O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Cineclube #9: Meu vizinho Totoro



Miguel Haoni comenta Meu Vizinho Totoro (Tonari no Totoro, de Hayao Miyazaki, 1988)
Captação e edição por Wesley Conrado

Léon Morin - padre, de Jean-Pierre Melville



Por Miguel Haoni

Léon Morin, padre lembra a imagem de uma caixa dentro de outra caixa dentro de outra caixa: dos desejos irrealizáveis, silenciados, da personagem passamos ao claustro do quarto, do escritório, da igreja e do presbitério. São lugares de uma cidade no interior francês três vezes ocupada durante a Segunda Guerra: primeiro pelos italianos, depois pelos alemães, depois pelos americanos, sem grandes diferenças. Estas prisões, porém, têm janelas, e são penetradas por uma luz: a luz do mundo, objeto primeiro da arte. A luz fria - que aquece - dos filmes de Jean-Pierre Melville.

A luz, por mais restrita que seja a sua incidência, é aquilo que nos permite ver. É o que garante ao olhar de Barny (Emmanuelle Riva) romper a distância apropriada e notar os detalhes grosseiros da costura na batina de Léon Morin (Jean-Paul Belmondo). Muito antes de ver que ele era bonito, muito antes de desejá-lo perdidamente. É ela que nos conduz na passagem dos dias, na angústia calma do diário íntimo. 

É a luz (outra luz) que faz também com que estes personagens possam respirar livres mesmo atrás de todos estes muros: o amor pelo conhecimento, aqui encarnado em seus diálogos filosóficos. Tudo começa com uma provocação (a mulher diz ao padre "a religião é o ópio do povo") seguida de uma reação mil vezes mais provocante (o padre responde "nem sempre...") e o que se desdobra a partir disso é uma grande aventura de descoberta. Para o espectador e para os personagens.

Em determinada passagem, Léon desenha um ponto ("este é você") e um círculo ("este é Deus") e expõe uma teoria cósmica da mise en scène, do acordo espacial entre o Homem e as Forças ao seu redor, tal qual um cineasta mostra numa planta baixa do cenário o jogo cênico à atriz: "É Ele que lhe cerca e não o contrário". "E o que Ele espera?". "Que você se mova." Trata-se aqui de uma das mais belas definições do cinema. Melville desenha os movimentos segundo as regras do espaço, e a precisão dos gestos respondem à sua necessidade. Seus filmes nos lembram que clássico é também aquele que tem classe.

No final libertam-se a cidade e a verdade. O futuro dos personagens começa com o som do vento e as marcas da ausência nas paredes traduzem a resignação inflamada diante do amor impossível. Agora eles são livres. Triste liberdade.

Excertos de "Prazer à Melville"

Por Jean Domarchi 

Os prazeres do notívago 

Meu primeiro objetivo era fazer um relatório de Dois homens em Manhattan. Mas eu me rendi rapidamente a uma evidência: que não é possível compreender esse filme se não evocamos o mundo tão particular de Melville. Na verdade, Dois homens em Manhattan só pode ser compreendido em função de Bob, o jogador e eu me surpreendo que os amantes de Bob possam ser, ao mesmo tempo, os detratores de Dois homens em Manhattan. Se de um filme ao outro o assunto difere, o clima é o mesmo. Mais exatamente: o ponto de vista de Melville sobre os homens e sobre as coisas permanece o mesmo. Esse ponto de vista é aquele de um notívago, de um amante das cidades (somos amantes das cidades como somos amantes das mulheres, pelas mesmas razões), e os dois roteiros nos permitem, efetivamente, descobrir cidades que, pensávamos erroneamente, já estarmos familiarizados. 

Só Melville, ao meu conhecimento, reproduziu o charme da praça Pigalle à noite, ou da Times Square. A insubstituível sedução que exerce sobre nós uma rua deserta ao amanhecer, é preciso ser um “coruja”experiente para prová-la. E quando esse “coruja” é, ainda por cima, um cineasta de instinto, isso dá muito belas imagens. 

