solidificar seus laços já profundos com a tradição perdida do melodrama15

. Ao redor dela os personagens acham a vida complicada, apenas ela parece achá-la dura, e isso, ao que parece, é o que ela tem a transmitir a sua filha, o que ela extrai dessa família de adoção de condição superior à sua. A mais bela ideia do filme se deve ao que o aprendizado de uma língua extrai de um erotismo encarnado no neologismo do título: quanto mais Flor domina o inglês, mais ela atravessa a barreira da língua que a separa de Adam. Ela se oferece ao amor enquanto se oferece ao inglês e à conversa, e acabará voltando atrás ao retornar a sua língua materna. Nos comentários em áudio do filme, Brooks está consciente de que o angelismo de Flor só é realista porque ela pertence à cultura mexicana fantasiada por um realizador americano, porque ela é o Outro de seu cinema.



É um tipo de saber muito parecido com o que transmite Matt Hobbs a sua filha em I’ll Do Anything: selecionada para atuar num programa de televisão para crianças, a pequena Jeannie Hobbs (Whittni Wright) entra em pânico com a ideia de não saber chorar quando lhe pedem. No momento de entrar em cena, ela se lembra do conselho que seu pai ator lhe deu (pensar em qualquer coisa muito triste), e as lágrimas jorram naturalmente. O pai dá à filha o que ela lhe ofereceu ao recuperar sua vida: o dom de uma vida vivida pelo outro, intimimamente ligado ao dom das lágrimas. Para trazê-las à tona, a menina imaginava que era afastada de seu pai.

I’ll Do Anything não é totalmente um melodrama, e tampouco Spanglish; é difícil saber em qual categoria agrupar os filmes de Brooks. Todas as etiquetas parecem insuficientes: poderíamos dizer que são comédias interpretadas por personagens de melodrama. Eles têm jeitos sérios e graves, enquanto a atmosfera dos filmes é leve e efervescente. Pois Brooks filma a duração ordinária da vida, sua capacidade de nos fazer resistir e nos botar à prova. Seu cinema reativa a intensidade inerente à nossa condição: essa gravidade escondida em todos os nossos atos e todas as nossas palavras, e que tratamos com tanta leveza, James L. Brooks nos lembra dela, mas sem nos machucar, muito suavemente.

1 Filme esquecido da filmografia de Brooks. Ele figura, contudo, em meio a seus projetos mais ambiciosos: I’ll Do Anything interliga o retrato dos bastidores de Hollywood à trajetória de um ator fracassado que reaprende a tornar-se pai; o filme, no início, deveria ser uma comédia musical, mas teve seus números musicais extirpados.
2 Literatura de autoajuda que insensivelmente contaminou a França já há alguns anos. Aliás, eu notei que as prateleiras da Fnac normalmente consagradas à filosofia agora se enchem de obras de autoajuda, dando lugar a uma estranha mas eloquente convivência.
3 “A maior parte dos homens leva uma existência de desespero tranquilo. O que se chama de resignação é um desespero absoluto. (...)” (Henry David Thoreau, Walden, Éditions Le Mot et Le Reste, 2013, p. 18)
4 Num texto intitulado “Ce que le cinéma sait du bien”, ao fazer uma lista dos filmes recentes que reativam o espírito do perfeccionismo moral, Cavell cita As Good As It Gets. (Le cinéma nous rend-il meilleurs?, Bayard, 2003, p. 103.)
5 Ibid., p.97.
6 Podemos notar uma aparição do nome de Emerson em As Good As It Gets.
7 Sobre esse tom inatual, o verdadeiro herdeiro de Brooks é certamente Cameron Crowe, realizador muito mais laborioso do que seu mestre e cujos melhores filmes, Say Anything (Digam o que quiserem, 1989) e Jerry Maguire (Jerry Maguire – A grande virada, 1996), foram produzidos por Brooks.
8 Último estágio: a desgradável mas assistível série Girls, produzida por Apatow.
9 Num belo artigo lançado na La lettre du cinéma, nº 30, maio-junho-julho 2005, e intitulado “Je t’aimerai toujours”, Serge Bozon evoca James L. Brooks como sendo “o último dos clássicos”.
10 A ideia atualmente bem implantada, embora não saibamos a que possam se parecer suas alternativas, de que seria necessário falar como na vida real e, ainda mais globalmente, “ser” no cinema como na vida real.
11 Brooks fala assim de seu trabalho de escrita e do fato de que ele não consegue abrir mão de algumas falas.
12 Devo dizer, é claro, que se trata de uma palavra de Lacan que dizia: “Falamos em vez de transar” no livro VII do Séminaire consagrado à ética da psicanálise. Ele evoca a substituição da relação sexual pela palavra e pela escrita.
13 Na França, poderíamos talvez atribuir o título a um cineasta como Arnaud Desplechin, cineasta muito impregnado pelos escritos de Cavell.
14 Trata-se de uma fala de Brooks nos comentários em áudio que acompanham a edição em DVD de Spanglish.
15 Após escrever esse texto, descobri o belíssimo artigo de Benjamin Esdraffo intitulado “Quatre étoiles et une seule fleur” e consagrado a Spanglish, no mesmo nº 30 da La lettre du cinéma supracitado. Ele qualifica justamente o filme como “melodrama ingrato” e esboça algumas pistas sobre as quais meu texto se encontra completamente.

James L. Brooks, le secret magnifique
foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 97, primavera de 2016. Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.