Mas o charme de Bob como o de Dois homens em Manhattan não provém somente da maneira com a qual Melville (cineasta urbano por excelência) nos guia pelas ruas, mas, sobretudo, da sua atitude perante os personagens. Ele tem por eles uma secreta ternura. Nenhum deles solicita prêmios de virtude. Acontece-lhes de serem frequentemente vigaristas profissionais, verdadeiros patifes, mas eles conservam uma espécie de nobreza, de pudor, que os faz sair com elegância das situações mais escabrosas. Bob, visto dessa maneira, me parece comovente. Sem nenhuma dúvida, ele não tem nada de um bandido que foi seduzido, já velho, pelas virtudes burguesas. Ele não sonha com o recesso e com a calma do lar. Ele conserva a elegância da máfia, e sua nobreza provém precisamente de uma espécie de fidelidade em relação aos valores que se exprimem nessa sociedade secreta que é o meio, que está na margem e em oposição à sociedade burguesa. [...] As relações dos valentões e dos assaltantes, Melville as indica com justeza: ele vê esse mundo do interior, o que quer dizer que ele não procura o exotismo pelo exotismo. Ele não é um amante do pitoresco e, se o pitoresco se manifesta, é com discrição e como que involuntariamente. 

Manhattan revisitada 

Que me perdoem de retomar esse filme do qual Chabrol tinha feito, aqui mesmo, uma excelente descrição. Se me parece que ele se ressalta sobre a enorme (e bem medíocre) produção de filmes sobre esse meio é porque ele não tem nenhuma pretensão ao realismo. Ele não visa minimamente ser espetacular, daí uma honestidade na narração, uma recusa do efeito, uma precisão do detalhe que me encantam. Mas onde está o jogo nisso tudo? Ele é um pretexto. Bob é certamente um “jogador”, mas através do jogo ele persegue um sonho, ele é, como os verdadeiros jogadores, assombrado pelo absoluto. [...] Não é, então, o jogo, mas a vida (ou ao menos uma maneira de viver em certas circunstâncias) que é o verdadeiro assunto do filme. É uma maneira, por exemplo, de compreender a amizade ou as mulheres. Melville tem a nostalgia da verdadeira amizade. Seus dois últimos filmes são uma homenagem vibrante a esse sentimento que não tem nada a ver com o “compadrio” ou a “camaradagem”. A amizade é um sentimento forte que ignora as diferenças de idade, as circunstâncias ou as diferenças sociais. Um sentimento que implica que podemos nos comprometer (nos molhar) e que, em todo caso, não exclui as censuras veementes quando o amigo não se comporta corretamente. É para Melville o único domínio onde tudo o que o homem tem de puro e de autêntico pode se manifestar. É preciso entender Dois homens em Manhattan e Bob como ensaios sobre a amizade. 

[...]

Eu amo que um notívago inveterado nos faça compartilhar seu prazer da descoberta. Existe, notadamente, para o notívago, lugares de predileção cujo charme é indiscernível para quem não tem a tentação dos prazeres noturnos. Os devaneios de um passeador solitário podem não ser campestres. Os bastidores do music hall ou de uma boate, um bar deserto às seis horas podem ter um charme tão autêntico quanto àquele de um bosque ou de um vale. Demos graças a Melville por nos restituir o sabor indefinível de uma noite de inverno em uma cidade bíblica em que passeadores, à procura de um mistério perfeitamente decifrável, se pagam o luxo de apreciar. Nossos contemporâneos não sabem mais o que é a flânerie. Eles zombam dos longos passeios nos carros e reclamam uma história. Dois franceses em Manhattan não precisam se lembrar dos filmes americanos para saber o que é Nova York. Melville coloca ao serviço de sua paixão um inigualável frescor de inspiração. Nenhuma má consciência e nenhuma provocação na sua discreta apologia de prazeres escondidos que uma cidade cosmopolita propõe aos seus visitantes. Ele sabe extrair dela a poesia oculta e transformar esse chumbo em ouro. Um metteur em scène realista teria evidenciado avidamente o sórdido e o ignóbil desses lugares de prazer. Mas J. P. Melville não é um moralista, menos ainda um moralista cristão. Ele sabe tirar proveito de New York by night que, com ele, resplandece com todas as suas luzes. Não é um turista que precisa de atrações equívocas: ele é como Baudelaire, atento aos prestígios indefinidamente renovados pelas noites ofuscantes de luz de uma metrópole imensa. 

E se me dizem: “Dois homens em Manhattan não é cinema”, eu respondo: “Não, não é cinema, é poesia”. 

Plaisir à Melville foi publicado na revista Cahiers du Cinéma, n° 102, dezembro de 1959. Tradução: Letícia Weber Jarek.

Cinema, vida e solidão



Por Serge Daney

Os bons filmes, dos nossos dias, vêm frequentemente de uma capacidade de solidão, mais ou menos bem suportada e assumida. Isso lhes confere uma tonalidade própria, uma raiva surda ou uma música desolada, como uma obrigação de “fazer com” o pouco que lhes é deixado. Pois, pesa doravante uma ameaça sobre o contrato mínimo que quer que um filme seja, apesar de tudo, voltado para o exterior. Um exterior que seja o lugar do outro, alteridade cujo o público é apenas a forma mais tradicionalmente desejável. Dito de outra forma: o princípio da insuficiência permanece no coração do cinema, mesmo na época em que os autores se pavoneiam muito facilmente na autonomia do “Isso me basta”. Justamente, isso nunca basta.

Até onde um cineasta pode ir na solidão sem perder não somente o público, mas o cinema? Eu falo disso com J.R., verdadeiro solitário que soube suscitar entre ele e o mundo exterior uma represa povoada de aliados devotados que filtram as ameaças. Rivette disse que é provável que tal solidão (comparável àquela do pintor ou do músico) não possa existir senão na hipótese em que seriamos todos convertidos ao todo-numérico. Até lá, toda solidão excessiva permanecerá um fardo levemente anti-natural e mais de um cineasta continuará se lamentando sobre a sua sorte. Eu estou de acordo com J.R.

Basta, com efeito, dar um passo ou dois para o lado dos videastas (aqueles que já tem uma obra sólida atrás deles, de Viola aos Vasulka, de Paik à La Casinière) para ser muitas vezes surpreendido por seu bom humor obstinado, sua independência alegre, sua falta de pathos. Eles não parecem precisar de mais reconhecimento público que um pesquisador em biologia molecular ou um técnico superior. Aquilo que eles precisam mais é de financiamento e de mecenato.

Onde está a diferença? Na luz. Enquanto o cinema repousar sobre o registro luminoso dos seres e das coisas, ele nos dará um mundo onde – por mais que digamos e façamos, esperneemos e enganemos - ninguém terá vontade de permanecer nas sombras. Tanto os cineastas quanto os atores, tanto o público quanto os críticos. Certamente existe uma história da luz de cinema. Às vezes, é a fria luz da justiça que acusa, da ciência que desnuda ou da lucidez moral que diz o que é ("lançar luz sobre"). Às vezes, é um calor protetor que nos faz perder a cabeça ("estar em plena luz"). Sempre é o lugar do tropismo, da imantação, do povoamento e, mesmo sendo severo, do amor.


Em que momento foi historicamente possível para um cineasta se (fazer) lastimar de seu destino de cineasta, como o escritor pôde fazer caso de uma angústia frente à página em branco? Eu situaria este momento exatamente depois da Nouvelle Vague. Esta, mais estoica, soube não se lamentar muito, mas foram (para permanecer na França) os Eustache, Pialat, Straub, Rozier, Garrel que começaram a representar aos nossos olhos o cineasta sob os traços de Jó e o cinema como um belo monte de esterco. Em seguida, nos habituamos à choradeira eutudo-tudoeu de cineastas menos importantes e transformados exageradamente em seus próprios assessores de imprensa. Hoje, a lassidão ganhou todo o mundo.

Isto (me sopra J.-C.B.) quando a vida se tornou para os cineastas uma espécie de valor supremo, de divindade em si, que uma certa dor pode atravessar o seu trabalho e trespassar seus filmes. E ele cita Eustache. Reduzida a ela mesma, a "vida" nunca é só, com efeito, o espetáculo da manada de humanos visto do ponto de vista do voiture-balai[1] que, por capricho, os empurra um a um na vala. Esta fora a beleza de A mãe e a puta, de Adieu Philippine, de Faces, até os recentes Van Gogh e Já não ouço a guitarra, de ter sabido ainda mostrar a vida, isto é, stricto sensu, a morte trabalhando. Mas é muito possível que o momento verdadeiro desta constatação e dessa dor tenha acabado por se transformar em pose. 

[1] NdT: Numa prova de ciclismo, um voiture-balai (carro-vassoura) é o veículo que circula atrás dos últimos competidores. Seu papel é recuperar os competidores que não podem mais continuar na prova (Wikipedia).

Cinéma, vie et solitude foi publicado originalmente na revista Trafic n° 3, verão de 1992. Retirado e traduzido do livro La maison cinéma et le monde – 4. Le moment Trafic 1991-1992, p. 113-114. Tradução: Miguel Haoni e Letícia Weber Jarek.

Morte de Buñuel


Por Serge Daney


Primeiro, as cifras redondas. Buñuel nasceu em 1900, pouco tempo depois do cinema e da psicanálise. Ao mesmo tempo que o século. Com trinta anos deixa todo o mundo estupefato (A Idade do Ouro, 1930). Com cinquenta efetua seu primeiro come-back mexicano (Os Esquecidos, 1950). Com sessenta volta a chocar seu país natal (Viridiana, 1960) e com setenta diz-lhe adeus (Tristana, 1970, sublime). Segundo a lógica, Buñuel teria devido morrer em 1990 ou em 2000, mas a eternidade não lhe dizia nada que valha. "Morrer e desaparecer para sempre não me parece horrível, mas perfeito. Ao contrário, a possibilidade de ser eterno me aterroriza de verdade."

Sobre a obra de Buñuel, tivemos todo o tempo para tudo dizer. Haverá sempre os voluntários para lhe interpretar e os naïfs para pensar que o cinema é feito de símbolos. Sobre o que não cessou de obsedar-lhe, durante toda sua vida, não tem nada a acrescentar. Sobre os -ismos com que cruzou no caminho (surreal-, comun-, fetich-, catolic-, onir-) tudo já repousa nas histórias do cinema. Sobre si mesmo e o que quis dizer, não tem nada a dizer: uma vida ordenada, um casamento próspero, uma boa dose de seriedade [sérieux, também equivale a dose alcoólica de meio-litro] no trabalho e de prazeres simples (o vinho, o whisky). Sobre seu estilo, não tem muito a concluir: filmou sempre o mais frontalmente possível situações complicadas relacionadas ao estudo de costumes, à etologia burguesa e à ciência dos sonhos. Um documentarista.

Onde está o mistério, portanto? Nem na vida, nem na obra. Na carreira. Em seus dentes de serra. E o que morre hoje com Buñuel (depois de Renoir e Chaplin)? Um certo jeito para um cineasta de estar no século e de ter, além da idade de suas artérias, a idade do cinema. A ideia que o tempo não é um inimigo, que perdemo-lo ao querer ganhá-lo, que ele resta sempre. A "carreira" de Buñuel, é uma das aventuras mais simplesmente desarmantes do cinema. Eis um homem que começou por sobreviver modestamente aos três golpes tonitruantes de uma estreia inesquecível (Um Cão AndaluzA Idade do OuroTerra sem Pão). Eis um cineasta que não encontrou nada de melhor que começar seu primeiro filme (pago com o dinheiro de sua mãe) pela imagem de um olho cortado que continua tirando o fôlego [couper le souffle, ou seja, cortando o ar]. Eis um homem que, durante quinze anos, parece ter esquecido de lutar para fazer seus filmes a todo custo. Um ás da avant-garde que aceita produzir (na Espanha) e realizar (no México) puros filmes comerciais. Um espanhol surdo que, no fim da vida, deixou o retrato o mais falado francês da burguesia francesa. Em suma, um homem que não fez sempre o que quis mas sempre fez o que pôde. E que permaneceu ele mesmo.



Quando falamos de humanismo, quando dizemos de alguém que é "humano", designamos assim as fraquezas que, por uma generosidade mesclada de frouxo alívio, decidimos lhe "passar". O humanismo de Buñuel não tem nada a ver com isso. É antes honestidade (a moral) de um homem que aceita permanecer em contato direto com suas próprias contradições, sem sonhar muito em lhes "resolver", sem querer escapar ao destino comum, sem desprezo por esse destino. Um artesão rigoroso que, enquanto declara guerra, bem sabe que não pode não declará-la. Nem ganhá-la. Mas que saberá sempre distinguir entre as concessões do que é secundário e a traição do que é principal.

Como todos aqueles que parecem deixar ao público uma obra em código e mensagens cifradas, Buñuel foi o tipo mesmo do cineasta a interpretar, logo, a recuperar. Mas ele avançou muito lentamente, viveu tempo o bastante para desencorajar seus exegetas. Não porque mudava, ele, mas antes porque mudavam, eles. Algumas ideias tão fixas quanto simples, teimosas como insetos, indiferentes às modas, permitiram-lhe dizer duas ou três coisas, mas em todas as línguas. Aquela da vanguarda, a do melodrama popular, a da qualidade francesa. Pouca coisa, na verdade. Que o desejo faz viver e que seu objeto, finalmente, é obscuro, que o homem tomado como animal erectus é o único objeto de estudo que importa, que o homem-animal social vive numa doce imoralidade, que toda verdade, sobretudo provisória, faz bem dizer.

Nos filmes franceses de sua última maneira, de A Bela da Tarde a Esse Obscuro Objeto do Desejo, teve a última palavra sobre seus comentadores: todo mundo, de repente, redescobriu que um símbolo não deve, forçosamente, ser explicado, que o inconsciente é um alegre rébus, que os fantasmas fazem rir, que o real é irônico e que a burguesia até que tem um discreto charme. Alguns anos antes, ele declarara sumariamente que o desejo de encontrar uma explicação para tudo era um vício burguês. Negando ao seu público tal prazer, ele, de certo modo, "libertou-o". Buñuel permanece um cineasta a parte. Menos um inventor de formas que um documentarista das formas do inconsciente, antes, de suas formações. Cada um de seus filmes, em certo sentido, é como um sonho. Os mais bem-sucedidos têm a clareza dos que conseguimos rememorar inteiramente. Daí sua comicidade literal. Os menos bem-sucedidos são aqueles dos quais não nos lembramos senão por pedaços. Que importa: trata-se sempre de um sonho, de uma capacidade de transcrevê-los e de ser-lhes fiel. É como sonhador muito desperto que Buñuel acompanhou a aventura do cinema, ou antes, forrou-a (como o forro de uma vestimenta [doublèe, doublure, ou seja, também duplicou-a, dublou-a, dobrou-a]). Como homem livre.

1 de outubro de 1983

La mort de Buñuel foi publicado no livro Ciné Journal (Volume II), p. 38-40. Tradução: Eduardo Savella.

Cineclube #8: Um verão na casa do vovô


Miguel Haoni comenta "Um verão na casa do vovô" (Dong dong de jiàqi, de Hou Hsiao-Hsien, 1984) Captação e edição: Wesley Conrado

Ao acaso Pialat


Por Jean-Pierre Oudart

1) Infância Nua (L'Enfance Nue, 1968) é um desses filmes modernos, muito raros que, à força de recusar os poderes mais do que nunca afirmados da montagem, de certa ideia fixa de montagem arraigada numa fé absoluta na onipotência da atração sintagmática das imagens, à força de renegar o poder do cinematógrafo em proveito de uma exploração (limitada, alguns dirão), imagem após imagem, dos poderes reveladores tão-somente do "cinema", da tomada imóvel, nem distanciada nem cúmplice, terminam por colocar (de modo completamente implícito, mas com violência extrema) o problema da montagem-ao-acaso (da vida mais que da filmagem, isto é que é singularmente novo), que não possui mais nada de "discursivo", quase nada de "narrativo" e nada, certamente, de "existencial" (sobretudo nas cenas rodadas em campo-contracampo), que deve, portanto, extrair seu poder de algo além desses "chavões" de indução, de dedução (ou de sedução) cinematográfica, os quais adoraríamos se fossem, enfim e para sempre, suprimidos.

2) Os poderes reveladores da tomada, sabemos de onde procedem: do poder (do defeito) que seguramente não corre o risco, com Pialat, de recuperar-se através do estetismo atual, do poder que o cinema tem de nos entregar do mais familiar cotidiano uma imagem fantástica completamente desconotada do mesmo cotidiano, cuja carga afetiva não está mais presente que pela sua ausência. Penso aqui em Bresson, mas para logo aperceber-me que Pialat procede de modo completamente diferente. Pois enquanto Bresson lida com a presença dessa ausência (esteticamente reforçada pela neutralidade dos gestos, dos olhares, da voz) para criar uma relação significante e emocional entre imagens das quais sabe, ou das quais espera que, malgrado e graças à sua neutralidade, o espectador às receberá enfim como mensagens fortemente conotativas, Pialat faz como se (e como se nisto não houvesse artifício) o espectador as recebesse de partida como imagens “naturais” normalmente conotadas; e recusando fazer da conotação possível ou oculta de suas imagens o nó de sua montagem (como faz Bresson) ele deixa-a até o fim implícita, no limite do insustentável: se a cena da confrontação, em campo-contracampo, das duas crianças e dos pais de criação é mais (e menos) que desconcertante, é que o cinema e o cinematógrafo foram levados aqui a revelar uma potência de neutralização, de desenraizamento, de aberração de tal modo escandalosa que ela obriga (mas somente depois, fora do filme, e não como em Bresson, durante ou ao termo do processo de sua leitura) o espectador, aflito em ser levado, sem aliás a mínima violência, tão longe do ponto de vista do sentido, a situar, com a ajuda de uns pobres indícios que o cineasta oferece em toda sua incerteza e ambiguidade, o sentido, ou seja, a comunicação, o amor entre os seres (pois enfim trata-se de um dos raros grandes filmes de amor) como necessariamente possíveis, para além da ficção, do filme.

3) Enquanto que, em Bresson, a questão do sentido é colocada e resolvida esteticamente no interior do filme (no plano semântico, o rompimento do enunciado, a decalagem da leitura da imagem conotada e denotada, a recuperação, inevitavelmente retardada no cinema, da conotação, para além desse rompimento; os atrasos da significação sendo utilizados, quase sempre e admiravelmente, aliás, como artifícios destinados a apagar-lhes, encobrir), o cinema de Pialat não busca mascarar aquilo que nada mais é que o negativo da vida, que os signos que ele nos propõe não são senão os indícios negativos do sentido, dos sentidos da vida.

Cinema deliberadamente não-suturado, aberto (sonho com Mizoguchi, em seus momentos mais belos), que não cessa de criar sua vacuidade, irrecuperável pelos semânticos pois que o que diz silenciosamente, e que é impossível não ser ouvido, não lhes compete.

Cinematografia verdadeiramente arriscada [hasardeuse] que desfaz o objeto cinematográfico na medida em que este se constrói, abrindo entre cada plano um vazio que o imaginário do espectador não é jamais autorizado a preencher e que, assim, sugere (impõe), para além, a questão de um sentido possível, infinitamente acidental [hasardeux] e necessário, pois que de outro modo a vida não seria possível, questão que tal cinema tem sozinho, e somente, o poder e o direito de colocar: pois todo acréscimo de significação cinematográfica, todo movimento de câmera, todo arranjo sintagmático que dispensaria mais que o mínimo de clareza narrativa comprometeria irremediavelmente sua pura negatividade.

Au Hasard Pialat, foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinema, n° 210, março de 1969. Tradução: Eduardo Savella.